“Eu poderia ir para o meio da Quinta Avenida, atirar em alguém e não perderia nenhum eleitor”, disse há mais de quatro anos o ainda pré-candidato pelo Partido Republicano à Presidência dos Estados Unidos Donald Trump, para uma plateia de fiéis evangélicos em Sioux City, Iowa, uma das comunidades mais conservadoras dos Estados Unidos. Ao longo da Presidência Trump, a frase foi retomada de tempos em tempos por comentaristas de TV, analistas e eleitores democratas inconformados que tentavam entender se de fato não havia limite para a disposição dos apoiadores do presidente em defendê-lo independentemente do que havia dito ou feito, escvreve Paola De Orte, de Washington, para a edição desta semana da revista Época. Continua a seguir.
A contagem de votos nas eleições deste ano, que até o fechamento desta reportagem não havia cravado um vencedor, comprovou a força do populismo inaugurado nos Estados Unidos por Trump, o “nacional-populismo”, como alguns cientistas políticos passaram a se referir ao fenômeno. Essa modalidade deve transcender governos e colorações partidárias nas próximas décadas, pois sua ascensão é consequência de um debate que ganhou força ao longo da última década, sobretudo após a crise financeira de 2008. Cada vez mais, os americanos contestam a legitimidade das elites econômicas e políticas para tomarem decisões em nome de uma população da qual estão cada vez mais desconectadas. O discurso desse novo populismo também se aproveita do questionamento da sociedade sobre sua capacidade de absorver os fluxos migratórios, que diminuíram de ritmo com a pandemia, mas podem voltar a crescer, e as mudanças étnicas e culturais em países que absorvem esses fluxos sem precedentes na história moderna. Essas mudanças nas demografias nacionais geram ansiedade e apreensão em parcelas da sociedade, que se voltam para líderes que prometam trazer de volta uma prosperidade vivida no passado.
Depois de quatro anos de coerência com seu discurso de campanha anti-imigração e que culminaram em um quarto ano de mandato em que tensões raciais se acirraram ainda mais nos Estados Unidos, Trump conseguiu levar às urnas ainda mais eleitores do que em 2016. Embora se estime, até o momento, que o republicano não sairá do processo com a maioria dos votos populares — o democrata Joe Biden havia recebido mais de 72 milhões de votos até o fechamento desta reportagem, um recorde histórico, num ano em que a projeção da participação eleitoral está em mais de 160 milhões de eleitores, também um recorde —, Trump, com mais de 68 milhões de sufrágios, teve 5 milhões a mais do que na eleição anterior. Mesmo depois da negligência em sua abordagem da pandemia do coronavírus, o republicano conseguiu ampliar sua base. Trump teve mais eleitores latinos do que em 2016 e não perdeu os eleitores negros de renda mais baixa que teve em 2016, apesar dos movimentos antirracismo.
Embora os democratas esperassem que as históricas taxas de reprovação do republicano pudessem reduzir o campo de apoio a Trump nas urnas e garantir uma vitória folgada a Biden, a imagem que reluz do mapa eleitoral americano não é de uma “onda azul”. Biden reforçou a presença democrata nas grandes cidades, que têm apoiado candidatos democratas mesmo em estados majoritariamente republicanos, como é o caso do Texas, mas não conseguiu desbravar o campo, que continua sendo território republicano. “É quase uma mitologia, se levarmos em conta os resultados que o governo Trump entregou para fazendeiros em áreas rurais, trabalhadores das minas de carvão, esse tipo de perfil”, disse o professor de governo do Bowdoin College, Andrew Rudalevige. “Tivemos um ano de recessão, pandemia, impeachment, protestos raciais e toda uma nova discussão sobre justiça racial nos Estados Unidos. O presidente mesmo pegou Covid. E quase não houve variação em seu apoio.”
Um eleitor espera para votar em Atlanta, na Georgia. A cidade será determinante para medir a capacidade de Biden de levar o estado, que é tradicionalmente republicano. Foto: Marc Piscotty / Getty ImagesUm eleitor espera para votar em Atlanta, na Georgia. A cidade será determinante para medir a capacidade de Biden de levar o estado, que é tradicionalmente republicano. Foto: Marc Piscotty / Getty Images
Desde que decidiu concorrer à Presidência, Trump ofendeu mulheres, veteranos e minorias, enquanto sua popularidade se mantinha inabalada. Seus apoiadores mais fiéis, mesmo os que não gostam de todas as ofensas, entendem que o discurso agressivo do presidente faz parte de sua estratégia. Nessa relação entre discurso e adesão do eleitorado, as semelhanças com Jair Bolsonaro se tornam ainda mais patentes, denotando a atração que determinados perfis de eleitor têm por figuras políticas que tendem ao autoritarismo — uma outra característica do líder tipicamente nacional-populista. “Eu sei que o presidente soa estranho com as coisas que tuíta, que ele diz para o mundo. Mas as pessoas que conheço que estão votando nele não se importam realmente com isso. Contanto que ele diga coisas malucas, mas não faça coisas malucas demais e implemente políticas ridículas demais, é isso que importa para nós”, afirmou o texano Ryan Butler, que votou pela primeira vez na vida neste ano, em Trump.
Trump terminou seu mandato com saldos negativos na economia — desemprego alto e o maior déficit na balança comercial desde 2008 — e mais de 230 mil mortos pelo coronavírus em um país mais dividido do que em muitas décadas. Quando neonazistas marcharam em Charlottesville segurando tochas e gritando “os judeus não vão nos substituir”, o presidente disse que havia “boas pessoas dos dois lados” da manifestação. Em um de seus primeiros enfrentamentos com o Partido Republicano tradicional, Trump chamou o senador John McCain de “perdedor” por ter sido derrotado nas eleições que levaram Barack Obama à Presidência em 2008 e afirmou que “prefere pessoas que não foram capturadas” — McCain era considerado herói de guerra depois de ter passado cinco anos e meio prisioneiro durante a Guerra do Vietnã. Mesmo assim, o público aceitou a narrativa de Trump e deu de ombros às ofensas ao senador. Neste ano, a revista The Atlantic publicou que o presidente chamou veteranos de guerra de “perdedores”.
Apesar das promessas de “Fazer a América Grande de Novo” trazendo de volta para o país os empregos perdidos ao longo das últimas décadas para a China, o presidente não conseguiu impulsionar a criação de empregos manufatureiros mesmo antes da pandemia. Em estados do Meio-Oeste como Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, cujos eleitores deram pequenas margens de vitória ao republicano em 2016 em parte por causa do apoio de trabalhadores das indústrias siderúrgica e do carvão, Trump não conseguiu entregar as promessas feitas com o discurso de “América primeiro”. O sonho do retorno ao passado industrial próspero não se concretizou.
Trump também não teve sucesso em diminuir o déficit comercial com o país asiático e seu grande trunfo econômico, o menor desemprego em 50 anos, foi dinamitado em poucas semanas assim que o coronavírus chegou. O presidente minimizou a pandemia, mesmo sabendo da gravidade do coronavírus desde janeiro. Disse que sua mortalidade era similar à da gripe, informação falsa que pôde ser facilmente verificada poucas semanas depois, quando o número de mortes pelo coronavírus ultrapassou o total de mortos do ano recorde de vítimas da gripe em apenas dois meses. Disse que o vírus iria embora quando a primavera chegasse e que “um dia, como milagre, desaparecerá”. “Acho que a maior parte dos democratas esperava que houvesse penalidades maiores para Trump pagar por isso”, disse Rudalevige, referindo-se ao fato de a base eleitoral do presidente ter sublimado seu comportamento durante a pandemia. “De certa forma, como ocorre com o eleitor de Bolsonaro, o americano que vota em Trump tem uma preocupação maior com o impacto econômico da pandemia do que com o sanitário”, ponderou Maurício Moura, sócio da consultoria Ideia Big Data.
Apesar da falta de bons resultados a apresentar — em grande parte devido à destruição causada pelo vírus na economia, que vivia boa fase —, Trump viu o apelo populista de seu discurso tocar boa parte do eleitorado que conquistou há quatro anos. Suas palavras agressivas direcionadas ao “outro lado” — esquerda, progressistas — despertaram o medo em comunidades específicas e estratégicas para sua campanha, como é o caso dos latinos da Flórida, descendentes de cubanos e que temem mais uma suposta “ameaça comunista” do que o desemprego ou os impactos sanitários da pandemia. “Trump pode não fazer nada bom, mas ele incomoda as pessoas que seus apoiadores odeiam. É disso que eles gostam. Eles gostam do fato de que ele está humilhando os liberais, bebendo lágrimas dos liberais”, disse o professor Rudalevige, do Bowdoin College.
Quando questionados sobre as razões do seu apoio ao presidente, é comum eleitores citarem o medo do “socialismo” e o associarem aos democratas, que em outros países democráticos seriam vistos como um partido majoritariamente centrista com uma barulhenta ala de esquerda. A máquina de comunicação política da chamada “direita alternativa” — que começou a crescer muito antes de Trump, originando movimentos como o Tea Party — soube fazer uma ponte simbólica sólida entre as angústias existenciais de alguns setores da população americana e os medos da sepultada Guerra Fria.
Assessorado por nomes como Roger Stone — estrategista republicano desde Richard Nixon, que em 2016 cunhou o slogan “Prendam ela” (“Lock her up”) entoado nos comícios contra Hillary Clinton — e Steve Bannon — criador do site Breitbart, com financiamento do banqueiro libertário Robert Mercer —, Trump soube canalizar como ninguém para a arena política convencional esse conjunto de conceitos. Neles, minorias, imigrantes e jovens de grandes centros urbanos ameaçam o modo de vida e os valores de uma maioria branca que deverá se tornar minoria até 2045. Esses grupos são associados ao poder da ala de esquerda do partido, que, nessa visão de mundo, ameaça rever o contrato social de impostos baixos e descentralização política preferidos pelos apoiadores do presidente, ainda que o progressismo de Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez tenha perdido para o centrismo de Biden nas primárias democratas. É o mesmo conjunto de ideias veiculado pelos principais comentarista e âncoras da Fox News de Rupert Murdoch, lançada nos Estados Unidos em 1996 e canal de TV favorito de Trump e de seu público.
Um estudo publicado em 2018 pelo Centro Berkman Klein para a Internet e pela Escola de Direito da Universidade Harvard, fruto de uma pesquisa que observou mais de 4 milhões de postagens na internet no ciclo eleitoral de 2016, mostra que 35% dos americanos, os mais identificados com a direita, só consomem informações de uma lista restrita de sites e meios de comunicação, incluindo o Breitbart e a Fox. “Se essas pessoas chegarem a ver uma informação publicada no New York Times, ela virá filtrada pelos veículos nos quais confiam, que vão dizer que é uma mentira. Há entre um quarto e um terço da população para o qual uma reportagem do New York Times não significa nada”, disse Yochai Benkler, um dos autores do estudo, em entrevista concedida ao GLOBO.
O que se pode depreender do resultado eleitoral de 2020 é que a disputa acirrada motivou os apoiadores democratas e republicanos, nem sempre habituados a votar, a irem às urnas. E que Trump continua agradando a grupos sociais e étnicos que, em tese, seriam alvos de seus ataques. Apesar de serem minoria entre republicanos, os negros de faixa de renda mais baixa aumentaram sua participação entre a base de Trump. O mesmo se pode dizer da comunidade latina. No Texas e no Arizona, em que os latinos estão mais ligados ao México, Biden foi melhor. Contudo, há nuances a serem exploradas. No condado de Zapata, na fronteira texana com o país latino, Trump ganhou. Tanto Hillary Clinton quanto Barack Obama haviam vencido no local em eleições anteriores. “O trumpismo vai ser mais longevo do que o próprio Trump”, acredita Darrell West, vice-presidente de estudos de governo do Instituto Brookings. “Isso é algo com que os Estados Unidos vão conviver por muitos anos pela frente.”
Desde que assumiu, Trump conseguiu manter números em torno de 40% a 45% de aprovação. Segundo o agregador de pesquisas FiveThirtyEight, nenhum outro presidente teve aprovação tão estável desde Harry S. Truman, eleito em 1948, quando os números começaram a ser contabilizados. Sua aprovação entre republicanos também se manteve estável ao longo de todo o período, girando em torno de 90%. Nem mesmo a pandemia e o negacionismo do presidente, que comprou briga com Anthony Fauci e se recusou a adotar medidas comuns, como o uso de máscaras, até o último minuto, fizeram o partido se afastar do líder. No dia seguinte às eleições, os EUA quebravam o recorde de 100 mil novos casos de coronavírus por dia.
Neste ano, os impulsos populistas do presidente concentraram sua atenção em outro foco que não os imigrantes e a China: o sistema democrático americano e a credibilidade do voto. “Uma parte significativa da mensagem de sua campanha para reeleição foi negativa sobre instituições de governo americanas, ele dizia concorrer contra o ‘deep state’, contra o funcionamento da democracia ao dizer que o voto não é seguro”, avaliou Peter Feaver, professor de ciências políticas e políticas públicas da Universidade de Duke.
O presidente repetiu seguidas vezes que o voto por correio poderia levar a fraudes em massa, mesmo que o país já venha votando por correio há vários ciclos e não houvesse evidência de que isso poderia ocorrer. Disse também que, caso sua vitória não fosse garantida na contagem de votos, poderia apelar à Justiça, o que de fato cumpriu ao entrar com ações pedindo recontagem em Wisconsin e a suspensão da apuração em Pensilvânia e Michigan. “O populismo hoje nos Estados Unidos não é necessariamente mais forte do que as forças alternativas, mas está definitivamente forte e continuará mais forte do que o Partido Democrata esperava”, constatou Feaver.
O que ainda está por saber é se o tamanho de Trump e de suas ideias é proporcional ao desapreço de seu eleitor pelos pilares democráticos. Se os autores Roger Eatwell e Matthew Goodwin estiverem certos em seu livro O Nacional-populismo — A revolta contra a democracia liberal, lançado no Brasil pela Record, esse eleitorado que aprecia líderes que sejam “pessoas como eles”, como é a imagem que Trump deseja passar, diz querer “mais democracia”, não menos. O que entendem por democracia é: mais plebiscitos, mais políticos dispostos a ouvir suas demandas e que concedam mais poder ao povo e menos às elites políticas e econômicas. Ou seja, uma democracia mais direta, com menos intermediação de representantes.
Durante os protestos por justiça racial que levaram às ruas manifestantes em milhares de cidades dos Estados Unidos, Trump se recusou a se engajar em uma conversa pública sobre racismo e violência policial. Em Washington, jogou gás lacrimogêneo nos jovens que protestavam em frente à Casa Branca apenas para poder atravessar a Praça Lafayette e posar para uma foto com uma Bíblia na mão em frente a uma igreja que havia sido vandalizada no dia anterior. Seu eleitor Joe Coltrane, da Carolina do Norte, não viu qualquer problema nessa atitude. “Ele estava jogando com a base”, disse.
Embora permaneçam as escaras do trumpismo, as cidades médias e grandes impulsionaram o voto divergente, mais impactadas pela pandemia e pela agenda ambiental que republicanos não apoiam nos Estados Unidos. Apesar das reiteradas tentativas do presidente de fazer de “lei e ordem” e do medo da violência tema de campanha, estados-chave que foram palco de grandes manifestações e onde houve vandalismo não compraram o discurso. Em Minnesota, onde ocorreu o assassinato de George Floyd e os protestos levaram a prédios incendiados e muito vandalismo nas ruas, a derrota do presidente ficou clara já nas primeiras horas de contabilização dos votos na terça-feira. O estado era um dos que os republicanos apostavam em conquistar neste ano, apesar da derrota local em 2016. Em Michigan e Wisconsin, estados que garantiram a vitória de Trump em 2016, mulheres donas de casa que tradicionalmente votavam em candidatos democratas e mudaram para o republicano, neste ano voltaram ao comportamento padrão, fazendo com que o presidente perdesse em ambos os estados.
O resultado ainda incerto das eleições americanas, que pode ser judicializado se as ameaças de Trump se cumprirem, permitem um prisma do que pode ser percebido futuramente no Brasil e em outros países governados pelo nacional-populismo, como Hungria, Turquia, Ucrânia e Indonésia. No caso de Jair Bolsonaro, o exemplo mais próximo, já se pode ter uma amostra do que virá em 2022 quando se analisam seus números de aprovação, no patamar de 40% mesmo diante de sua negligência durante a pandemia. O exemplo americano dá mostras do que está por vir.
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