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Krugman propõe nacionalização de bancos

Vale a pena ler até o fimo artigo abaixo, publicado no excelente Terra Magazine. Trata-se de uma análise do prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, colunista do jornal The New York Times, bastante instigante e lúcida sobre a atual relutância do governo americano em fazer o que deve ser feito: nacionalizar os bancões semi-falidos que sobrevivem como zumbis e só fazem piorar as expectativas de solução para a crise financeira global. A seguir, na íntegra, para os leitores do Entrelinhas. Ler Krugman faz bem à saúde...

Vodu de Wall Street

Paul Krugman
Do New York Times

A economia vodu de antigamente - a crença na mágica de cortes de impostos - foi banida do discurso civilizado. O culto do lado da oferta encolheu ao ponto de conter apenas excêntricos, charlatões e republicanos.

Mas reportagens recentes sugerem que muitas pessoas influentes, incluindo funcionários da Reserva Federal, agências regulatórias dos bancos e, possivelmente, membros da nova administração de Obama, tornaram-se devotos de um novo tipo de vodu: a crença de que realizando rituais financeiros complexos podemos manter os bancos mortos de pé.

Para explicar esta questão, deixe-me descrever a posição de um banco hipotético que chamarei de Gothamgroup, ou Gotham, em resumo.

No papel, Gotham tem US$2 trilhões em ativos e US$1,9 trilhão em dívidas, de forma que ele tem um patrimônio líquido de US$100 bilhões. Mas uma parcela substancial de seus ativos - vamos dizer, no valor de US$400 bilhões - são valores mobiliários apoiados por hipotecas e outros lixos tóxicos. Se o banco tentasse vender estes ativos, conseguiria não mais que US$200 bilhões.

Então Gotham é um banco zumbi: ainda está operando, mas a realidade é que já foi pro buraco. Suas ações não estão totalmente sem valor comercial - ainda têm uma capitalização de mercado de US$20 bilhões - mas este valor é totalmente baseado na esperança de que os acionistas serão resgatados por uma operação de salvamento promovida pelo governo.

Por que o governo resgataria Gotham? Porque ele desempenha um papel central no sistema financeiro. Quando se permitiu que Lehman fracassasse, os mercados financeiros congelaram e por algumas semanas a economia mundial balançou à beira de um colapso. Já que não queremos uma reprise, Gotham precisa ser mantido em funcionamento. Mas como isto pode ser feito?

Bem, o governo poderia simplesmente dar a Gotham algumas centenas de bilhões de dólares, o suficiente para torná-lo solvente de novo. Mas isto, claro, seria um presente enorme para os atuais acionistas de Gotham - e também encorajaria uma propensão excessiva ao risco no futuro. Ainda assim, a possibilidade de tal presente é o que está apoiando o preço das ações de Gotham.

Uma abordagem melhor seria fazer o que o governo fez com as poupanças e empréstimos zumbis no final dos anos 1980: apoderou-se dos bancos extintos, limpando os acionistas. Então transferiu os seus ativos ruins para uma instituição especial, a Resolution Trust Corp,; liquidou o suficiente dos débitos dos bancos para torná-los solventes; e vendeu os bancos consertados para novos donos.

A agitação atual sugere, no entanto, que as autoridades não desejam fazer uso de qualquer uma destas abordagens. Ao invés disto, elas estão supostamente gravitando na direção de uma abordagem de acordo: retirar o lixo tóxico dos balancetes dos bancos privados para um "banco ruim" ou "banco agregador" de capital aberto, que lembraria a Resolution Trust Corp., mas sem se apoderar dos bancos primeiro.

Sheila Bair, presidenta da Federal Deposit Insurance Corp., tentou recentemente descrever como isto funcionaria: "o banco agregador compraria os ativos a um valor justo". Mas o que significa "valor justo"?

No meu exemplo, o Gothamgroup está insolvente porque os supostos US$400 bilhões de lixo tóxico nos seus livros na verdade valem apenas US$200 bilhões. A única maneira de uma compra daquele lixo tóxico por parte do governo poder tornar o Gotham solvente novamente é se o governo pagar mais do que os compradores privados estão dispostos a oferecer.

Agora, talvez os compradores privados não estejam dispostos a pagar o que o lixo tóxico realmente vale: "não temos realmente qualquer precificação racional para algumas destas categorias de ativos", diz Blair. Mas o governo deveria estar no negócio de declarar que sabe melhor do que o mercado quanto valem os ativos? E será mesmo que pagando o "preço justo", ou o que quer que isto signifique, seria suficiente para tornar Gotham solvente de novo?

O que eu suspeito é que as autoridades - possivelmente sem se dar conta - estão se preparando para empreender um uso da técnica "bait and switch" (lançar a isca e "fisgar" o cliente): uma política que se parece com a limpeza das poupanças e empréstimos, mas na prática equivale a dar enormes presentes aos acionistas dos bancos à custa do contribuinte, disfarçado de compras de ativos tóxicos "a um preço justo".

Por que passar por estas contorções? A resposta parece ser que Washington continua com um medo mortal da palavra que começa com N - nacionalização. A verdade é que o Gothamgroup e suas instituições irmãs já são divisões do Estado, completamente dependentes do apoio do contribuinte, mas ninguém quer reconhecer este fato e implementar a solução óbvia: uma tomada de controle explícita, embora temporária, por parte do governo. Por isso a popularidade do novo vodu, que alega, como eu disse, que rituais financeiros complexos podem reanimar bancos falecidos.

Infelizmente, o preço deste refúgio na superstição pode ser alto. Espero estar errado, mas eu suspeito que os contribuintes estão para receber outro negócio ruim - e que estamos para ganhar outro plano de resgate financeiro que falha no seu objetivo.

Comentários

  1. Caro Luiz Antonio,
    O termo não é nacionalizar, porque os bancos já são nacionais. O termo correto é estatizar, transferir o controle privado para o público. Simples, assim.

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  2. Sensacional!
    O Miguel do Rosário já tinha declarado ser a favor da estatização de todos os bancos. Se pensarmos bem, os bancos privados não contribuem em nada para com a economia ou com a qualidade de vida das pessoas.

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