Pular para o conteúdo principal

Folha: Arida defende o fim do FGTS

Muito bom o artigo de Pérsio Arida na Folha de hoje, vale a leitura e o blog concorda com a tese defendida pelo economista.

 Inicio minha colaboração com a Folha tratando de um tema que está em voga: o FGTS. Foi editada recentemente a medida provisória número 889, que está sendo apreciada pelo Congresso, e o monopólio da Caixa Econômica Federal voltou a ser questionado. É um tema antigo. No meu discurso de posse no BNDES, em 1993, argumentei que a estabilização econômica do Plano Real faria com que fundos compulsórios de poupança perdessem sua razão de existir.

Tratei do assunto em artigos posteriores defendendo o fim do monopólio da Caixa e a remuneração do fundo pela taxa de captação de longo prazo do Tesouro Nacional. Volto aqui ao tema com uma proposta mais radical. O FGTS, tal qual o conhecemos —um fundo de empréstimos gerido por um Conselho Curador composto por seis representantes dos sindicatos e seis representantes do governo, administrado pela Caixa e remunerado de acordo com critérios fixados por lei— deve deixar de existir. O FGTS foi criado em 1966 com um duplo objetivo.

De um lado, substituir o regime de trabalho então vigente, que dava ao empregado estabilidade após dez anos de trabalho, a menos de demissão com justa causa. Por outro lado, colocar recursos à disposição do BNH, um banco estatal federal, para financiar a construção de casas populares. Vinte anos depois, o BNH foi extinto e incorporado à CEF, mas o FGTS manteve sua dupla função. Mais tarde o FGTS passou a financiar e/ou investir em saneamento, infraestrutura e saúde. O FGTS é formado por contas individuais junto à CEF. A empresa deposita 8% do salário mensal do trabalhador nessa conta.

O mecanismo ilude porque dá a impressão de que o FGTS é um “bônus extra” concedido ao trabalhador quando, na verdade, é parte de seu salário em termos econômicos. Os 8% são um custo para empresas e integram a remuneração do empregado por seu trabalho. O empregado consegue sacar 100% de seu FGTS e ainda recebe da empresa uma multa rescisória no montante de 40% do seu saldo acumulado se for demitido sem justa causa. Se pedir voluntariamente demissão, no entanto, não recebe a multa e não consegue sacar o fundo.

O dinheiro é seu, foi retirado do seu salário, mas o saque só acontece nas condições ditadas pelo governo: doenças graves, compra da casa própria, desemprego por mais de três anos, aposentadoria. Essa restrição à liberdade econômica decorre da dualidade de objetivos do FGTS presentes desde sua constituição.

Colocando entraves ao saque dos recursos e centralizando todos os depósitos na Caixa, os governos conseguiram aumentar o volume dos empréstimos que podem direcionar. Formou-se, assim, uma aliança dos governantes, que viram no FGTS um instrumento de poder e influência, e partes do setor privado que se beneficiaram de seus empréstimos. Quem perde é o trabalhador.

 A boa notícia é que não é preciso uma emenda constitucional para corrigir esses problemas. Basta uma MP ou projeto de lei com dois artigos. O primeiro facultando ao trabalhador sacar 100% do seu saldo no fundo quando do término do contrato de trabalho. Pouco importa a natureza do término: se foi demitido, se pediu demissão ou se a demissão foi negociada. O segundo artigo daria a ele a opção de escolher a instituição para abrir sua conta e a forma de aplicação dos seus depósitos. A opção padrão seria o investimento no Tesouro Direto, mas o trabalhador poderia optar por qualquer outra modalidade de investimento.

 Embora simples no plano legal, essas modificações devem ser implementadas com cuidado. A longo prazo farão com que o FGTS deixe de ser um instrumento de política econômica. A preocupação nesse caminho é evitar que o fundo fique sem liquidez suficiente para pagar os resgates, obrigando o Tesouro a socorrê-lo. Haveria como financiar os investimentos em habitação popular, saneamento e infraestrutura sem o FGTS? Minha resposta é sim.

 Fontes dedicadas de crédito preenchiam uma lacuna antes do Plano Realquando os empréstimos eram predominantemente de curtíssimo prazo. Hoje, 25 anos depois, o que nos faz falta são bons marcos regulatórios e uma lei geral de garantias, não crédito direcionado ou subsidiado. A habitação popular, particularmente para os segmentos mais vulneráveis da sociedade, deve ser subsidiada, mas o lugar certo para isso é o Orçamento da União, não o FGTS.

 A forma correta do subsídio é a ajuda em dinheiro na compra do imóvel, não o barateamento do empréstimo às custas dos trabalhadores que contribuem para o fundo. Voltarei ao assunto em mais detalhes nos próximos artigos. As modificações do FGTS que aqui defendo estão longe de esgotar o tema. Vale a pena discutir se deveria ser, em parte ao menos, um fundo de previdência complementar.

Devemos repensar sua sobreposição com o seguro-desemprego, um benefício temporário pago com dinheiro do setor público. A multa rescisória de 40% é muito alta. Beneficia quem já está empregado, mas inibe novas contratações. Por incrível que pareça, só pode ser mudada via PEC. A multa adicional de 10%, que vai para o patrimônio do fundo, e não para a conta individual do trabalhador, pode ser eliminada via lei complementar.

Essa seria, aliás, a maneira mais simples de começar a desonerar a folha de trabalho. São discussões importantes, mas o mínimo a ser feito é fazer vingar a liberdade econômica. O fato de os trabalhadores aproveitarem qualquer oportunidade que lhes seja dada para sacar seu FGTS é uma demonstração eloquente dos desacertos do modelo atual.

 Persio Arida, economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...