A pandemia terá efeitos devastadores para a economia latino-americana. O PIB do bloco despencará este ano 9,1% (o pior índice desde que existem dados, há 120 anos), o desemprego subirá para 13,5%, a pobreza atingirá 37,7% da população (sete pontos a mais) e a desigualdade continuará aumentando naquela que já é a região mais desigual do planeta. O golpe será tão duro que, no final do ano, o PIB per capita retrocederá para o nível de uma década atrás e a taxa de pobreza voltará ao nível de 2006. Em suma, o balanço apresentado nesta terça-feira pelo órgão das Nações Unidas para o desenvolvimento da América Latina e do Caribe, a Cepal, indica que o continente caminha para perder, em apenas um ano, “uma década em termos econômicos e quase uma década e meia em termos sociais”, escrevem Federico Rivas Molina e Ignacio Fariza, de Buenos Aires e Madri para o El País, em texto publicado dia 6/10 no site do jornal.
O PIB per capita, a melhor medida do bem-estar material da população, cairá ainda mais: até 9,9%, nível não visto desde 2010. Por sub-regiões, a maior queda na renda por habitante ocorrerá na América do Sul (9,4%), seguida pela América Central e México (8,4%). E a profundidade da queda em abril e maio, os meses mais duros das distintas quarentenas, “indica que a reativação do crescimento será mais lenta do que se esperava”. A dinâmica do investimento não é precisamente um bom presságio: está sofrendo uma “queda significativa” depois de um segundo trimestre sombrio, constata o órgão comandado por Alicia Bárcena.
A América Latina está, “sem dúvida”, diante da “crise econômica e social mais forte que a região já sofreu em várias décadas, pondo em evidência as fraquezas estruturais das economias”, alertam os técnicos da Cepal, com sede em Santiago do Chile. Fraquezas que têm limitado as possibilidades de resposta à crise sanitária em países que sofrem com sistemas de saúde deficientes e pouco equitativos, alta informalidade no trabalho ―o que amplifica um golpe como o do coronavírus― e magros sistemas de proteção social. Diante disso, os economistas da Cepal recomendam que os Governos deixem de lado as estratégias de ajuste que guiaram as políticas oficiais nos últimos anos e apostem em planos fiscais e monetários expansivos, mais ainda do que os já aprovados nos últimos meses.
Dessa forma, diz o órgão da ONU, poderia ser parcialmente neutralizada a queda da oferta e a demanda em um contexto de baixa produtividade e crescimento estagnado ou negativo. O problema é que, apesar da introdução de novas receitas monetárias ―compras de dívida pública e privada, os chamados QE (de quantitative easing, ou flexibilização quantitativa), inéditos até agora na cartilha dos bancos centrais da região― e fiscais (o Brasil é o país emergente que mais puxa o déficit, em grande parte financiado pela instituição emissora, segundo os últimos dados do Instituto de Finanças Internacionais), a margem de manobra na América Latina é notavelmente inferior à dos países ricos.
Economias em recessão
Quer seja dado ou não um passo a mais nas políticas, o futuro parece sombrio. As economias latino-americanas chegaram à pandemia, exceto em alguns casos, em dificuldades. Depois de um quinquênio de crescimento mínimo, no primeiro trimestre deste ano o PIB já estava negativo em nove dos 20 países da região, outros oito mostravam uma clara tendência de desaceleração. Motivo: a retração da demanda, tanto a interna como a externa, com a China, que naquele momento estava em plena crise. As restrições da pandemia, com a consequente paralisação parcial ou total da produção de bens e serviços, agravaram ―e muito― esse quadro.
O consumo privado foi, de longe, o componente da demanda mais afetado. “Houve uma deterioração acelerada nos gastos das famílias em decorrência do contexto de confinamento obrigatório imposto pelas autoridades em muitos países, do isolamento social voluntário das pessoas e da suspensão de muitas atividades não prioritárias”, assinalam os técnicos da Cepal. Soma-se a isso a queda das receitas das famílias devido à perda de empregos. Embora parcialmente compensado pelos programas de auxílio por parte dos Estados ― mais tímidos, porém, do que em outras partes do mundo emergente e desenvolvido ―, esse declínio ameaça tornar a recuperação mais lenta do que se poderia esperar no caso de uma recessão típica: em uma economia tão dependente do consumo, menos predisposição (e capacidade) de gasto hoje significa, sempre, menos crescimento amanhã.
A evolução do mercado trabalhista “reforça” as más perspectivas do consumo: com o desemprego claramente crescente e uma “recomposição do emprego em direção a postos de trabalho de menor qualidade, como os trabalhos por conta própria” em andamento, a renda média não parou de piorar, ensombrecendo o horizonte.
Paralelamente, a região sofreu uma deterioração significativa de suas perspectivas no exterior, tanto pela queda nos preços dos produtos primários ― que continuam sendo sua principal fonte de divisas: as promessas de diversificação ficaram nisso, em meras promessas ― quanto pela crise em seus principais clientes. “No contexto de piora dos termos de troca médios da região, que cairão 4,7% em 2020, o choque negativo se concentrará nas economias exportadoras de hidrocarbonetos, enquanto as exportadoras de alimentos e metais serão menos afetadas”, alerta a Cepal. As exportações diminuirão 23%, enquanto as importações cairão 25% devido à queda da atividade e da renda. E a sub-região mais prejudicada será, novamente, a América do Sul, cujos termos de troca diminuirão quase 8%.
A boa notícia é que, diferentemente de outras grandes recessões do passado, a crise econômica não está provocando ― até agora ― um efeito dominó sobre os bancos: uma crise financeira parece, por enquanto, descartada. E esse é um ponto significativo para a esperança de uma região em que a solvência do setor financeiro foi, e continua sendo, um grande motivo de preocupação. A inflação, outro cavalo de batalha histórico para os países latino-americanos, também está sob controle, exceto na Venezuela e na Argentina, que arrastam suas próprias dinâmicas desde muito antes que o termo covid-19 começasse a aparecer na mídia.
Forte queda na arrecadação
O golpe para o déficit público, que atingirá 8,4% em 2020, virá dos dois lados: os gastos públicos crescerão ao mesmo tempo que as entradas de caixa fraquejam: com a economia formal paralisada ou, no mínimo, atravancada durante semanas, as receitas fiscais foram claramente reduzidas. A dívida dos países da região, que no fim de 2019 era de 46%, fechará 2020 acima de 55%. Um esforço enorme que será preciso pagar no futuro, mas que terá servido para evitar um colapso total da economia.
Se não tem sido possível fazer mais é, precisamente, pela falta de músculos em consequência da eterna fragilidade da arrecadação tributária de uma região que já arrecadava muito menos em impostos do que outros blocos comparáveis: se a América Latina tivesse tapado esse buraco quando pôde, nos últimos anos, sua margem de manobra hoje ― quando enfrenta o “maior desafio fiscal desde a crise da dívida pública do início dos anos oitenta” ― seria muito maior.
“As receitas totais na América Latina e Caribe têm sido historicamente insuficientes para cobrir os gastos públicos, o que leva a um viés deficitário na gestão das contas fiscais, com todos os riscos que isso implica. E a última década não foi uma exceção a essa tendência: as receitas dos países conseguiram acompanhar o crescimento dos gastos públicos”, destaca o documento da Cepal. “O desafio não é apenas aumentar a pressão tributária, mas fazer isso de forma progressiva, a fim de que o sistema tributário também contribua para reduzir as desigualdades.” Em 2018, último ano sobre o qual existem dados, a arrecadação tributária na América Latina e Caribe subiu para 23% do PIB, em comparação com mais de 34% da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE). Mais um desafio em um horizonte repleto deles.
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