“Não tenho vergonha de admitir, eu não gostava de ler. Diferentemente da minha irmã, que curtia, eu era um moleque preguiçoso que não sentia o menor prazer em terminar um livro. E por que eu teria? O rádio e os filmes eram tão mais empolgantes. Exigiam menos e eram mais vívidos. Na escola, eles nunca sabiam como apresentar os alunos à leitura e transformá-la em um hábito aprazível. Os livros e as histórias que os professores escolhiam eram um tédio, sem graça, sem sal. Leia trecho inédito de “Woody Allen: a autobiografia”, livro recém-lançado em que o cineasta de 84 anos conta a sua versão de sua história
Ninguém naquelas histórias cuidadosamente selecionadas para os jovens se comparava ao Homem-Borracha ou ao Capitão Marvel. Dá para pensar que um moleque com formiga nas calças (de novo, contrariando Freud, eu nunca tive um período de latência) que gostava de filmes de gângsteres com Bogart, Cagney e loiras vulgares e sensuais vai pirar com O presente dos magos? Então ela vende o cabelo para comprar para ele um relógio de pulso e ele vende o relógio para comprar pentes para ela. A moral que extraí é que sempre é mais seguro dar dinheiro de presente.
Eu gostava de histórias em quadrinhos, por mais esparsa que a prosa fosse, e, quando a escola me apresentou posteriormente a Shakespeare, conseguiu me enfiar suas peças goela abaixo de tal forma que, quando as aulas terminaram, eu nunca mais quis ouvir aqueles termos arcaicos. Enfim, eu não era um leitor até quase o fim do ensino médio, quando os meus hormônios de fato começaram a agir e eu notei pela primeira vez aquelas garotas com longos cabelos lisos, que não passavam batom, quase não usavam maquiagem, se vestiam com gola rulê preta e saias com meias-calças escuras e carregavam grandes bolsas de couro com cópias de A metamorfose, em que anotavam nas margens coisas como: “É, fato” ou “Ver Kierkegaard”. Por uma singularidade irracional qualquer, foram essas que fisgaram meu coração, e, quando eu marcava um encontro e perguntava se elas queriam ir ao cinema ou a um jogo de beisebol e elas preferiam ouvir Segovia ou ver uma peça de Ionesco na off-Broadway, havia uma longa pausa desconfortável até eu dizer: “Eu te ligo”. Então, eu corria para pesquisar quem eram Segovia e Ionesco. É seguro dizer que essas mulheres não estavam ansiosas esperando pela próxima edição de Capitão América ou mesmo pelo próximo Mickey Spillane, o único poeta que eu era capaz de citar.
Quando finalmente saí com uma dessas delicinhas boêmias, foi um golpe para nós dois. Para ela, porque já no começo da noite perceberia que havia se metido com um imbecil iletrado que não parecia saber em qual posição Stephen Dedalus jogava; e para mim porque eu percebi que era de fato um retardado e que, se eu quisesse beijar aqueles lábios sem batom ou vê-los uma segunda vez, eu teria de mergulhar em literatura mais profunda do que A morte num beijo.
Não dava para me safar só com piadinhas sobre Lucky Luciano ou Rube Waddell. Eu ia ter de dar uma folheada em Balzac, Tolstói e Eliot para marcar presença na conversa e não ter de levar a moça para casa quando ela de repente dissesse que tinha sido tomada pela febre amarela. Em seguida, eu acabava na Dubrow’s Cafeteria, me lamentando com as outras vítimas da noite de sábado.
Então eu tinha cerca de quinze anos, um pretenso múltiplo, um fracasso na escola, e, quando meus hormônios chegaram a um ponto de ebulição, comecei minha vida amorosa ou, como alguém poderia chamar, o Teatro do Absurdo. À deriva num mar de testosterona, buscando sexo, porém mais precisamente buscando aquela combinação da sensualidade de Rita Hayworth, dedicação de June Allyson e esperteza sarcástica de Eve Arden. Era um conjunto difícil de ser localizado em qualquer lugar do planeta Terra, quanto mais entre as meninas de quinze anos locais, cuja ideia de um encontro era um filme, um refrigerante e voltar para casa, tirando a chave a seis quarteirões da porta, para que estivessem prontas para abrir e correr para dentro antes que eu pudesse beijá-las. Houve alguns sucessos, ape-sar de que essas garotas simples e adoráveis, espertas, letradas, educadas, devidamente neuróticas e entediadas com um pamonha como eu, que não conseguia manter uma conversa sobre nenhum assunto mais complexo do que os filmes ou como acertar um slider no beisebol. Uma garota pediu que eu a levasse para assistir a O. Henry’s Full House (Páginas da Vida). O único O. Henry que eu conhecia era a marca de chocolate. Outra citou No caminho de Swann, mas eu estava ocupado demais mostrando quão engraçado era quando Milton Berle caminhava com a lateral dos pés. Essas meninas liam e falavam francês, e uma havia estado na Europa e visto o Davi de Michelangelo.
“Sim”, eu diria, ansioso para entrar num assunto que eu dominasse, “mas quando Cuddles Sakall balança o papo...”. Havia algo nessas mulheres: o fato de que eram belas naturalmente, que pareciam estar sempre de preto, de maneira dramática e lisonjeira, com brincos prateados. Elas não eram consumistas. E a esperteza delas era sedutora. Eram liberais na política. Além do fato de que Lincoln havia libertado os escravos, meu conhecimento de política era pífio. Elas podiam cantarolar os Concertos de Brandenburgo, e havia o boato de que eram sexualmente avançadas, apesar de que eu nunca iria descobrir isso, já que as saídas, com frequência, terminavam cedo, com elas se lembrando de forma pouco convincente de um compromisso urgente nas Índias Orientais Holandesas ou de ter de alimentar uma ema de estimação. Eu levei uma delicinha a pedido dela para o Greenwich Village. Pelo que me lembro, ela me arrastou para uma produção de Macbeth encenada por marionetes da Tailândia. Felizmente, eu acordei antes de as cortinas se fecharem. Depois disso, num barzinho confortável à luz de velas, ela falava, entusiasmada, sobre Czeslaw Milosz e a perversão da dialética enquanto eu a despia mentalmente. Em seguida, fomos para algum clube de paredes de tijolo onde Josh White cantava sobre prisioneiros acorrentados uns nos outros e um lutador que arregaçava os oponentes enquanto, nos fundos do bar, havia um homem do FBI de olho em quem em pouco tempo seria arregaçado. Finalmente pegamos o caminho da casa da garota, onde ela correu esbaforida para entrar e evitar o meu beijo, batendo a porta no meu nariz.
Eu sempre tentava me conter, mas quem era esse tal de Lobo da estepe? E eu concordava com Sidney Hook sobre o quê? Nunca mais a vi, e por eu ter me apaixonado por ela, percebi que precisava me atualizar; Stendhal e Dostoiévski iriam substituir o Gato Félix e a Luluzinha. Então eu li.
De algumas coisas, eu gostei, de algumas não. Eu não era um onívoro que engolia toda a literatura que via. Ler sempre competia com os esportes, filmes, jazz, truques de cartas e simplesmente não ler, porque as páginas impressas pareciam densas demais. Fiquei intimidado pelo ritmo cruel de A montanha mágica. Ainda assim, eu temia que nunca me equiparasse socialmente se eu só soubesse coisas como quem estrangula todo mundo em Silêncio nas trevas ou a letra de “Rag Mop”.
Eu lia os romancistas, os poetas, os filósofos: lutei com Faulkner e Kafka e tive mais dificuldades com Eliot e, claro, Joyce, mas eu adorava Hemingway e Camus porque eram simples e me despertavam sentimentos, mas não consegui passar por Henry James, por mais que tenha tentado. Adorei Melville, a poesia de Emily Dickinson e dediquei tempo para aprender sobre a vida de Yeats para poder aproveitar seus poemas. Achei Fitzgerald mais ou menos, mas amei Thomas Mann e Turguêniev. Adorei O vermelho e o negro, especialmente quando o jovem herói fica se perguntando se deveria tomar a iniciativa e tentar alguma coisa com a mulher casada. Escrevi a versão cômica da Broadway dessa cena em Sonhos de um sedutor e a encenei com Diane Keaton. Li C. Wright Mills e The Ginger Man e aprendi sobre a perversidade polimórfica com Norman O. Brown.
Lia indiscriminadamente, e permaneceram grandes lacunas no meu conhecimento, mas eu escutava música clássica além do jazz, visitava museus cada vez mais e me educava o melhor que podia, não em troca de um diploma ou alguma aspiração nobre, mas para que eu não parecesse um banana para as mulheres de quem eu gostava, apesar de que, em quase tudo, eu permanecia um pamonha.
Naquele ponto eu estava fracassando no curso de verão e fui chamado diante de uma comissão de reitores. Uma comissão de reitores não é exatamente como uma revoada de cotovias. É mais como uma corja de zumbis carniceiros. Era um quarteto sem humor que estava lá para dizer que você estava fora. Eu escutei educadamente enquanto eles me acusavam de várias coisas, desde faltar às aulas até fracassar em todas as provas. Eles perguntaram qual era o meu objetivo na vida. Eu disse que era forjar na oficina de minha alma a consciência jamais criada da minha raça e ver se poderia ser produzida de forma massiva em matéria plástica. Eles olharam uns para os outros e sugeriram que eu fosse procurar um psiquiatra. Eu disse que trabalhava de forma profissional e me dava bem com todo mundo, então por que eu precisaria de um psiquiatra? Eles explicaram que eu estava no mundo do show business, onde todo mundo é maluco. Não achei que um psiquiatra fosse a pior das ideias, já que, apesar dos meus interesses criativos e começo promissor como redator de comédia junto a todo o amor que eu recebi na minha criação, eu ainda vivenciava sensações moderadas de ansiedade, do tipo que você tem quando é enterrado vivo. Eu não estava feliz; eu andava sorumbático, temeroso, irritado, e não me pergunte o porquê. Talvez estivesse no meu sangue ou fosse um estado mental que se estabeleceu quando percebi que os filmes do Fred Astaire não eram documentários.
Comecei a ver um psiquiatra altamente recomendado chamado Peter Blos uma vez por semana, pouco depois da minha expulsão, e, apesar de ele ser um cara incrível, não fez muito por mim. Ele acabou sugerindo que eu me consultasse com um psicanalista quatro vezes por semana, quando eu ficava num divã e era encorajado a dizer tudo que viesse à minha mente, incluindo descrever meus sonhos. Fiz isso por oito anos e consegui com maestria evitar qualquer progresso. Finalmente eu venci o psicanalista e um dia ele veio com uma bandeira branca. Fui a mais três psicanalistas na vida. O primeiro era um cara bem bacana chamado Lou Linn, que eu via duas vezes por semana em sessões cara a cara. Ele era brilhante, mas eu facilmente o enrolei e permaneci seguramente não curado. Então fiz sessões com uma senhora bem inteligente por talvez uns quinze anos. Essa foi mais terapêutica e me ajudou com algumas atribulações da vida, mas não ocorreu nenhuma mudança real da minha personalidade para melhor. Finalmente, um especialista altamente recomendado tentou novamente a terapia cara a cara comigo, depois psicanálise no divã por um período, e em seguida de volta à terapia cara a cara. E, mesmo assim, eu ainda fui capaz de impedir qualquer progresso significativo.
Fiquei em tratamento por muitos anos e a minha conclusão é que sim, me ajudou, mas não tanto quanto eu esperava e não da forma que eu imaginaria. Fiz zero de progresso em questões profundas: medos, conflitos e fraquezas que eu tinha aos dezessete e aos vinte anos. Eu ainda os tenho. Nas poucas áreas onde os problemas não estão tão incutidos, em que se precisa de uma ajudinha, um empurrãozinho, talvez eu tenha me aliviado um pouco. (Posso ir a um banho turco sem ter de reservar o salão todo.) Para mim, o valor era ter uma pessoa por perto para eu compartilhar meu sofrimento; jogar com o profissional no tênis. Além disso, para mim, uma grande vantagem era a ilusão de que eu mesmo estava me ajudando. Nos períodos mais sombrios, é bom sentir que você não está apenas dormente, que se tornou um verme passivo sendo jogado pela loucura irracional do universo, ou mesmo pelas atribulações que você mesmo cria. É importante acreditar que você está fazendo algo em relação a isso. O mundo e as pessoas nele podem meter a bota na sua garganta, esmagando a sua vida, mas você vai mudar tudo, você está tomando uma atitude heroica. Você está fazendo associações livres. Você está se lembrando daqueles sonhos. Talvez os esteja anotando. Pelo menos uma vez por semana você vai discutir isso com um especialista treinado e, juntos, vocês vão entender as terríveis emoções que fazem você ficar triste, assustado, bravo, desesperado e suicida.
O fato de que resolver esses problemas é ilusório e que você vai sempre permanecer o mesmo caco atormentado, incapaz de pedir um schnecken ao padeiro porque a palavra o envergonha, não importa. A ilusão de que você está fazendo algo para se ajudar te ajuda. De certa forma, você se sente um pouco melhor, um pouco menos desanimado. Você agarra sua esperança num Godot que nunca vem, mas a ideia de que ele virá com respostas te ajuda a passar pelo pesadelo que te envolve. Como a religião, onde a ilusão faz a pessoa suportar. E, estando nas artes, eu invejo aquelas pessoas que extraem consolo da crença de que o trabalho que elas criaram vai sobreviver e ser muito discutido e, de certa forma, será como os católicos com sua vida pós-morte, o “legado” do artista o tornará imortal. A sacada aqui é que todas as pessoas que discutem sobre esse legado e quão grande é a obra do artista estão vivas e estão pedindo pastrami, enquanto o artista está em alguma urna funerária ou debaixo da terra no Queens. Todas as pessoas sobre o túmulo de Shakespeare cantando seus louvores significavam um grande nada para o Bardo, e um dia virá — um dia bem distante, mas esteja certo de que definitivamente virá — quando todas as peças de Shakespeare, por mais que tenham tramas brilhantes e pentâmetros iâmbicos pedantes, e todos os pontos de Seurat irão sumir junto a cada átomo do universo. Na verdade, o universo vai desaparecer e não haverá lugar para pendurar seu chapéu, afinal, somos um acidente da física. E um acidente bem desajeitado. Não o produto de uma criação inteligente, mas no máximo a obra de um incompetente crasso.”
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