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Reinaldo Azevedo: o Kássio com K leva à loucura os teóricos da conspiração

O presidente Jair Bolsonaro decidiu indicar Kássio Nunes para o Supremo. O que resta de lavajatismo na imprensa e em sites de "notícias & negócios especulativos" transformou o "Kássio com K" num super-Cássio com C, o da peça "Júlio César", de Shakespeare. É a personagem-símbolo da conspiração e da traição. Aquele traiu um só. A conspirata deu certo no curto prazo e matou a República no médio. O conspirador quebrou a cara. O Kássio com K teria de se dar bem traindo uma penca de gente. "Não entendi, Reinaldo!" Os criadores de fábulas também não. Eles ainda tentam inventar um roteiro de ficção para justificar as frustrações de Sergio Moro, escreve o colunista da Folha em artigo publicado na sexta, 2/10. Continua a seguir.


Segundo o mercado de conspirações, o ainda juiz federal do TRF-1 teria de fazer as vontades de vários padrinhos, além do próprio Bolsonaro: Gilmar Mendes, Wellington Dias, Dilma Rousseff, a juíza federal Maria do Carmo Cardoso (também do TRF-1), Flávio Bolsonaro, Davi Alcolumbre, todo o centrão, o PT, o PSDB, o PMDB, a OAB, advogados de pessoas investigadas pela Lava Jato e, bem..., ainda não se pronunciou a palavra mágica, mas é questão de tempo: "LULA". Deve-se escandir o nome com a baba do ódio nos cantos da boca.

"Ah, mas é isso mesmo! Trata-se do velho sistema". Assim, o Kássio com K conseguiria juntar num mesmo feixe de interesses Lula e Bolsonaro, o petismo e o bolsonarismo.

Não por acaso, Moro veio a público para dar uma dica: que o "Senado exerça seu crivo sobre o candidato para saber se há o comprometimento ou não com a agenda anticorrupção".

Obviamente, dele não se espera que sugira aos senadores que procurem saber se o candidato ao STF será ou não um fiel cumpridor da Constituição. Aquele que, quando juiz, atuou como coordenador do órgão acusador de suas futuras vítimas —e que desmoralizou o Poder Judiciário ao se colocar como esbirro do poder de turno-- posa agora de grande moralista.

Não custa lembrar: a vaga que ora se abre só não será preenchida por Moro porque, nomeado por Bolsonaro para o Ministério da Justiça, ele resolveu ambicionar o lugar do chefe. O presidente não é lá versado em Shakespeare ou nas balizas e sutilezas do Estado de Direito —Moro também não—, mas burro não é. Sentiu o cheiro da conspiração nas entranhas do seu governo. César também. O nosso ogro, quem diria?, foi mais rápido.

O ex-ministro da Justiça defendeu ainda, a exemplo do que ocorre nos EUA, que se tenha a figura de um promotor independente para investigar "pessoas que ocupam posições elevadas de poder". Sei.

Naquele país, um juiz que gravasse ilegalmente o presidente da República e divulgasse o conteúdo do grampo amargaria, deixem-me ver, uns 15 anos de cadeia.

Estávamos todos preparados para criticar uma indicação "terrivelmente evangélica", como André Mendonça, ou um "amigo dos meninos", como Jorge Oliveira.

A indicação de Kássio Nunes quebrou as expectativas e criou uma demanda: é preciso formular alguma teoria —qualquer uma.

Não deixa de ser espantoso que até a imprensa digna desse nome aponte como uma das fragilidades de Nunes a sua vinculação à corrente garantista do direito.

Circula freneticamente uma entrevista sua em que ele afirma que, em 2016, o Supremo autorizou a prisão após a condenação em segunda instância, mas não a impôs.

Não se trata de uma opinião, mas de um fato. E que se note: este escriba considera que o tribunal errou porque em desacordo com o mandamento expresso no inciso LVII do artigo 5º da Constituição: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Se o postulado serve a uma pletora de recursos que impedem a execução da pena, que se cuide desse assunto em vez de fraudar a Carta em nome da eficiência da Justiça.

Bolsonaro não se deixou intimidar pela patrulha liderada por Moro. Quando Kássio estiver no STF, prometo elogiá-lo todas as vezes em que se subordinar à Constituição e criticá-lo sempre que fizer o contrário. Assim é com todos.

O combate à corrupção, à saúva ou aos tarados mata a democracia caso se dê acima das instituições ou contra elas.

Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.



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