Pular para o conteúdo principal

Preparem-se! O Bolsonaro do confronto voltou para tentar ficar

Jair Bolsonaro vai dar trabalho. O cerco dos fatos ao senador Flávio Bolsonaro afeta o seu equilíbrio instável, e ele abre a tampa do bueiro. Chama os brasileiros de “maricas”, ameaça os EUA com retaliação militar, mente sobre efeitos colaterais da vacina, anuncia a cura da Covid-19, mergulha numa espiral de demência. Chega mesmo a ter um rasgo de sinceridade ao afirmar: “A minha vida aqui é uma desgraça, é problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada”. E lá vem um novo ataque aos de sempre, aos urubus: “Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem essa imprensa perturbar”, escreve Reinaldo Azevedo em sua coluna na Folha, publicada dia 13/11 na Folha. Continua a seguir e vale a leitura.


Imagine aí, leitor, que atividades a palavra “nada” resume. Não enchêssemos tanto a paciência de Bolsonaro, não existisse um país para ele governar, em que ocuparia o seu tempo, além de tomar caldo de cana e comer pastel? FHC foi entrevistado logo depois de deixar o poder. Quiseram saber se experimentava alguma sensação de vazio, alguma melancolia de rei destronado.

Respondeu muito calmamente, cito de memória, que levava consigo as preocupações de antes, suas inquietações intelectuais, seus livros. Tinha com que ocupar seu tempo distante das rinhas políticas e da disputa pelo poder. Estas, sim, ao lhe impor a ética da responsabilidade, eram mais maçantes do que as convicções de quem tem uma vida intelectual ativa, pautada por utopias, desejos, prefigurações.

Não sou especialista na psique humana. Há bons profissionais no Brasil dedicados à área. Acredito que, atravessando a casca do ogro, consigam descobrir em Bolsonaro também o ser que genuinamente sofre. E, se querem saber, ele vive a pior de todas as tragédias intelectuais: ser mero figurante de um enredo que reserva a alguém na sua posição o papel de protagonista.

Ah, Bolsonaro poderia perfeitamente dizer, parodiando o poeta: “Olhem que não há mais metafísica do que o pastel e o caldo de cana”. Ali está a sua essência. A Presidência da República o obriga a sair de um mundo em que há satisfação para os desejos. Na função em que está, não existe paz, e todas as respostas serão sempre precárias. Mais: o cargo impõe que empatize com as dores dos que sofrem. E ele veio desprovido dessa faculdade. É uma condição clínica.

À margem do poder, estimulava a fantasia de que um dia seria presidente da República, mas não era para valer. Preparou o clã para obter os benefícios oriundos da gestão de verbas de gabinete, do salário de funcionários geridos por um Queiroz, e tudo caminhava a contento, vociferando contra minorias e pregando uma rigidez de comportamento que, como resta evidente, não é seguida nem pelos membros da família.

Circunstâncias que agora não vêm ao caso, que provocaram um desequilíbrio ecológico na política, o alçaram, de fato, à Presidência. E é aí que tem início a combinação de pesadelos que o leva a dizer sandices e que pode, sim, torná-lo uma pessoa perigosa.

A função o obriga a fazer escolhas sobre temas que desconhece. Quem não desenvolve a empatia também é incapaz de manter relações de confiança. Deve ser um inferno experimentar a sensação permanente de que está sendo trapaceado. Tudo à sua volta fala um idioma que ele ignora.

A vida assim já deve ser um tormento. Mas há bem mais do que isso: o passado assombra o presente por intermédio das peripécias havidas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, agora senador. O presidente é inteligente o suficiente para saber que as chances de um desfecho virtuoso para a família são reduzidas.

O casamento da redução do auxílio emergencial com a inflação de alimentos corrói a sua popularidade e ameaça a sua posição. Esse poder que lhe tira a paz de espírito também lhe garante imunidade e lhe permite ao menos retardar a tempestade que colherá o primogênito e, por extensão, o clã.

Sim, ele dará trabalho. Testou um flerte com a racionalidade na esperança de que isso funcionasse como uma absolvição do filho e como uma trégua. Inútil. O Bolsonaro golpista está de volta. É sua identidade possível. As instituições que se preparem.

Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...