Pular para o conteúdo principal

Dines: aspargos em Marte,
promiscuidade na Terra

O que vai abaixo é o artigo do jornalista Alberto Dines para a nova edição do Observatório da Imprensa. Tradução perfeita do que sentiu este blogueiro ao ler, no domingo, a "capa" do Estadão. Vale a pena ler até o final.


Mais importante do que o logotipo e o conteúdo das edições, a primeira página é instituição e símbolo, quintessência do jornalismo, culminação do processo de buscar, organizar e hierarquizar informações a serviço do interesse público.

Front Page, peça de Ben Hecht, além do sucesso na Broadway, foi filmada duas vezes. "La Une", na França, é um espaço mítico. No Brasil, há jornais capazes de vender seus editoriais mas resistem à colocação de anúncios na primeira.

A avacalhação do mito começou devagar, mas prosseguiu firme. Primeiro foram semicapas publicitárias cobrindo parte da verdadeira. Depois vieram falsas capas ocupadas por anúncios inteiros ou escondidas dentro de envelopes e embrulhos.

Quebrada a vitrine, fácil roubar a loja inteira. O assalto final à sacralidade da primeira página começou a ser perpetrado no Estado de S. Paulo de domingo (20/7), com a campanha de lançamento do novo carro da Nissan: uma falsa capa em papel especial, imitando uma maquete de página ainda incompleta. Os gênios da agência LewLara/TBWA imaginaram que seria muito "lúdico" – palavra de ordem do mundo fashion – oferecer ao leitor a oportunidade de fazer a sua primeira página. Idiotice completa, dinheiro do anunciante jogado fora, ninguém entendeu aquela confusão de riscos e espaços em branco.

Responsabilidade social

No domingo seguinte (27/7), o golpe final: uma primeira página com aparência de autêntica, porém violentada por notícias adulteradas. E a manchete – "Cientista garante: é possível plantar aspargos em Marte".

O leitor busca uma explicação e a encontra num cantinho, ao lado da venerável logomarca do Estadão: "Capa promocional". Seria mais ousado assumir com todas as letras: "Capa prostituída".

Num canto deste monumento kitsch – hino à decadência pós-moderna – a assinatura da agência e uma aula de jornalismo: "Um jornal que só traz notícia boa é fora do padrão". Dentro do jornal um folheto convoca para a revolução: "Designers quadrados criam carros quadrados para cabeças quadradas".

Ninguém obrigou os diretores, executivos e editores do jornalão a acolher esta palhaçada. Livre arbítrio é isso: cada um suicida-se da forma que lhe parece mais divertida.

A promiscuidade publijornalística foi exibida apenas nos exemplares para assinantes da cidade de São Paulo. Mas no momento em que se discute a regulação, na mídia eletrônica, da "liberdade de expressão comercial", a Nissan, por intermédio da LewLara/TBWA, mostra o senso de responsabilidade social daqueles que só pensam em plantar aspargos em Marte.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...