Poucas cenas de filme transmitem melhor o que é o sentimento de frustração do que o engarrafamento do início da comédia “Como Enlouquecer seu Chefe”. Em uma dança patética de buzinas e mudanças de faixa, motoristas avançam a passo de tartaruga por uma estrada na Califórnia. Tal chateação cotidiana poderia ser amenizada com a mesma estratégia usada para combater a pandemia da covid-19. O objetivo do “achatamento da curva” é distribuir melhor o número de novas infecções da covid-19 ao longo do tempo. O distanciamento social e o uso de máscaras desaceleram a disseminação do vírus para que respiradores artificiais, leitos e trabalhadores da saúde não fiquem sobrecarregados, escrevem Carlo Ratti e Anna König Jerlmyr no Valor, artigo publicado dia 20/11. Continua abaixo.
Desde os hospitais e estradas até as redes elétricas, a infraestrutura não dá conta quando a demanda excede a capacidade de pico. Ao “programar” a demanda pelos serviços médicos, o achatamento da curva tem salvado vidas.
A infraestrutura urbana sofre de picos similares de demanda. Motoristas sobrecarregam as ruas ao irem para o trabalho. Trabalhadores formam filas quando saem para almoçar e levam ao limite as redes elétricas quando voltam para casa. Alargar ruas e ampliar restaurantes cria uma infraestrutura dispendiosa que fica ociosa na maior parte do dia. Ao diminuir o pico, podemos tornar as cidades mais eficientes.
A covid-19 trouxe mudanças no padrão de trabalho que eram inconcebíveis há apenas um ano. Hoje, muitos podem trabalhar de forma escalonada, usando o escritório em diferentes horários, para evitar a superlotação. Além da redução do risco de contágio, a prática também distribui a concentração de trânsito nas ruas. No futuro, os funcionários poderiam participar de uma reunião às 9h pelo Zoom e chegar ao escritório ao meio-dia. Outros poderiam sair às 15h e arrematar o dia pela internet. A hora do rush seria coisa do passado.
As cidades, porém, precisam oferecer incentivos. As plataformas digitais podem colaborar. Em Cingapura, os motoristas pagam tarifas de pedágio automáticas baseadas no volume de trânsito. Esse modelo, conhecido como cobrança eletrônica pelo uso das ruas, vem reduzindo há décadas a demanda nas horas de pico em Cingapura, mesmo com o número de veículos tendo aumentado. À medida que a internet das coisas fica mais elaborada, esse modelo pode ser ainda mais refinado, valendo-se da força dos sensores digitais e dos incentivos, talvez via “blockchain”.
As inovações também precisam servir o bem público. Tarifas em horários de engarrafamento podem encorajar alguns a mudar seus hábitos, mas muitas pessoas (como professores, motoristas de Uber ou trabalhadores de depósitos) nem sempre podem escolher horas flexíveis de trabalho ou arcar com pedágios regressivos. Da mesma forma que achatar a curva da covid-19 requer apoio financeiro para os que não podem trabalhar em casa, a infraestrutura urbana precisa ser equitativa. No caso das tarifas de congestionamento, as pessoas podem receber descontos de acordo com seu status socioeconômico, profissão ou incapacidade. A arrecadação adicional poderia ajudar a reduzir os preços do transporte público ou subsidiar carros que não usem combustíveis fósseis.
A infraestrutura sempre enfrentará momentos de alta demanda. Desastres naturais deixam as pessoas sem opção a não ser evacuar a região, por exemplo. Em circunstâncias mais felizes, como quando milhões ligam a TV para ver a final do Super Bowl, a rede elétrica ficará sobrecarregada, e os bares de esportes, superlotados. É o preço da experiência compartilhada.
Ainda assim, “achatar a curva” teria um bom potencial em nossas cidades. Uma abordagem similar no setor elétrico, conhecido como “cortar os picos de demanda”, já mostrou que pode economizar dinheiro. Ao passar 20% dos clientes para um modelo de preço variável, uma concessionária em Oklahoma conseguiu engavetar os planos para construir uma usina para uso só nas horas de pico, que teria gerado energia em poucos momentos do dia. Da mesma forma, o congestionamento urbano poderia ser amenizado sem a necessidade de ampliar a infraestrutura, mas por meio de um uso mais racional. Em outras palavras: menos asfalto, mais chips.
Os congestionamentos diários são um inconveniente absurdo da vida moderna. A covid-19 mostrou que é possível mudar rotinas, de forma que possamos decidir como nossas cidades funcionam. Achatar a curva tem sido uma resposta trabalhosa a uma crise, mas, nas cidades, pode ser uma estratégia para trazer mais bem-estar a nossa vida cotidiana.
Carlo Ratti é professor de inovação urbana no MIT.
Anna König Jerlmyr é prefeita de Estocolmo.
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