Vale a leitura da reportagem de Ascanio Seleme publicada na revista Época, íntegra abaixo.
DE NOVA YORK A SAN FRANCISCO: O QUE UMA 'ROAD TRIP' DE 6 MIL QUILÔMETROS REVELA SOBRE EUA E BRASIL
Ascanio Seleme
Foram 5.450 quilômetros de estrada em 14 dias. Pegamos o carro, um super SUV, em Nova York e o entregamos duas semanas depois em San Francisco. Considerando os percursos extras dentro de parques e cidades, roamos 6.062 quilômetros. Ou 1.888 quilômetros a mais que a distância que separa o Oiapoque do Chuí.
Além de Nova York e San Francisco, paramos em outras sete cidades e passamos por 11 estados. Fizemos grandes paradas ou apenas pit stops em South Bend, Chicago, Sioux Falls, Rapid City, Cody, Idaho Falls, Reno e Fairfield, no Vale do Napa. Os estados percorridos foram Nova York, New Jersey, Pennsylvania, Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Wyoming, Idaho, Nevada e Califórnia.
Viajamos em três, um executivo de uma empresa de engenharia de São Paulo, um empresário de Araxá, cidade termal e produtora de leite e queijo no interior de Minas, e este jornalista. Já havíamos feito o mesmo percurso em 1973, quando tínhamos 16, 17 anos e éramos estudantes de intercâmbio. A viagem de 46 anos atrás foi num grupo de 160 jovens em comboio de quatro ônibus e era patrocinada pelo Rotary Clube.
Este relato não pretende ser um diário de viagem. Será dividido em capítulos em que aspectos da cultura e da infraestrutura americana possam ser comparados com os brasileiros. Os temas serão: Grandes Cidades; Terra do Milho; Trumpistão ou América Profunda; Parques Nacionais; Meio Ambiente; Estradas e Carro; Nevada e Deserto; e San Francisco.
GRANDES CIDADES
Nova York e Chicago têm em comum seu porte de megalópole e seu modo de vida frenético. A diferença entre essas duas cidades e São Paulo ou Rio de Janeiro é que lá tudo funciona e pouca coisa surpreende por estar fora de lugar ou de contexto. Nova York tem 20 milhões de pessoas vivendo em sua região metropolitana, Chicago tem 9,5 milhões. São números eloquentes. São Paulo tem 12 milhões e o Rio pouco mais de 6 milhões de almas.
Embora maiores, as cidades americanas têm trânsito organizado, e engarrafamentos são raros. Talvez porque ambas sejam providas de um importante sistema de transporte coletivo. Metrôs e trens cortam as duas cidades. Chicago tem ainda um eficiente serviço de transporte fluvial e o famoso Loop, os trens de superfície que rodam no centro da cidade. O Rio tem duas linhas de metrô, São Paulo quatro.
Não se veem motociclistas acelerando entre filas de carros nas maiores cidades americanas. Tampouco se ouve o barulho incessante e infernal das buzinas das motos tentando abrir caminhos onde muitas vezes não há. Mas em Nova York há um serviço de entregas feito por ciclistas tão alucinados quanto os motoqueiros brasileiros. Além deles, dezenas de milhares de cidadãos usam a bicicleta para se locomover diariamente.
Dezessete ciclistas morreram em acidentes neste ano em Nova York. Um número que mexeu com a cidade e fez o prefeito Bill de Brasil anunciar um plano de US$ 50 milhões (R$ 205 milhões) para ampliar as ciclovias. Em São Paulo, morreram 366 motoqueiros no ano passado, ou um a cada dia. Mesmo assim, o que se fez foi aumentar o limite da velocidade média nas grandes vias da cidade. Não circulamos de carro nas duas cidades, apenas entramos e saímos dirigindo.
Os rios Hudson e Chicago são exemplos de como é possível manter limpos os cursos de água mesmo em grandes centros urbanos. No Chicago, pode-se alugar caiaques para remar entre os estupendos arranha-céus da cidade. Imagine você remando no Tietê, em São Paulo. E no Lago Michigan a água é transparente, não há resíduos ou lixo flutuando e nunca se viu dezenas de milhares peixes mortos boiando em sua superfície. O Michigan tem 58 quilômetros quadrados, contra 7,8 quilômetros quadrados da Lagoa Rodrigo de Freitas.
TERRA DO MILHO
Há uma vasta região no Norte dos Estados Unidos conhecido como Corn Belt, ou Cinturão do Milho, formado pelos estados de Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Minnesota, South Dakota, Nebraska, Kansas e Missouri. Fora os três últimos, rodamos todos os outros durante cinco dias. A paisagem é monótona, superada apenas pelas retas sem fim do deserto de Nevada, de que vamos tratar mais adiante. O que se vê são plantações intermináveis de milho dos dois lados da estrada. Num determinado dia, rodamos 300 milhas de milharal. Ou 480 quilômetros de milho, uma plantação que no Brasil se estenderia do Rio a Belo Horizonte.
Os Estados Unidos vão produzir neste ano 380 milhões de toneladas de milho, quantidade três vezes maior que a produção de soja no Brasil. Toda a agricultura no Cinturão do Milho é mecanizada. Na cidade de Mitchell, em Dakota do Sul, há uma enorme construção cuja fachada é toda revestida de espigas, palhas, pés, grãos e barbas de milho, formando um mosaico que a cada ano é refeito com motivo diferente. O Corn Palace, ou Castelo de Milho, que recebe 500 mil turistas por ano, quase todos americanos, neste ano homenageia o torpedeiro USS South Dakota 57.
As pessoas se orgulham de morar na sede mundial do milho. Em Sioux City, uma cidade de 82 mil habitantes em Iowa, erguida ao redor do Rio Missouri, a moça da recepção do hotel nos desencorajou a procurar um restaurante italiano. “Aqui nós comemos milho. Milho e batata, senhor.” Sioux City, aliás, é belíssima. O Rio Missouri tem umas lindas corredeiras bem no centro da cidade. Em seu entorno foi erguido um parque que se transformou no principal centro de lazer local e um lugar de visitação permanente de turistas.
TRUMPISTÃO OU A AMÉRICA PROFUNDA
Nessa mesma região, engrandecida por alguns estados ao norte, sul e oeste, estende-se o Trumpistão, a América Profunda que votou em massa em Donald Trump na eleição de 2016 e que promete voltar a sufragá-lo no ano que vem. Uma boa parte, talvez a metade, de nossa jornada foi pelas estradas dos conhecidos rednecks, os homens brancos, de baixa renda e origem humilde, tradicionalistas e de tendência política à direita. Se fosse comparado ao Brasil, o Trumpistão seria formado pelos estados das regiões Sul, do Centro-Oeste e Norte do Brasil.
Aqui, os americanos se orgulham das armas que possuem. Nas cidades que andamos, lojas vendem cartazes e camisetas com dizeres que refletem o estado de espírito da região. A frase mais comum é “I plead the 2nd”, que significa mais ou menos “Eu faço uso da Segunda” Emenda da Constituição, que estabelece que “o direito do povo de possuir e portar armas não será violado”. Trata-se de uma corruptela da famosa “I plead the fifth”, que significa “Faço uso da Quinta” Emenda, ou, em outras palavras, “preservo meu direito de ficar calado diante de um tribunal, para não me incriminar”.
Apesar da abundância de dias que passamos no Trumpistão e das inúmeras pequenas localidades em que nos hospedamos ou paramos para abastecer e comer, em nenhum momento fomos intimidados. Fora os malucos que saem atirando em escolas, shoppings ou em shows, as pessoas por aqui aparentemente são mais reativas que provocadoras. Cinquenta anos nos separam de Easy Rider, o filme que mostrava rednecks agressivos, intolerantes e assassinos. De qualquer modo, melhor não dar mole. Um cartaz comum na entrada de propriedades rurais por aqui traz uma arma apontando em sua direção com a frase: “Não tem nada aqui pelo qual valha a pena morrer”.
PARQUES NACIONAIS
Esse é um capítulo especial da viagem. Os parques que visitamos ao longo da estrada são alguns dos mais belos do país e do mundo. E que show de infraestrutura. Estivemos em Badlands, Mount Rushmore, Custer Park, Black Hill, Bighorn, Yellowstone e Lake Tahoe. Todos estavam repletos de visitantes, não importava o dia da semana. Alguns são gratuitos, mas a maioria cobra taxas, alguns exigem reservas. Mas vale a pena pagar ou reservar.
O maior que visitamos, o Parque Nacional de Yellowstone, têm 8.900 quilômetros quadrados de área e fica majoritariamente no estado de Wyoming, mas também ocupa porções de Montana e Idaho. Pelo menos 200 funcionários fiscalizam o parque e dão assistência e informações aos visitantes. Todo ele é cortado por estradas e, nos pontos mais importantes, como a área do gêiser mais famoso do mundo, o Old Faithful, há hotel, restaurantes, área de camping e uma clínica médica totalmente equipada para atender a qualquer tipo de emergência. No total, são três clínicas e três hotéis dentro do parque.
Ao contrário dos parques brasileiros, que são restritivos (embora não protegidos, por falta de fiscalização) como se fossem santuários, Yellowstone estimula canoagem, pesca (em estação específica), ciclismo, caminhadas, camping, observação de animais, inclusive selvagens, como búfalos e ursos, e todas as demais atividades ao ar livre. No caso da observação de animais selvagens, o parque vende aos interessados sprays contra ursos. Se você for fazer caminhadas em Yellowstone, melhor levar um spray desses na mochila.
Yellowstone não fecha nunca, embora duas das três clínicas só funcionem no verão e algumas estradas menores sejam interditadas no inverno por causa da neve. Em nossa visita, numa terça-feira de outono, todos os três hotéis estavam lotados. Fomos obrigados a dormir em Cody, uma cidadezinha tipo bangue-bangue às margens do parque. O lugarejo tem esse nome em homenagem ao lendário Buffalo Bill, que nasceu como William Frederick Cody. Na verdade, Buffalo Bill fundou a cidade em 1895, quando instalou um rancho no lugar e depois montou uma hospedaria.
MEIO AMBIENTE
Um detalhe impressionante foi colhido durante todo o percurso da viagem e notado especialmente em Lake Tahoe, localizado parte em Nevada e parte na Califórnia. Em todos os cantos do país, nas estradas, nas cidades, nos parques, o que se vê são espaços públicos limpos, rios cristalinos e matas virgens, apesar de serem frequentados por milhares de pessoas todos os dias.
O detalhe de Lake Tahoe foi uma informação publicada num noticiário de TV de Nevada. Uma equipe de mergulhadores vai iniciar no ano que vem uma intensa campanha para recolher resíduos depositados no leito do lago de águas transparentes. O objetivo é retirar toda e qualquer sobra deixada ali pelo homem. Uma primeira amostra foi realizada recentemente, e a maior parte do material recolhido era datada dos anos 70. O que mostra como a consciência ambientalista evolui de lá para cá.
Tahoe tem 72 milhas (118 quilômetros) de circunferência. Em alguns pontos, sua profundidade ultrapassa 500 metros. A água é limpa e potável, apesar de a seu redor haver milhares de residências, hotéis e resorts, além de uma infraestrutura importante dedicada a esportes náuticos. Em todos os parques nacionais americanos a multa por jogar lixo fora de lixeiras de US$ 1.000 (R$ 4.100). As pessoas claro que respeitam.
Há nos Estados Unidos, como aqui no Brasil, períodos de seca em que descuidos humanos podem resultar em queimadas de florestas nativas. Ao longo da viagem, sobretudo nas regiões de enormes pinheirais de Bighorn, Black Hill e Yellowstone, vimos vastas áreas de pinheiros queimados ao longo da estrada. Falo de áreas de alguns quilômetros quadrados sapecadas pelo fogo. A paisagem é desoladora. Não se conhece, contudo, nenhum tipo de queimada provocada para abrir pastos ou preparar terreno para plantios.
ESTRADAS, CARRO
Rodamos 5.450 quilômetros de Nova York a San Francisco e não vimos nem ao menos um buraco nas muitas estradas que usamos. Eu disse nenhum buraco. Nem nas grandes highways, nem nas pequenas estaduais e vicinais. Nada. Zero. Vimos muitas obras. Mas bastante sinalizadas, organizadas, limpas, com o trânsito fluindo como se nada houvera.
Além do asfalto impecável (muitas vezes a cobertura é de concreto), as estradas têm traçados sempre muito próximos do ideal. No deserto de Nevada e nas imensas plantações de milho do Meio-Oeste, as retas são intermináveis. Você pode colocar o carro no automático, na velocidade permitida, e apenas se ocupar de quem vai à frente ou atrás em seu carro. A velocidade varia de acordo com o tamanho da estrada e o volume de tráfego e vai de 45 a 80 milhas por hora (72 a 128 quilômetros por hora).
Usamos um SUV grande que supúnhamos bebedor de gasolina. Mas, dadas as condições que queríamos para fazer um trajeto tão grande, não cabia um carro menor e mais econômico. Para surpresa nossa, o consumo foi quase tão bom quanto de um carro médio brasileiro. Gastamos em média 1 litro de gasolina para cada 10,37 quilômetros percorridos. As boas estradas que permitem velocidades constantes contribuíram muito para esse resultado.
Um detalhe bastante interessante. Numa manhã, paramos num restaurante na beira da estrada para tomar café. Descemos, tomamos café, compramos água e só ao voltarmos ao carro percebemos que deixamos a porta aberta e o motor ligado. Foi um mal-entendido entre o motorista da hora (nos revezamos no volante durante toda a jornada) e os demais. Uma bobeira imensa, enfim. O carro estava lá, funcionando, mas lá. O veículo não foi roubado e nada em seu interior foi tocado. Um de nós havia deixado passaporte e dinheiro dentro do carro.
NEVADA E DESERTO
Em Nevada, estado no meio do deserto no noroeste americano, o jogo, a prostituição e a comercialização e o consumo de maconha são legais. Mas o grande negócio mesmo do estado são os cassinos. Em todos os cantos há casas de jogo, mas são nas grandes Las Vegas e Reno que os enormes cassinos estão instalados. Nós passamos por Reno, repetindo a visita feita havia 46 anos. Nos hospedamos no Grand Sierra Resort & Cassino, um super-hotel de 25 andares e um cassino gigantesco. A diária do hotel de cinco estrelas ficou em US$ 120 (R$ 492), barato para o conforto oferecido. Mas a lógica é a do jogo. O preço baixo atrai pessoas para as mesas de roleta e para os caça-níqueis.
O hotel é sofisticado, embora às vezes você pense estar andando num ambiente dos anos 80, já que o tabaco é permitido em todos os espaços do cassino, inclusive charutos. Só é proibida a maconha, por determinação de lei federal que pretende proteger o apostador. O público é formado em sua ampla maioria de americanos de classe média, mas há também muitos orientais, chineses, sobretudo, que sempre andam em grupos. Como em todos os cassinos, há inúmeras pessoas solitárias, sentadas diante de máquinas gastando moedas, fumando e bebendo. A bebida, aliás, é gratuita e oferecida aos apostadores por garçonetes que circulam entre as máquinas.
O deserto de Nevada é muito parecido com o nosso semiárido nordestino. Ao contrário do Brasil, são pouquíssimos os habitantes dessa região inóspita. Rodamos pelo menos 200 milhas (321 quilômetros) em linha praticamente reta e sem ver nenhuma cidade, apenas algumas currutelas em que se pode parar para abastecer e comer alguma coisa. O estado americano não tem programa de bolsas e incentivos que permitam populações inteiras viver em locais sem água e sem infraestrutura.
SAN FRANCISCO
Fizemos um pequeno desvio da rota vindo de Napa Valley para entrarmos em San Francisco pela Golden Gate. Nossa última parada merecia a grandiloquência. Essa foi minha quarta vez na cidade. Sempre me impressionou o número de desajustados perambulando nas ruas, mas desta vez a curva era mais acentuada, o volume mais amplo, o peso muito maior. Em certos pontos de San Francisco me senti como se estivesse na Candelária. O número de moradores de rua da mais bela e charmosa cidade da Califórnia choca até mesmo àqueles que estão acostumados com o quadro.
As explicações são diversas, e há teses de doutores de sociologia e antropologia que não temos espaço nem tempo para tratar aqui. Mas é fato que a maioria dos homeless da cidade são viciados em drogas pesadas. Outros tantos são desempregados e desiludidos, mas há também um bom número de pessoas que não consegue pagar os aluguéis de San Francisco, elevados às alturas graças à riqueza que inunda o estado desde o Vale do Silício.
E diante de um quadro que beira a escândalo, uma história publicada pelo jornal San Francisco Chronicle na terça-feira 1º de outubro revela um lado sinistro que conhecemos bem no Brasil. Moradores e donos de lojas da Clinton Park e da Market Street estão colocando imensas pedras sobre as calçadas em frente a seus imóveis para evitar que pessoas sem teto acampem no lugar. Lembra as calçadas do Rio lavadas com creolina ou gasolina de modo a impregnar o piso e evitar que miseráveis se acomodem ali à noite. O Brasil inventou também as grades de ferro que privatizaram calçadas para impedir que virem dormitórios de desalojados.
San Francisco, uma das cidades mais ricas do mundo, não deixa de ser exuberante com seus morros e sua baía. Mas é estarrecedor que ao mesmo tempo se pareça com Caracas, La Paz ou o centro do Rio.
O Corn Palace, ou Castelo de Milho, que recebe 500 mil turistas por ano, quase todos americanos, este ano homenageia o torpedeiro USS South Dakota 57 Foto: Arquivo pessoal
DE NOVA YORK A SAN FRANCISCO: O QUE UMA 'ROAD TRIP' DE 6 MIL QUILÔMETROS REVELA SOBRE EUA E BRASIL
Ascanio Seleme
Foram 5.450 quilômetros de estrada em 14 dias. Pegamos o carro, um super SUV, em Nova York e o entregamos duas semanas depois em San Francisco. Considerando os percursos extras dentro de parques e cidades, roamos 6.062 quilômetros. Ou 1.888 quilômetros a mais que a distância que separa o Oiapoque do Chuí.
Além de Nova York e San Francisco, paramos em outras sete cidades e passamos por 11 estados. Fizemos grandes paradas ou apenas pit stops em South Bend, Chicago, Sioux Falls, Rapid City, Cody, Idaho Falls, Reno e Fairfield, no Vale do Napa. Os estados percorridos foram Nova York, New Jersey, Pennsylvania, Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Wyoming, Idaho, Nevada e Califórnia.
Viajamos em três, um executivo de uma empresa de engenharia de São Paulo, um empresário de Araxá, cidade termal e produtora de leite e queijo no interior de Minas, e este jornalista. Já havíamos feito o mesmo percurso em 1973, quando tínhamos 16, 17 anos e éramos estudantes de intercâmbio. A viagem de 46 anos atrás foi num grupo de 160 jovens em comboio de quatro ônibus e era patrocinada pelo Rotary Clube.
Este relato não pretende ser um diário de viagem. Será dividido em capítulos em que aspectos da cultura e da infraestrutura americana possam ser comparados com os brasileiros. Os temas serão: Grandes Cidades; Terra do Milho; Trumpistão ou América Profunda; Parques Nacionais; Meio Ambiente; Estradas e Carro; Nevada e Deserto; e San Francisco.
GRANDES CIDADES
Nova York e Chicago têm em comum seu porte de megalópole e seu modo de vida frenético. A diferença entre essas duas cidades e São Paulo ou Rio de Janeiro é que lá tudo funciona e pouca coisa surpreende por estar fora de lugar ou de contexto. Nova York tem 20 milhões de pessoas vivendo em sua região metropolitana, Chicago tem 9,5 milhões. São números eloquentes. São Paulo tem 12 milhões e o Rio pouco mais de 6 milhões de almas.
Embora maiores, as cidades americanas têm trânsito organizado, e engarrafamentos são raros. Talvez porque ambas sejam providas de um importante sistema de transporte coletivo. Metrôs e trens cortam as duas cidades. Chicago tem ainda um eficiente serviço de transporte fluvial e o famoso Loop, os trens de superfície que rodam no centro da cidade. O Rio tem duas linhas de metrô, São Paulo quatro.
Não se veem motociclistas acelerando entre filas de carros nas maiores cidades americanas. Tampouco se ouve o barulho incessante e infernal das buzinas das motos tentando abrir caminhos onde muitas vezes não há. Mas em Nova York há um serviço de entregas feito por ciclistas tão alucinados quanto os motoqueiros brasileiros. Além deles, dezenas de milhares de cidadãos usam a bicicleta para se locomover diariamente.
Dezessete ciclistas morreram em acidentes neste ano em Nova York. Um número que mexeu com a cidade e fez o prefeito Bill de Brasil anunciar um plano de US$ 50 milhões (R$ 205 milhões) para ampliar as ciclovias. Em São Paulo, morreram 366 motoqueiros no ano passado, ou um a cada dia. Mesmo assim, o que se fez foi aumentar o limite da velocidade média nas grandes vias da cidade. Não circulamos de carro nas duas cidades, apenas entramos e saímos dirigindo.
Os rios Hudson e Chicago são exemplos de como é possível manter limpos os cursos de água mesmo em grandes centros urbanos. No Chicago, pode-se alugar caiaques para remar entre os estupendos arranha-céus da cidade. Imagine você remando no Tietê, em São Paulo. E no Lago Michigan a água é transparente, não há resíduos ou lixo flutuando e nunca se viu dezenas de milhares peixes mortos boiando em sua superfície. O Michigan tem 58 quilômetros quadrados, contra 7,8 quilômetros quadrados da Lagoa Rodrigo de Freitas.
TERRA DO MILHO
Há uma vasta região no Norte dos Estados Unidos conhecido como Corn Belt, ou Cinturão do Milho, formado pelos estados de Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Minnesota, South Dakota, Nebraska, Kansas e Missouri. Fora os três últimos, rodamos todos os outros durante cinco dias. A paisagem é monótona, superada apenas pelas retas sem fim do deserto de Nevada, de que vamos tratar mais adiante. O que se vê são plantações intermináveis de milho dos dois lados da estrada. Num determinado dia, rodamos 300 milhas de milharal. Ou 480 quilômetros de milho, uma plantação que no Brasil se estenderia do Rio a Belo Horizonte.
Os Estados Unidos vão produzir neste ano 380 milhões de toneladas de milho, quantidade três vezes maior que a produção de soja no Brasil. Toda a agricultura no Cinturão do Milho é mecanizada. Na cidade de Mitchell, em Dakota do Sul, há uma enorme construção cuja fachada é toda revestida de espigas, palhas, pés, grãos e barbas de milho, formando um mosaico que a cada ano é refeito com motivo diferente. O Corn Palace, ou Castelo de Milho, que recebe 500 mil turistas por ano, quase todos americanos, neste ano homenageia o torpedeiro USS South Dakota 57.
As pessoas se orgulham de morar na sede mundial do milho. Em Sioux City, uma cidade de 82 mil habitantes em Iowa, erguida ao redor do Rio Missouri, a moça da recepção do hotel nos desencorajou a procurar um restaurante italiano. “Aqui nós comemos milho. Milho e batata, senhor.” Sioux City, aliás, é belíssima. O Rio Missouri tem umas lindas corredeiras bem no centro da cidade. Em seu entorno foi erguido um parque que se transformou no principal centro de lazer local e um lugar de visitação permanente de turistas.
TRUMPISTÃO OU A AMÉRICA PROFUNDA
Nessa mesma região, engrandecida por alguns estados ao norte, sul e oeste, estende-se o Trumpistão, a América Profunda que votou em massa em Donald Trump na eleição de 2016 e que promete voltar a sufragá-lo no ano que vem. Uma boa parte, talvez a metade, de nossa jornada foi pelas estradas dos conhecidos rednecks, os homens brancos, de baixa renda e origem humilde, tradicionalistas e de tendência política à direita. Se fosse comparado ao Brasil, o Trumpistão seria formado pelos estados das regiões Sul, do Centro-Oeste e Norte do Brasil.
Aqui, os americanos se orgulham das armas que possuem. Nas cidades que andamos, lojas vendem cartazes e camisetas com dizeres que refletem o estado de espírito da região. A frase mais comum é “I plead the 2nd”, que significa mais ou menos “Eu faço uso da Segunda” Emenda da Constituição, que estabelece que “o direito do povo de possuir e portar armas não será violado”. Trata-se de uma corruptela da famosa “I plead the fifth”, que significa “Faço uso da Quinta” Emenda, ou, em outras palavras, “preservo meu direito de ficar calado diante de um tribunal, para não me incriminar”.
Apesar da abundância de dias que passamos no Trumpistão e das inúmeras pequenas localidades em que nos hospedamos ou paramos para abastecer e comer, em nenhum momento fomos intimidados. Fora os malucos que saem atirando em escolas, shoppings ou em shows, as pessoas por aqui aparentemente são mais reativas que provocadoras. Cinquenta anos nos separam de Easy Rider, o filme que mostrava rednecks agressivos, intolerantes e assassinos. De qualquer modo, melhor não dar mole. Um cartaz comum na entrada de propriedades rurais por aqui traz uma arma apontando em sua direção com a frase: “Não tem nada aqui pelo qual valha a pena morrer”.
PARQUES NACIONAIS
Esse é um capítulo especial da viagem. Os parques que visitamos ao longo da estrada são alguns dos mais belos do país e do mundo. E que show de infraestrutura. Estivemos em Badlands, Mount Rushmore, Custer Park, Black Hill, Bighorn, Yellowstone e Lake Tahoe. Todos estavam repletos de visitantes, não importava o dia da semana. Alguns são gratuitos, mas a maioria cobra taxas, alguns exigem reservas. Mas vale a pena pagar ou reservar.
O maior que visitamos, o Parque Nacional de Yellowstone, têm 8.900 quilômetros quadrados de área e fica majoritariamente no estado de Wyoming, mas também ocupa porções de Montana e Idaho. Pelo menos 200 funcionários fiscalizam o parque e dão assistência e informações aos visitantes. Todo ele é cortado por estradas e, nos pontos mais importantes, como a área do gêiser mais famoso do mundo, o Old Faithful, há hotel, restaurantes, área de camping e uma clínica médica totalmente equipada para atender a qualquer tipo de emergência. No total, são três clínicas e três hotéis dentro do parque.
Ao contrário dos parques brasileiros, que são restritivos (embora não protegidos, por falta de fiscalização) como se fossem santuários, Yellowstone estimula canoagem, pesca (em estação específica), ciclismo, caminhadas, camping, observação de animais, inclusive selvagens, como búfalos e ursos, e todas as demais atividades ao ar livre. No caso da observação de animais selvagens, o parque vende aos interessados sprays contra ursos. Se você for fazer caminhadas em Yellowstone, melhor levar um spray desses na mochila.
Yellowstone não fecha nunca, embora duas das três clínicas só funcionem no verão e algumas estradas menores sejam interditadas no inverno por causa da neve. Em nossa visita, numa terça-feira de outono, todos os três hotéis estavam lotados. Fomos obrigados a dormir em Cody, uma cidadezinha tipo bangue-bangue às margens do parque. O lugarejo tem esse nome em homenagem ao lendário Buffalo Bill, que nasceu como William Frederick Cody. Na verdade, Buffalo Bill fundou a cidade em 1895, quando instalou um rancho no lugar e depois montou uma hospedaria.
MEIO AMBIENTE
Um detalhe impressionante foi colhido durante todo o percurso da viagem e notado especialmente em Lake Tahoe, localizado parte em Nevada e parte na Califórnia. Em todos os cantos do país, nas estradas, nas cidades, nos parques, o que se vê são espaços públicos limpos, rios cristalinos e matas virgens, apesar de serem frequentados por milhares de pessoas todos os dias.
O detalhe de Lake Tahoe foi uma informação publicada num noticiário de TV de Nevada. Uma equipe de mergulhadores vai iniciar no ano que vem uma intensa campanha para recolher resíduos depositados no leito do lago de águas transparentes. O objetivo é retirar toda e qualquer sobra deixada ali pelo homem. Uma primeira amostra foi realizada recentemente, e a maior parte do material recolhido era datada dos anos 70. O que mostra como a consciência ambientalista evolui de lá para cá.
Tahoe tem 72 milhas (118 quilômetros) de circunferência. Em alguns pontos, sua profundidade ultrapassa 500 metros. A água é limpa e potável, apesar de a seu redor haver milhares de residências, hotéis e resorts, além de uma infraestrutura importante dedicada a esportes náuticos. Em todos os parques nacionais americanos a multa por jogar lixo fora de lixeiras de US$ 1.000 (R$ 4.100). As pessoas claro que respeitam.
Há nos Estados Unidos, como aqui no Brasil, períodos de seca em que descuidos humanos podem resultar em queimadas de florestas nativas. Ao longo da viagem, sobretudo nas regiões de enormes pinheirais de Bighorn, Black Hill e Yellowstone, vimos vastas áreas de pinheiros queimados ao longo da estrada. Falo de áreas de alguns quilômetros quadrados sapecadas pelo fogo. A paisagem é desoladora. Não se conhece, contudo, nenhum tipo de queimada provocada para abrir pastos ou preparar terreno para plantios.
ESTRADAS, CARRO
Rodamos 5.450 quilômetros de Nova York a San Francisco e não vimos nem ao menos um buraco nas muitas estradas que usamos. Eu disse nenhum buraco. Nem nas grandes highways, nem nas pequenas estaduais e vicinais. Nada. Zero. Vimos muitas obras. Mas bastante sinalizadas, organizadas, limpas, com o trânsito fluindo como se nada houvera.
Além do asfalto impecável (muitas vezes a cobertura é de concreto), as estradas têm traçados sempre muito próximos do ideal. No deserto de Nevada e nas imensas plantações de milho do Meio-Oeste, as retas são intermináveis. Você pode colocar o carro no automático, na velocidade permitida, e apenas se ocupar de quem vai à frente ou atrás em seu carro. A velocidade varia de acordo com o tamanho da estrada e o volume de tráfego e vai de 45 a 80 milhas por hora (72 a 128 quilômetros por hora).
Usamos um SUV grande que supúnhamos bebedor de gasolina. Mas, dadas as condições que queríamos para fazer um trajeto tão grande, não cabia um carro menor e mais econômico. Para surpresa nossa, o consumo foi quase tão bom quanto de um carro médio brasileiro. Gastamos em média 1 litro de gasolina para cada 10,37 quilômetros percorridos. As boas estradas que permitem velocidades constantes contribuíram muito para esse resultado.
Um detalhe bastante interessante. Numa manhã, paramos num restaurante na beira da estrada para tomar café. Descemos, tomamos café, compramos água e só ao voltarmos ao carro percebemos que deixamos a porta aberta e o motor ligado. Foi um mal-entendido entre o motorista da hora (nos revezamos no volante durante toda a jornada) e os demais. Uma bobeira imensa, enfim. O carro estava lá, funcionando, mas lá. O veículo não foi roubado e nada em seu interior foi tocado. Um de nós havia deixado passaporte e dinheiro dentro do carro.
NEVADA E DESERTO
Em Nevada, estado no meio do deserto no noroeste americano, o jogo, a prostituição e a comercialização e o consumo de maconha são legais. Mas o grande negócio mesmo do estado são os cassinos. Em todos os cantos há casas de jogo, mas são nas grandes Las Vegas e Reno que os enormes cassinos estão instalados. Nós passamos por Reno, repetindo a visita feita havia 46 anos. Nos hospedamos no Grand Sierra Resort & Cassino, um super-hotel de 25 andares e um cassino gigantesco. A diária do hotel de cinco estrelas ficou em US$ 120 (R$ 492), barato para o conforto oferecido. Mas a lógica é a do jogo. O preço baixo atrai pessoas para as mesas de roleta e para os caça-níqueis.
O hotel é sofisticado, embora às vezes você pense estar andando num ambiente dos anos 80, já que o tabaco é permitido em todos os espaços do cassino, inclusive charutos. Só é proibida a maconha, por determinação de lei federal que pretende proteger o apostador. O público é formado em sua ampla maioria de americanos de classe média, mas há também muitos orientais, chineses, sobretudo, que sempre andam em grupos. Como em todos os cassinos, há inúmeras pessoas solitárias, sentadas diante de máquinas gastando moedas, fumando e bebendo. A bebida, aliás, é gratuita e oferecida aos apostadores por garçonetes que circulam entre as máquinas.
O deserto de Nevada é muito parecido com o nosso semiárido nordestino. Ao contrário do Brasil, são pouquíssimos os habitantes dessa região inóspita. Rodamos pelo menos 200 milhas (321 quilômetros) em linha praticamente reta e sem ver nenhuma cidade, apenas algumas currutelas em que se pode parar para abastecer e comer alguma coisa. O estado americano não tem programa de bolsas e incentivos que permitam populações inteiras viver em locais sem água e sem infraestrutura.
SAN FRANCISCO
Fizemos um pequeno desvio da rota vindo de Napa Valley para entrarmos em San Francisco pela Golden Gate. Nossa última parada merecia a grandiloquência. Essa foi minha quarta vez na cidade. Sempre me impressionou o número de desajustados perambulando nas ruas, mas desta vez a curva era mais acentuada, o volume mais amplo, o peso muito maior. Em certos pontos de San Francisco me senti como se estivesse na Candelária. O número de moradores de rua da mais bela e charmosa cidade da Califórnia choca até mesmo àqueles que estão acostumados com o quadro.
As explicações são diversas, e há teses de doutores de sociologia e antropologia que não temos espaço nem tempo para tratar aqui. Mas é fato que a maioria dos homeless da cidade são viciados em drogas pesadas. Outros tantos são desempregados e desiludidos, mas há também um bom número de pessoas que não consegue pagar os aluguéis de San Francisco, elevados às alturas graças à riqueza que inunda o estado desde o Vale do Silício.
E diante de um quadro que beira a escândalo, uma história publicada pelo jornal San Francisco Chronicle na terça-feira 1º de outubro revela um lado sinistro que conhecemos bem no Brasil. Moradores e donos de lojas da Clinton Park e da Market Street estão colocando imensas pedras sobre as calçadas em frente a seus imóveis para evitar que pessoas sem teto acampem no lugar. Lembra as calçadas do Rio lavadas com creolina ou gasolina de modo a impregnar o piso e evitar que miseráveis se acomodem ali à noite. O Brasil inventou também as grades de ferro que privatizaram calçadas para impedir que virem dormitórios de desalojados.
San Francisco, uma das cidades mais ricas do mundo, não deixa de ser exuberante com seus morros e sua baía. Mas é estarrecedor que ao mesmo tempo se pareça com Caracas, La Paz ou o centro do Rio.
O Corn Palace, ou Castelo de Milho, que recebe 500 mil turistas por ano, quase todos americanos, este ano homenageia o torpedeiro USS South Dakota 57 Foto: Arquivo pessoal
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