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Dica da Semana: Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, Marçal Aquino, livro

Esperança saindo pela culatra

A dica da semana é o potente Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, de Marçal Aquino, da Companhia das Letras. O palco desse romance é uma pequena cidade do Pará, tomada pela mineração, onde um fotógrafo, Cauby, vai trabalhar registrando as imagens da prostituição local. Em um ambiente cercado por tensões políticas e violência, Cauby acaba se apaixonando por uma jovem bastante peculiar, Lavínia. 

A personagem da moça é a figura encarnada do duplo: em oscilações de humor que beiram a bipolaridade ou até mesmo a esquizofrenia, hora Lavínia é uma adulta sensual e fervorosa, dona de seu próprio corpo e desejo, hora se assemelha a uma criança indefesa, que busca uma figura de autoridade para decidir por seu futuro. Já não bastasse o humor complexo da personagem, o relacionamento dos dois ainda é abalado pelo fato de Lavínia ser casada com o pastor da igreja evangélica da cidade, instituição que se mostra mais presente a cada página do romance. 

Marçal Aquino tem escrita habilidosa e busca caminhos originais, dinâmicos e, apesar do peso dos temas tratados, cômicos. O livro retrata um universo rico e verossímil, trazendo para a literatura locações brasileiras pouco retratadas, com a abundância de detalhes que só extensas pesquisas são capazes de levantar. 

Além disso, são abordados assuntos pertinentes e atuais, como as disputas entre as companhias mineradoras e os garimpeiros, que trabalham de forma ilegal; ou mesmo o crescimento da presença da igreja no país. Em uma cidade sem lei, onde o Estado se mostra ausente e insuficiente, vigoram apenas a lei de Deus e a lei do “olho por olho, dente por dente”. Mas essas questões sociais e políticas, apesar de serem extremamente pungentes, ainda são o pano de fundo da narrativa. Aqui, a história central é um triângulo amoroso genuíno, composto por personagens profundas e vulneráveis, humanas no sentido mais amplo da palavra. Durante toda a obra, o leitor é convidado a refletir sobre o amor, as formas do amor e as formas de amar - e sobre a esperança que há por trás de uma grande paixão - sem cair, no entanto, em clichês que nos entendiam. 

Por meio das citações filosóficas e teorias sobre o amor extraídas da obra do psicanalista fictício Brian Schianberg (sim, o autor e seu livro também foram inventados com genialidade por Aquino!), contrastadas com situações cotidianas do Brasil profundo, em uma linguagem que não deixa de ser simples e gostosa, a narrativa se mostra instigante, provocativa, mas também divertida e única. O leitor se diverte, mas sai da obra refletindo profundamente sobre a realidade brasileira, e sobre suas próprias relações amorosas. É um livro para ser devorado. 

E, finalmente, deixamos um aviso aos leitores que se emocionam facilmente: não esperem um final feliz. Como toda história de amor, essa também acaba tragicamente. Principalmente porque nos faz sentir a pior das emoções: a esperança. 

(Por Teresa de Carvalho Magalhães e Victor Veronesi em 21/10/2020)





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