Na Folha, o colunista João Pereira Coutinho escreve um interessante artigo sobre o filme Coringa, bola da vez dos debates entre cinéfilos. Na íntegra, abaixo.
Maus fígados
Assisto a “Coringa” e passo metade do filme a pensar em “O Silêncio dos Inocentes”. Corrijo. Os meus pensamentos estavam com Hannibal Lecter, o psicopata desse filme, encarnado por Anthony Hopkins.
É uma das grandes criações do cinema moderno e, em termos pessoais, o primeiro grande vilão da minha maturidade. Como explicar a força da criatura, que hoje já virou paródia, mas que em 1991 tinha a frescura aterradora das grandes maldades?
Sim, o canibalismo ajudava, sobretudo para comer um fígado humano com favas e um copo de Chianti.
Mas o fascínio não estava no fígado humano. Estava nas favas e no copo de Chianti. Hannibal Lecter era aterrador porque detonava um dos grandes mitos da nossa civilização: a ideia platônica de que existe uma relação positiva entre sabedoria e virtude.
No caso de Hannibal Lecter, como era possível apreciar Bach, ler as “Meditações” de Marco Aurélio —e gostar de matar com uma ferocidade digna das bestas? A cultura não nos civiliza? Não nos torna melhores? Não nos protege dos piores instintos?
Ou George Steiner, que dedicou a vida inteira a pensar sobre o assunto, tinha alguma razão quando afirmava que a cultura, e em especial a alta cultura, pode nos tornar indiferentes ao sofrimento banal
dos seres humanos banais?
Hannibal Lecter era subversivo e inexplicável. Não apenas porque degradava essa velha ideia racionalista, mas porque em nenhum momento havia uma explicação plausível para a sua maldade. O mal era o mal: uma forma de estar no mundo sem origem ou remissão.
“Coringa” encontra-se no extremo oposto. Tudo nele é sociológico. Ali temos um homem, Arthur Fleck, que cumpre todos os requisitos da cultura vitimária em que vivemos.
Sofreu abusos na infância? Afirmativo. Sofre de distúrbios neurológicos e psiquiátricos? Afirmativo. Não consegue arrumar namorada e ainda vive na casa da mãe? Afirmativo. É um fracasso profissional e
cultiva sonhos de celebridade adolescente? Afirmativo.
Por outras palavras: Coringa, o personagem, é um clichê de esquerda, saído de um seminário de ciências sociais, que existe para comprovar a intrínseca maldade da sociedade capitalista e a inevitabilidade de violência ressentida que ela provoca nos perdedores da história.
Mas ele também é um clichê de direita —e pelos mesmos motivos. Se Coringa não usasse uma arma para se vingar das elites (de Wall Street à mídia), ele votaria em Donald Trump na próxima eleição. Coringa representa o “homem esquecido”, a “maioria silenciosa”, o “cesto de deploráveis” de que falava Hillary Clinton com despeito.
É por isso que as discussões ideológicas que o filme alimenta são tão redundantes: a esquerda e a direita veem no Coringa a encarnação do inimigo. E temem que a sua figura vulnerável e sofredora desperte a compaixão do auditório.
Não funcionou comigo. Primeiro, porque o programa do filme é esquemático e de efeito óbvio. Depois, porque tudo me soa desonesto e falso, como o nariz vermelho de um palhaço, o que impediu qualquer adesão emocional ou até racional ao personagem.
Só uma sequência se salva do esboço (atenção ao spoiler): o momento em que Arthur executa o colega de trabalho e poupa o anão. Não apenas por revelar a humanidade ferida de Arthur de uma forma oblíqua, sublimada, mas porque termina com um espantoso alívio cômico (o anão não tem altura suficiente para abrir a porta e fugir) que está ao nível do melhor Scorsese, com quem Todd Phillips, diretor de “Coringa”, tenta quase sempre se comparar (em vão).
Por último, será que “Coringa” pode ser um pretexto para que marginais anônimos cometam atrocidades semelhantes às do filme?
A pergunta anda nas bocas da crítica e o ator Joaquin Phoenix, em entrevista ao Daily Telegraph, foi confrontado com ela. Resultado: abandonou a entrevista, em pânico, e só voltou depois de se acalmar. Desnecessário tanto drama, Joaquin. A pergunta é absurda porque tudo pode ser um pretexto para cabeças problemáticas. É por isso que elas são problemáticas.
Será preciso lembrar que o criminoso que tentou matar Ronald Reagan em 1981 evocou “Taxi Driver” como uma das suas inspirações para o ato?
Exigir do cinema, ou da literatura, ou do teatro, ou de qualquer manifestação artística, uma pretensa “responsabilidade social” é uma grosseira violação da autonomia da arte.
É, no fundo, replicar em sociedades democráticas e livres o mesmo tipo de pensamento que as ditaduras cultivavam por meio da propaganda.
A irresponsabilidade de “Coringa” não é social, é artística. Não é um crime, só desperdício.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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