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A Bolívia recupera a democracia e o Chile abre caminho para o futuro

A América Latina tem uma economia extrativista baseada na exportação de grãos, vegetais, minerais e petróleo. Produz umas mercadorias mequetrefes, fabricadas por mão de obra barata. Também faz drogas e tem um setor de serviços hipertrofiado: somos servis, sim sinhô. Tal economia gera periferias maltrapilhas e poluídas, grotões prostrados, serviços públicos em pandarecos. A batuta e o filé da sociedade ficam com exploradores cúpidos, que, nativos, agem como ocupantes alienígenas. São nações ocupadas, as repúblicas bananeiras, escreve Mario Sergio Conti na Folha, em artigo publicado sábado, 24/10. Continua a seguir.


O centro de gravidade da Terra do Evangelho esteve desde sempre alhures. Importa e dá uma garibada em ideias, sistemas de governo, costumes, formas artísticas, tecnologias. Na fórmula famosa, somos desterrados na nossa própria terra.

A América Latina vem mudando, ora veja. Em 195 anos de independência, a Bolívia teve seu 190º golpe há um ano. A polícia insuflou e o Exército exilou Evo Morales, o presidente eleito. Não foi novidade: no Equador de 2010, a PM de lá liderou uma sublevação contra Rafael Correa, o presidente.

Trump e Bolsonaro, a OEA e a União Europeia deram cobertura à quartelada —que afundou sem choro nem vela no domingo passado. Foi eleito presidente Luis Arce, do mesmíssimo partido de Morales, o Movimento para o Socialismo.

Como a Bolívia ficou paralisada entre as eleições, chegará um ano atrasada à eternidade. Nem voltou à situação anterior —Arce é mais cordato, e menos caudilhesco, que Morales, um FHC ao quadrado: quis ser presidente quatro vezes.

Se a Bolívia voltou ao status quo de antes, o Chile se abriu para o futuro. Amanhã, domingo, lá se votará um plebiscito de convocação de uma Assembleia Constituinte.

A votação, que não é obrigatória, terá duas cédulas. Na primeira, os chilenos dirão se enterram a Constituição de Pinochet, imposta há 40 anos e pilar da ordem neoliberal.

Na segunda, decidirão se a nova Carta será feita por uma assembleia mista (metade eleita para isso e metade de parlamentares; ou seja, manietada) ou só por constituintes (soberana). As sondagens de opinião dizem que a preferência é pela Constituinte exclusiva.

Está desde já decidido que a Assembleia será paritária, 50% de mulheres e 50% de homens, novidade mundial. Também está assente que os candidatos não precisarão concorrer por partidos. Comitês de fábricas e minas, bairros e comunidades, escolas e sindicatos poderão eleger seus integrantes.

Essa mudança incrível se deu em um ano. O estopim foi aceso no Instituto Nacional, a mais antiga escola pública —e da qual nos últimos anos as famílias de bens tiraram seus filhos para se acomodarem em subúrbios elegantes. Os estudantes pularam catracas em protesto contra aumento de três centavos na passagem de metrô.

Não era só pelos três centavos. Em semanas, o Chile se conflagrou. Houve a maior manifestação da sua história, com 1 milhão de pessoas na praça Itália, em Santiago. Para os bem-pensantes, foi mais um quebra-quebra latino-americano, indignação de fôlego curto.


Mas em seguida houve uma greve geral que parou o país de ponta a ponta: novíssimas formas de organização floresceram à margem e a despeito das organizações tradicionais, PS e PC.

O Chile é presidido por Sebastián Piñera, rebento engomadinho de uma das famílias mais opulentas da América Latina —algo como se um Moreira Salles fosse presidente aqui. Ele respondeu ao levante com balas de borracha, disparadas nos olhos dos insurgentes.

Elas foram desenvolvidas pela polícia inglesa, que as atirou contra irlandeses pró-independência nos anos 1970. Foram incrementadas pelas forças armadas israelenses, que, à Witzel, miram na cabecinha dos palestinos. De lá, foram adotadas pelos donos do mundo.

Na convulsão de 2013, a PM de Alckmin cegou com bala de borracha o fotógrafo Sérgio Silva. A selvageria do santarrão do pau oco, ora processado por corrupção, contou com a conivência do PT.

No Chile, a insurreição se aprofundou em greves setoriais, ocupações, choques com a polícia, apupos à política carcomida —e agora conflui para a Constituinte. Seus temas serão a Previdência, o ensino, o sistema de saúde e o emprego: a vida em sociedade.

Nada está dado de antemão, mas o desbloqueio do impasse foi bem além do que conseguiram manifestações formidáveis dos Estados Unidos à Argélia, do Líbano à França, da Belarus à Nigéria. O Chile está na vanguarda.

Enquanto isso, no Florão da América...

Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".




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