Pular para o conteúdo principal

Dines: vazamentos e imprensa marrom

O artigo abaixo, do jornalista Alberto Dines, é uma excelente reflexão sobre o episódio que está mobilizando a imprensa nacional desde a semana passada. Dines escreveu antes da divulgação, no site Consultor Jurídico, do relatório completo sobre o inquérito do Caso Dantas. É realmente assustador que um documento de 210 páginas, quase todas carimbadas com o timbre "Sigiloso", já esteja na rede mundial, à disposição de qualquer um que se disponha a saber mais sobre as acusações contra a suposta quadrilha comandada por Daniel Valente Dantas. Nada a favor do banqueiro do Opportunity, mas não é possível que processos que correm em segredo de Justiça sejam simplesmente oferecidos a jornalistas e veículos de comunicação sem que ninguém seja investigado ou punido pela gravíssima falta cometida. Aliás, no fundo a divulgação do relatório só favorece o acusado, que está torcendo de dedos cruzados para que o material seja desconstruído e desmoralizado pela imprensa chapa-Dantas...

A seguir, a íntegra do artigo de Alberto Dines, originalmente publicado no Observatório da Imprensa, cuja nova edição traz outros artigos sobre o Caso Dantas.


CASO DANIEL DANTAS
Política de vazamentos pinta toda a imprensa de marrom

O diretor-geral da Polícia Federal, Luís Fernando Corrêa, entrou de férias nesta segunda-feira (14/07), no exato momento em que a Polícia Federal está na berlinda por ter vazado relatórios sigilosos sobre a operação Satiagraha para O Estado de S. Paulo.

Procurado em Brasília pela equipe do programa Observatório da Imprensa na TV, sua assessoria informou que o diretor está de férias e que ninguém, a não ser ele, está autorizado a falar sobre o assunto.

Julho, mês de férias, é bem possível que a explicação seja verdadeira. Pode ser também que os assessores do diretor-geral tenham inventado uma desculpa esfarrapada para livrar o chefe de mais um chatíssimo pedido de entrevista.

Mas é no mínimo estranho que a PF não conte em seus quadros com um funcionário autorizado a dar satisfações à sociedade no momento em que o país inteiro toma conhecimento do teor de uma conversa telefônica do chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto de Carvalho, com um dos advogados de Daniel Dantas, Luiz Eduardo Greenhalgh (sobre o tema, leia também Vazamentos são mais graves do que espetacularização das prisões).

A verdade é que a imprensa brasileira não se incomoda com a praga do vazamento "seletivo" de documentos sigilosos. Ela é a beneficiária da irregularidade agora regular, mesmo que o privilégio seja rotativo, espécie de prêmio aos jornalistas bem-comportados. Com isto, aqueles que deveriam denunciar procedimentos impróprios das autoridades policiais tornam-se seus cúmplices. É o retorno do velho sensacionalismo amarelo (no Brasil, agora marrom) que aposta no furo futuro e esquece o seu compromisso com a investigação autônoma e soberana.

Leitor quer lama no ventilador

Também os leitores não se incomodam com esta sujeição da imprensa e da mídia eletrônica à loteria de informações patrocinada pela PF. O leitor quer barulho, lama no ventilador, escândalo. De nada adianta reclamar contra o número de grampos autorizados pela justiça. Segundo O Globo (13/07, manchete de primeira página), são 33 mil linhas legalmente grampeadas a cada mês. Em 2007, foram 409 mil escutas clandestinas.

Teoricamente legais: o vazamento é o subproduto do grampo indiscriminado: a polícia e/ou o Ministério Público apelam com tanta freqüência para o grampo, e a Justiça geralmente os atende, porque todos – com as melhores intenções, diga-se – contam com o vazamento de parte desses grampos para a imprensa. E a partir da imprensa fica estabelecido um tribunal virtual, sumário e discricionário. Do grampo ao paredón, assim foi com a Gestapo nazista, a GPU stalinista e a Stasi da Alemanha Oriental.

Na edição 487 deste Observatório (27/05/08) foi publicada a síntese de um processo do STF em que o seu presidente, Gilmar Mendes, uma hora depois de uma conversa telefônica com o procurador-geral da República, foi surpreendido com o telefonema de um repórter relativo ao teor desta conversa. A conversa entre as duas autoridades foi evidentemente grampeada e imediatamente transmitida a um jornalista ávido por um furo.

É legítimo jornalisticamente? É legítimo juridicamente? É legítimo republicanamente?

Vazamentos seletivos

Gilmar Mendes converteu-se em bête noire e talvez por isso sua reclamação não tenha merecido a devida atenção. Mas nos próximos dias, ou horas, o governo será levado a protestar, explícita ou indiretamente, contra a violação do segredo de justiça através do vazamento para a imprensa de uma conversa do mais alto funcionário da Presidência da República.

A luta contra a impunidade deve ser implacável, mas deve travada através de meios lícitos, caso contrário a punição torna-se suspeita, igualada aos ilícitos e à infração.

A política de vazamentos seletivos atende aos que se submetem ao princípio de que os fins justificam os meios. Acontece que a própria dinâmica dos vazamentos está empurrando os vazadores a ultrapassar todos os limites e distribuir informações sigilosas a esferas midiáticas onde impera o vale-tudo, isto é a blogosfera.

Irrigado pelos vazamentos, o chamado "espaço-cidadão" corre o perigo de degradar-se rapidamente, porque blogs são geralmente iniciativas individuais, não oxigenadas por discussões internas, nem comprometidas com manuais e códigos, tocadas majoritariamente por impulsos antropofágicos.

Acontece que muitos ativistas deste tipo de jornalismo (no passado chamado de amarelo e hoje marrom, ver abaixo), nas horas livres estão a serviço da grande imprensa e são provavelmente estimulados por seus departamentos de marketing para desenvolver seus sub-subprodutos.

De onde se conclui que esta onda de vazamentos faz parte de uma cruzada insidiosa para desmoralizar o que restou de uma imprensa razoavelmente decente e medianamente responsável.

Comentários

  1. É preciso saber se os advogados de Dantas já não tiveram acesso ao conteúdo do processo e tiraram as cópias que agora circulam.

    Heder

    ResponderExcluir

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe