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Michel Laub: Cristovão Tezza e um dos grandes romances brasileiros no século XXI

1. Numa passagem de “O Filho Eterno”, romance autobiográfico sobre o pai de um portador da síndrome de Down (Record, 222 págs.), o narrador de Cristovão Tezza conta como enxergou um ponto de maturidade possível numa criança que parecia viver um presente contínuo e circular. “O menino sente muita dificuldade para aceitar mudanças de rotina”, diz ele, que trata a si mesmo na terceira pessoa. “O pai terá de obrigá-lo a assistir a algo novo (...) até que descubra que a novidade pode ser interessante.” Nesse universo repetitivo e por vezes árduo, o filho acaba descobrindo um estímulo inusitado no futebol. Torcer pelo Athletico-PR traz vantagens, entre elas a chance de socializar com outros torcedores e um esboço de aprendizado de leitura - ele consegue reconhecer nomes de times, digitá-los para baixar os hinos em mp3. A maior mudança, contudo, vem da relação que o esporte tem com o tempo, uma abstração que para o personagem era inatingível até aquele momento: “As partidas (...) já não são mais eventos avulsos, sem relação entre si; pela noção de torneio, finalmente a ideia de calendário entra na sua cabeça; como na Bíblia, o mundo se divide entre partes que se sucedem até a Batalha Final”, escreve Michel Laub para o Valor, em artigo publicado dia 16/10 no jornal. Continua a seguir.


2.“O Filho Eterno” é um dos grandes romances brasileiros no século XXI. Nele Tezza fixa a maturidade de seu estilo, plasmado num discurso indireto livre que acompanha o vai e vem do pensamento de seus protagonistas, num turbilhão reflexivo e emocional interrompido apenas por “flashes” de suas ações no mundo concreto. Herdeiro dos ideais coletivistas dos anos 60, tendo vivido numa comunidade hippie de candidatos a artistas liderados por um guru, o pai do livro troca certas ilusões da juventude - com seus apelos românticos a um humanismo universal - por uma descoberta dura da idade adulta: a relação com a pessoa mais “diferente” que poderia encontrar, o filho que no início rejeita, depois vai aceitando num percurso amoroso que nunca é condescendente, autocongratulatório.

Se até poucos meses atrás eu achava que Tezza falava sobre tolerância, na quarentena passei a ver o seu livro de modo mais amplo. Nem sempre a melhor leitura opera apenas por identificação, isto é, quando projetamos vivências particulares num texto escrito em outra época, lugar e circunstâncias. No caso de “O Filho Eterno”, a distância pode ser ainda maior porque a relação daquele pai com aquele filho tem uma gravidade incomparável. Mas em alguma medida estamos sempre presos a essa interpretação com um quê de egocêntrico: por mais que a narrativa não pareça ter a ver com o nosso mundo imediato, é inevitável procurar pontos de conexão - ou contraste - entre ela e o que pensamos, o que somos.

3.Voltei a “O Filho Eterno” mais de dez anos depois de lê-lo pela primeira vez, graças à lembrança que tinha do trecho sobre o futebol. Nele está sintetizado algo que percebi quando voltaram os jogos do campeonato brasileiro depois da suspensão pela pandemia: a importância dos marcos de calendário, neste caso os trazidos pelo esporte, um registro objetivo com o que relacionar a passagem dos dias e semanas. Até então, tudo no confinamento parecia igual, uma rotina de tarefas repetitivas (trabalho, faxinas), mergulhos nostálgicos num passado imóvel (livros, filmes), interações com telas que nos tiram as referências concretas tão imprescindíveis à fixação das memórias - lugares onde fomos, pessoas com quem conversamos por acaso nesses lugares.

Diante do tédio, ou da anestesia pelas notícias sempre iguais sobre as tragédias da covid e da política, a imprevisibilidade do futebol atua tanto em nossa relação com os campeonatos - nos quais as tabelas criam um enredo de expectativa, queda, redenção e êxtase - quanto nas miudezas do jogo em si. “Uma partida real é (quase) sempre imprevisível”, comenta o narrador de Tezza. “Não mais uma coisa que (...) vai se repetir em seguida, para todo o sempre (...). Talvez (...) as milhões de pessoas que superlotam os estádios estejam em busca (...) desse breve encantamento: do simples futuro, do poder de flagrar o tempo, esse vento, no momento mesmo em que ele se transforma em algo novo, uma sensação que a vida cotidiana é incapaz de dar.”

4.Das 222 páginas de “O Filho Eterno”, apenas cinco falam sobre futebol. São justamente as últimas, o que não parece um acaso: trata-se do arremate ao tema que também percorre a história, junto à reflexão sobre diferenças. Uma sensação de quebra do tempo, de um evento inesperado que altera certezas igualmente contínuas, circulares, pauta o autoexame do protagonista, cujo passado começa a mudar quando ele percebe um novo futuro à frente.

Ainda no hospital, ao receber a notícia sobre a condição do filho, ele formula pela primeira vez essa experiência de destino: “Em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa representação literária, apreendeu a intensidade da expressão ‘para sempre’ - a ideia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, e o sentimento absoluto, mas óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomeçado, mas agora não (...); tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez granítica (...); o último limite, o da inocência, estava ultrapassado; a infância teimosamente retardada terminava aqui.”

5.Na leitura egocêntrica de “O Filho Eterno”, daria para fazer uma relação entre a descoberta do pai e o que vivemos universalmente em 2020. Mesmo que nada tenha sido tão abrupto e doloroso, ao menos no caso da classe média instruída, há uma diferença inconciliável entre o que éramos na segunda semana de março - quando decidimos ficar em casa por alguns dias, ou uma semana, ou no máximo um mês (na época, a perspectiva de chegar assim ao fim de abril parecia absurda) - e o que passamos a ser depois.

Mas essa ainda seria uma interpretação restrita. Um dos triunfos de Tezza foi não transformar o trauma, como costuma acontecer nesse tipo de história, num discurso que vende soluções forjadas em simplismo religioso, ideológico ou moral. O que o livro tem de “lição”, se dá para chamar assim, e é isso o que nos comovia antes da Covid e segue comovendo agora, é o modo como o protagonista desmente a si mesmo, aprendendo a lidar com a precariedade do conceito de “para sempre”.

O otimismo do desfecho, com os instantes que precedem mais uma partida do Athletico, é um elogio à incerteza. Logo, ao provisório. Logo, à ação do tempo sobre a fragilidade humana, esta que nos cabe celebrar enquanto dura cada uma de suas eternidades: “Bandeira rubro-negra devidamente desfralda na janela, guerreiros de brincadeira, vão enfim para a frente da televisão”, diz o pai sobre si, sobre o filho e sobre nós - ontem, hoje e amanhã. “O jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é muito bom.”

Michel Laub, jornalista e autor dos romances "Diário da Queda" e "O Tribunal da Quinta-Feira", escreve neste espaço quinzenalmente




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