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Parente é serpente

Semanas depois de romper com Eduardo Campos, seu primo, em plena campanha presidencial de 2014, Marília Arraes soube que havia sido ridicularizada no comitê de campanha do PSB em Pernambuco. Uma cadela vira-lata fora batizada com o seu nome, e políticos fizeram a zombaria chegar até a então vereadora de 30 anos. Seis anos depois, a história é lembrada por amigos quando querem demonstrar que ela é calejada para a briga com os Campos. Eduardo morreu naquela campanha em um acidente aéreo, e seu filho João hoje é o adversário da petista na acirrada eleição para a Prefeitura do Recife. A disputa política na família faz as agressões recíprocas, que já não são leves, se amplificarem. E uma outra mulher é apontada por aliados e adversários como figura central no racha do clã mais importante da política pernambucana, escreve Thais Bilenky na Piauí, em matéria publicada na quinta, 26/11, antes da vitória de João Campos no domingo, 29/11. Continua a seguir.


Viúva de Eduardo e mãe de João, Renata de Andrade Lima Campos atua nos bastidores para fazer suas preferências prevalecerem, conforme relatam políticos locais. Foi assim que João, e não outros potenciais nomes do PSB, como o deputado Felipe Carreras, foi alçado a candidato a prefeito do Recife, apesar de seus 27 anos completados nesta quinta (26) e uma bagagem limitada na política. A discrição de Renata na esfera pública é compensada pela proximidade com o prefeito do Recife, Geraldo Julio, e o governador Paulo Câmara, que agem em sintonia com ela. Se aliados temem falar publicamente de sua autoridade, adversários são mais diretos. 

A mãe de Eduardo, Ana Arraes, e um irmão dele, Antônio, já romperam com Renata e João publicamente em termos menos amigáveis. A viúva de Campos “tem um projeto de poder que exclui qualquer pessoa que não se submeta aos seus caprichos”, disse o tio ao jornal O Globo. Ministra do TCU (Tribunal de Contas da União), Ana Arraes disse que o neto “faltou com respeito” ao criticar o tio em audiência na Câmara dos Deputados, em 2019.

Marília, em um debate, disse ao primo que, se ele chegar à prefeitura, “ninguém sabe se quem vai mandar é sua mãe, é Geraldo Julio, ou Paulo Câmara”. No fogo cruzado, a petista chamou o pessebista de frouxo. Ele pisa nos calos do PT  por condenações de seus líderes em escândalos de corrupção.

Em uma nota enviada à piauí, João Campos contra-atacou. “Minha mãe nunca exerceu uma função partidária, nem liderança de grupo político. Teve, sim, uma militância política anterior, inclusive, às candidaturas a cargos públicos de Eduardo Campos. Depois do acidente que vitimou o meu pai, principalmente, ela voltou todas as suas forças para cuidar da família, especialmente de meu irmão mais novo, Miguel”, anotou o candidato. “Lamentavelmente, ela tem sido vítima desse tipo de fake news há algum tempo, como forma de atacar a Frente Popular de Pernambuco [a coligação do PSB] e as gestões do PSB no estado. Quando a possibilidade da minha candidatura a prefeito surgiu, a oposição, incluindo a minha adversária e seu partido, o PT, ampliaram o uso desse tipo de ataque covarde e machista. A candidata, inclusive, levou essa baixaria aos debates de televisão. É lamentável que essa busca sem limites pelo poder, e pela destruição de um grupo político, tenha deliberadamente escolhido para difamar, injuriar e caluniar uma mulher, viúva e mãe como alvo dessas mentiras sórdidas e preconceituosas. Por outro lado, isso revela muito sobre quem são os nossos adversários e os métodos que eles utilizam para atingir seus objetivos.”

Candidato do DEM a prefeito do Recife derrotado no primeiro turno, Mendonça Filho afirma que “Renata expressa a força do espólio do Eduardo e a influência junto ao governador Paulo Câmara e ao prefeito Geraldo Julio”. Mendonça terminou em terceiro lugar, com 25,07%% dos votos válidos. João ficou com 29,13% e Marília, 27,90%. Para o ex-ministro da Educação no governo Temer, “a briga ferrenha” entre familiares é “o começo da queda do castelo, do império do PSB em Pernambuco. É irreconciliável”.

O ex-senador por Pernambuco Armando Monteiro, que estava com Mendonça no primeiro turno, declarou apoio a Marília no segundo. “O candidato da situação é o João Campos. Os de oposição, Marília e os de direita, somaram mais de 70% dos votos válidos. Não é que todos [os eleitores da oposição] vão para ela, mas o sentimento anti-PSB é tão forte que pesquisas indicam que a maioria migra para Marília”, diz Monteiro. O mapa da votação na cidade mostra que Mendonça Filho venceu nas regiões mais ricas de Recife, Marília teve mais votos na área central, e Campos ganhou nas demais porções. Pesquisa Ibope desta quarta (25) mostra que João Campos está com 43% das intenções de voto, e Marília Arraes, 41%. O Ibope Inteligência captou ainda uma mudança sutil: os eleitores da Delegada Patrícia (Podemos) e de  Mendonça Filho estão votando agora em maior proporção em João.

A petista também tem o endosso no segundo turno do deputado Daniel Coelho, do Cidadania, coordenador da campanha da Delegada Patrícia. Ela acabou em quarto lugar na corrida, com 14,04% dos votos, apesar do apoio do presidente Jair Bolsonaro. No segundo turno, Marília agrega, portanto, em seu palanque, o ex-presidente Lula, que está em campanha remota por ela, e figuras mais próximas do bolsonarismo.

O deputado Felipe Carreras, do PSB, diz que o realinhamento do PT, cujos quadros integram as atuais gestões do município e do estado, “acaba com o clima de qualquer aliança a nível nacional. Não dá nem para pensar no estado então”. “Me estranha mais ainda o Psol [que indicou o vice de Marília], que se mostrava um partido mais purista e está se submetendo a tudo pelo poder.”  Ele nega ingerência de Renata nas decisões do PSB, inclusive nas que lhe dizem respeito. “É argumento sem consistência para nos atacar.”

Entre políticos de direita, o temor da vitória de João Campos é o estrangulamento da oposição a longo prazo. A conta que se faz é que Campos ficaria na prefeitura até 2028. O atual prefeito, Geraldo Julio, viraria governador em 2022 e ficaria no posto até 2030, quando João o sucederia. É um projeto, atribuído a Renata, com duração até pelo menos 2038. Opositores brincam que, se não estiverem na cadeira de rodas até lá, da bengala não escaparão.

O engalfinhamento entre primos, porém, pode gerar prejuízos à esquerda antes disso. “É lamentável. O ambiente está muito tenso, é um confronto ruim. Depois de uma coisa dessas você nunca consegue decidir quem começou, cada um diz que foi o outro”, disse a deputada baiana Lídice da Mata, do PSB, que foi próxima de Miguel Arraes (1916-2005), avô de Marília, bisavô de João Campos e farol político da família e do estado. Outro ponto de tensão na campanha foi protagonizado pelo deputado Túlio Gadelha, que, apesar de o seu partido, o PDT, apoiar João Campos, está ao lado de Marília Arraes. “É isso, a eleição municipal, em pleno combate ao bolsonarismo, deixará marcas em todos”, afirma Lídice da Mata. 

Na corrida municipal, João e Marília se atacam frontalmente, mas na Câmara dos Deputados mantinham distância. Apesar da animosidade, eles não protagonizaram desavenças públicas na primeira metade da legislatura. Ambos são deputados em primeiro mandato com perfis distintos. 

Arraes gasta mais verba de gabinete e cota parlamentar e falta mais. Seus discursos são mais politizados, e os temas de sua preferência são o governo Bolsonaro, ao qual se opõe ferozmente, e a luta pelos direitos das mulheres. Ela aparece mais nas articulações do estado e do partido. Campos faz o tipo certinho: profere discursos técnicos, é assíduo em plenário e apresenta numerosas propostas legislativas. 

Nenhum dos dois conseguiu, no entanto, nos quase dois anos de legislatura, ver aprovado um projeto de autoria exclusiva com impacto no debate público. 

No ano passado, Arraes usou 98% da cota parlamentar disponível para deputados de Pernambuco (451 mil reais) e 94% da verba de gabinete (1,2 milhão de reais). Campos usou 74% da cota (346 mil reais) e 63% da verba de gabinete (768 mil). Em 2020, ano de disputa eleitoral, os gastos ficaram mais próximos. Ela gastou 173 mil reais da cota até agora e ele, 154 mil reais. 

THAIS BILENKY (siga @thais_bilenky no Twitter) é repórter na piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília




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