Valor: novo filme de Affleck acerta a mão no drama pós-apocalíptico que vislumbra sociedade mergulhada no caos sem a presença feminina
Novo longa de Casey Affleck traz pai que protege filha em mundo sem mulheres
Por Elaine Guerini — Para o Valor, de Berlim
A história de um pai desesperado em proteger e esconder a filha, depois que uma praga extermina quase todas as mulheres do planeta, soa como a melhor resposta para um cineasta que foi acusado de assédio sexual. “Mas não é o caso”, despista Casey Affleck, ao promover o seu último filme, “A Luz no Fim do Mundo”. Ainda que a motivação não seja a de assumidamente buscar uma redenção, o diretor acerta a mão no drama pós-apocalíptico que vislumbra uma sociedade mergulhada no caos sem a presença feminina.
Uma das atrações do último Festival de Cinema de Berlim, o longa-metragem que chega às telas brasileiras no dia 17 não só tenta limpar um pouco a imagem do diretor como se mostra em sintonia com a nova onda feminista. “Não era a intenção, já que o filme foi concebido, escrito e rodado antes que essas questões entrassem em discussão”, diz Affleck, de 44 anos, referindo-se principalmente aos movimentos Me Too e Time’s Up.
Diretor acerta a mão no drama pós-apocalíptico que vislumbra sociedade mergulhada no caos sem a presença feminina
A trama calcada no empoderamento feminino, à medida que apresenta um mundo mais desumano sem a mulher, começou a ser filmada em fevereiro de 2017. As campanhas contra o assédio sexual nasceram no fim daquele ano e no início de 2018 - como uma decorrência da enxurrada de acusações contra o produtor Harvey Weinstein.
As alegações contra Affleck, no entanto, ganharam espaço na mídia um pouco antes, no começo de 2017, assim que ele recebeu a sua indicação ao Oscar de melhor ator, por “Manchester à Beira-Mar” (2016), estatueta que acabou levando para casa. Por estar sob os holofotes durante a campanha pelo prêmio da Academia, o ator, que é irmão de Ben Affleck, viu antigos casos de má conduta sexual contra ele ressurgirem com força nos noticiários.
Em 2010, Affleck foi processado por assédio sexual pela produtora Amanda White e pela diretora de fotografia Magdalena Gorka, com as quais fez acordo para que os casos não chegassem aos tribunais. Ambas trabalharam com Affleck em seu primeiro longa-metragem como diretor, o “mockumentary” “Eu Ainda Estou Aqui” (2010), estrelado por seu então cunhado, Joaquin Phoenix.
Com a desculpa de registrar uma suposta transição profissional de Phoenix, de ator para rapper, foram rodadas várias cenas de nudez, de uso de drogas, de festinhas com prostitutas e até de sexo oral com uma de suas assistentes. “Aquilo foi um semidocumentário inspirado em outras coisas, como Andy Kaufman (1949-1984)”, conta, referindo-se ao comediante que zombava de personalidades, fazia pegadinhas com o público e inventava histórias sobre si mesmo.
Nem parece que o delicado “A Luz no Fim do Mundo” foi realizado pelo mesmo diretor de “Eu Ainda Estou Aqui”. “Dessa vez, quis experimentar uma forma de filmar clássica, contando uma história mais próxima de quem eu sou e das coisas que me interessam”, afirma Affleck, citando a paternidade como um dos tópicos que melhor o representam no cinema.
Inicialmente, a ideia era filmar o cotidiano de um pai que cria sozinho os seus dois filhos - a exemplo de Affleck, que se divorciou em 2017 da atriz Summer Phoenix, com quem teve dois meninos (Indiana, de 15 anos, e Atticus, de 11). “O argumento evoluiu gradualmente ao longo dos anos, baseado em certas histórias que contei aos meus filhos e diferentes conversas que tive com eles.”
Como os filhos de Affleck não queriam que o pai escrevesse uma trama inspirada neles, a solução foi mudar a dinâmica para um relacionamento entre pai e filha. “Por ser próximo das minhas sobrinhas, criei a protagonista baseada na personalidade delas”, diz, referindo-se às filhas de Ben Affleck e de Jennifer Garner: Violet Anne, de 13 anos, e Seraphine Rose, de 10. “Tive de repensar todo o argumento, já que o pai tem conversas diferentes com uma filha. E são outras as preocupações também.”
Ambientado em uma sociedade distópica, “A Luz no Fim do Mundo” traz o próprio Affleck no papel do pai, Caleb, um homem com um único objetivo: garantir a sobrevivência e o futuro da filha, Rag (Anna Pniowsky), de 11 anos. Ela é uma das raras meninas que sobreviveu depois que um vírus, propagado uma década antes, praticamente dizimou a população feminina - incluindo a mãe da garota, vivida por Elisabeth Moss e vista aqui apenas em flashbacks.
Com a escassez de mulheres, as poucas que sobraram são literalmente caçadas pelos homens, aparentemente mais embrutecidos. Para fugir das constantes ameaças, Caleb e Rag passam grande parte de suas vidas à margem da sociedade, escondidos em florestas. A garota ainda disfarça a sua feminilidade, usando cabelos curtos e roupas de menino. Quando circulam pelos centros, quase sempre à procura de comida e de livros, Rag é sempre apresentada pelo pai aos outros homens como um garoto, o que muitas vezes levanta suspeitas.
“Talvez seja um filme feminista, pelos valores inseridos nele. Mas eu não saberia dizer o que classifica uma obra como tal”, conta Affleck. O diretor se sente mais à vontade definindo “A Luz no Fim do Mundo” como “a trajetória de uma garota que se afirma como uma contadora de histórias”. “Ela começa a se definir como mulher com a narrativa que escolhe”, diz, lembrando que a protagonista inicia o filme ouvindo uma história do pai. Mais adiante, ela terá a sua versão para a mesma.
A dinâmica entre pai e filha é construída com muita sensibilidade por Affleck, o que aumenta a apreensão do espectador a cada ameaça que surge. E são muitas, sem que o filme precise necessariamente mergulhar nos aspectos mais aterrorizantes. O cineasta deixa por conta da imaginação da plateia o que acontece com as mulheres escondidas que eventualmente são capturadas.
“Embora eu ame ficção científica, como ‘Mad Max’ (1979) e ‘Império das Cinzas’ (1989), vemos isso apenas de relance aqui”, afirma ele, comentando que o mesmo vale para o terror. “Houve um momento em que o filme parecia caminhar para esse gênero, mas, no final, ficou apenas com alguns traços.”
E o que mais atrai Affleck nas tramas pós-apocalípticas? “Histórias assim nunca desaparecem por imaginarem como seria a vida se pudéssemos varrer toda a bagunça que os humanos acumulam, inclusive as ideologias e os governos.” Só assim a sociedade poderia se voltar ao que é elementar. “Quando todo o resto some, temos algo como ‘Esperando Godot’ ou como os personagens Rosencrantz e Guildenstern [da peça “Hamlet”]. Assim que isolamos um relacionamento, elevamos as possibilidades dramáticas. É tudo uma questão de vida ou morte.”
Por Elaine Guerini — Para o Valor, de Berlim
A história de um pai desesperado em proteger e esconder a filha, depois que uma praga extermina quase todas as mulheres do planeta, soa como a melhor resposta para um cineasta que foi acusado de assédio sexual. “Mas não é o caso”, despista Casey Affleck, ao promover o seu último filme, “A Luz no Fim do Mundo”. Ainda que a motivação não seja a de assumidamente buscar uma redenção, o diretor acerta a mão no drama pós-apocalíptico que vislumbra uma sociedade mergulhada no caos sem a presença feminina.
Uma das atrações do último Festival de Cinema de Berlim, o longa-metragem que chega às telas brasileiras no dia 17 não só tenta limpar um pouco a imagem do diretor como se mostra em sintonia com a nova onda feminista. “Não era a intenção, já que o filme foi concebido, escrito e rodado antes que essas questões entrassem em discussão”, diz Affleck, de 44 anos, referindo-se principalmente aos movimentos Me Too e Time’s Up.
Diretor acerta a mão no drama pós-apocalíptico que vislumbra sociedade mergulhada no caos sem a presença feminina
A trama calcada no empoderamento feminino, à medida que apresenta um mundo mais desumano sem a mulher, começou a ser filmada em fevereiro de 2017. As campanhas contra o assédio sexual nasceram no fim daquele ano e no início de 2018 - como uma decorrência da enxurrada de acusações contra o produtor Harvey Weinstein.
As alegações contra Affleck, no entanto, ganharam espaço na mídia um pouco antes, no começo de 2017, assim que ele recebeu a sua indicação ao Oscar de melhor ator, por “Manchester à Beira-Mar” (2016), estatueta que acabou levando para casa. Por estar sob os holofotes durante a campanha pelo prêmio da Academia, o ator, que é irmão de Ben Affleck, viu antigos casos de má conduta sexual contra ele ressurgirem com força nos noticiários.
Em 2010, Affleck foi processado por assédio sexual pela produtora Amanda White e pela diretora de fotografia Magdalena Gorka, com as quais fez acordo para que os casos não chegassem aos tribunais. Ambas trabalharam com Affleck em seu primeiro longa-metragem como diretor, o “mockumentary” “Eu Ainda Estou Aqui” (2010), estrelado por seu então cunhado, Joaquin Phoenix.
Com a desculpa de registrar uma suposta transição profissional de Phoenix, de ator para rapper, foram rodadas várias cenas de nudez, de uso de drogas, de festinhas com prostitutas e até de sexo oral com uma de suas assistentes. “Aquilo foi um semidocumentário inspirado em outras coisas, como Andy Kaufman (1949-1984)”, conta, referindo-se ao comediante que zombava de personalidades, fazia pegadinhas com o público e inventava histórias sobre si mesmo.
Nem parece que o delicado “A Luz no Fim do Mundo” foi realizado pelo mesmo diretor de “Eu Ainda Estou Aqui”. “Dessa vez, quis experimentar uma forma de filmar clássica, contando uma história mais próxima de quem eu sou e das coisas que me interessam”, afirma Affleck, citando a paternidade como um dos tópicos que melhor o representam no cinema.
Inicialmente, a ideia era filmar o cotidiano de um pai que cria sozinho os seus dois filhos - a exemplo de Affleck, que se divorciou em 2017 da atriz Summer Phoenix, com quem teve dois meninos (Indiana, de 15 anos, e Atticus, de 11). “O argumento evoluiu gradualmente ao longo dos anos, baseado em certas histórias que contei aos meus filhos e diferentes conversas que tive com eles.”
Como os filhos de Affleck não queriam que o pai escrevesse uma trama inspirada neles, a solução foi mudar a dinâmica para um relacionamento entre pai e filha. “Por ser próximo das minhas sobrinhas, criei a protagonista baseada na personalidade delas”, diz, referindo-se às filhas de Ben Affleck e de Jennifer Garner: Violet Anne, de 13 anos, e Seraphine Rose, de 10. “Tive de repensar todo o argumento, já que o pai tem conversas diferentes com uma filha. E são outras as preocupações também.”
Ambientado em uma sociedade distópica, “A Luz no Fim do Mundo” traz o próprio Affleck no papel do pai, Caleb, um homem com um único objetivo: garantir a sobrevivência e o futuro da filha, Rag (Anna Pniowsky), de 11 anos. Ela é uma das raras meninas que sobreviveu depois que um vírus, propagado uma década antes, praticamente dizimou a população feminina - incluindo a mãe da garota, vivida por Elisabeth Moss e vista aqui apenas em flashbacks.
Com a escassez de mulheres, as poucas que sobraram são literalmente caçadas pelos homens, aparentemente mais embrutecidos. Para fugir das constantes ameaças, Caleb e Rag passam grande parte de suas vidas à margem da sociedade, escondidos em florestas. A garota ainda disfarça a sua feminilidade, usando cabelos curtos e roupas de menino. Quando circulam pelos centros, quase sempre à procura de comida e de livros, Rag é sempre apresentada pelo pai aos outros homens como um garoto, o que muitas vezes levanta suspeitas.
“Talvez seja um filme feminista, pelos valores inseridos nele. Mas eu não saberia dizer o que classifica uma obra como tal”, conta Affleck. O diretor se sente mais à vontade definindo “A Luz no Fim do Mundo” como “a trajetória de uma garota que se afirma como uma contadora de histórias”. “Ela começa a se definir como mulher com a narrativa que escolhe”, diz, lembrando que a protagonista inicia o filme ouvindo uma história do pai. Mais adiante, ela terá a sua versão para a mesma.
A dinâmica entre pai e filha é construída com muita sensibilidade por Affleck, o que aumenta a apreensão do espectador a cada ameaça que surge. E são muitas, sem que o filme precise necessariamente mergulhar nos aspectos mais aterrorizantes. O cineasta deixa por conta da imaginação da plateia o que acontece com as mulheres escondidas que eventualmente são capturadas.
“Embora eu ame ficção científica, como ‘Mad Max’ (1979) e ‘Império das Cinzas’ (1989), vemos isso apenas de relance aqui”, afirma ele, comentando que o mesmo vale para o terror. “Houve um momento em que o filme parecia caminhar para esse gênero, mas, no final, ficou apenas com alguns traços.”
E o que mais atrai Affleck nas tramas pós-apocalípticas? “Histórias assim nunca desaparecem por imaginarem como seria a vida se pudéssemos varrer toda a bagunça que os humanos acumulam, inclusive as ideologias e os governos.” Só assim a sociedade poderia se voltar ao que é elementar. “Quando todo o resto some, temos algo como ‘Esperando Godot’ ou como os personagens Rosencrantz e Guildenstern [da peça “Hamlet”]. Assim que isolamos um relacionamento, elevamos as possibilidades dramáticas. É tudo uma questão de vida ou morte.”
Casey Affleck interpreta Caleb, pai que tenta proteger a filha, vivida por Anna Pniowsky, em um mundo no qual quase todas as mulheres foram dizimadas por um vírus — Foto: Divulgação
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.