Um gosto antigo pela medicina fez da economista Monica Baumgarten de Bolle uma das primeiras pessoas a alertar para o tamanho da crise que viria em 2020. A luz amarela foi acendida em janeiro, com a leitura do artigo em que o Sars-Cov-2 foi nomeado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus. “Pude perceber que seria uma calamidade absoluta, porque o novo vírus era muito mais transmissível que o Sars original. E era imprevisível, levando 20% dos contaminados para o hospital e muitos desses para a UTI”, diz a pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins ao jornalista Diego Viana, do Valor Econômico. A entrevista continua a seguir, em texto publicado na sexta, 2/10.
“No caso de um país como o Brasil, ficou claro que o golpe seria ainda mais brutal”, afirma Monica. Com mais de 60% da população em situação vulnerável, fora do mercado formal de trabalho ou com grande risco de ser expulsa dele, “essas pessoas seriam imediatamente atingidas quando começassem as medidas de isolamento”. Esse raciocínio levou à conclusão de que “o Brasil não sobreviveria sem um programa de renda básica”.
Nos meses seguintes, em artigos de imprensa, “lives” e postagens de redes sociais, a economista defendeu com afinco a necessidade do auxílio emergencial. A pressão de intelectuais e entidades da sociedade civil teve efeito: o Congresso aprovou o auxílio de R$ 600 em março. Mas o problema não parava aí: à medida em que chegavam novos artigos de virologistas e epidemiólogos, ficou claro para Monica que transformações muito mais profundas seriam necessárias.
No livro “Ruptura” (Intrínseca, 320 págs.), a economista retoma os debates que a pandemia suscitou no campo da política, das medidas de mitigação à expansão dos gastos públicos, incluindo a reconversão industrial (fábricas que passaram a produzir equipamentos médicos), o papel do BNDES e a emissão de moeda. Mas as rupturas vão além. A crise sanitária deixa em seu rastro um mundo mudado. Ideias parcamente discutidas há poucos anos ganham tração. Poucos duvidam que os governos terão de conviver com níveis mais elevados de endividamento, que será necessário investir pesadamente na recuperação das economias e que a transição energética será acelerada.
“São pelo menos três níveis de ruptura”, afirma. “Primeiro, o mundo real está sendo transformado. Segundo, a teoria econômica é obrigada a examinar como ela pensa em seu papel. Terceiro, a ruptura pessoal: decidi abandonar os modelos que não ajudam mais a entender o mundo e adotar uma perspectiva mais interdisciplinar.”
Monica detalha as diferenças entre tipos de vírus, sua taxa de transmissão e sua mortalidade. Seu interesse pelo tema é anterior à formação como economista: foi demovida de seguir a carreira médica graças a Dionísio Dias Carneiro (1945-2010), professor da PUC-RJ. “Ele disse que muito do que um economista faz é parecido com a medicina. De fato, trabalhamos com diagnósticos e podemos pensar que estamos tratando de um sistema parecido com um organismo, porque é evolutivo, sempre mudando”, diz.
Aprofundando as leituras sobre a pandemia, diz Monica, “era cada vez mais evidente que não vamos voltar rapidamente à vida normal. Por mais que, agora, exista a perspectiva de uma vacina, vamos passar pelo menos dois anos difíceis. Mesmo que não seja tão complicada como foi até agora, a vida não vai estar normal”.
Para a economista, o trauma da pandemia tem o potencial de consolidar projetos ambiciosos e, até recentemente, apenas especulativos. A renda básica, adotada em caráter emergencial em vários países, se torna um primeiro impulso para projetos de renda básica universal, debatidos como meramente utópicos até o ano passado. O primeiro país a aprovar uma renda permanente é a Espanha, duramente atingida pela covid-19. “Estamos caminhando para que a renda básica seja componente normal das economias”, afirma. Para ela, porém, está se tornando consenso que não é possível deixar parte substancial da população desamparada. “Não sabemos como vai ser o mundo quando passar o pior da pandemia. O que vai acontecer com as relações de trabalho? Quais empregos estarão obsoletos?”
As idas e vindas em torno do programa Renda Cidadã, proposta do governo para substituir o Bolsa Família, mostram que “é preciso ter um projeto bem desenhado, sabendo precisamente quem é a população a ser assistida. Esse desenho é mais relevante do que o valor do benefício”, observa. Como a função do Bolsa Família é reduzir a pobreza, o programa tem um público-alvo claro. Agora, porém, “há um novo contingente: pessoas que vivem em situação precária, mas, pelo menos até a pandemia, tinham acesso ao mercado de trabalho formal. É para elas que seria necessário desenhar uma alternativa”.
Segundo Monica, o formato de um programa para essa população seria parecido com o de um seguro. “Quando estão sem renda por algum motivo, seja a pandemia ou outro, recebem um benefício, determinado de acordo com as restrições orçamentárias do país. Quando estivessem de volta ao mercado, o valor poderia ser reduzido.” A economista ressalta que não se trata de substituição ao Bolsa Família, mas programa complementar. “O que transparece é que o governo não sabe quem quer atender, nem como.”
O Brasil, portanto, terá de repensar alguns princípios econômicos que nortearam os últimos anos, diz a economista. Terá de aceitar mais investimento do Estado, o fortalecimento do sistema de saúde, a flexibilização do teto de gastos e o aumento do endividamento. “Mesmo com a rigidez do ministro [da Economia, Paulo] Guedes, queira ou não, a pandemia já está mudando a mentalidade sobre a atuação do Estado. Não temos como responder a um desafio dessa envergadura sem o governo.”
O aumento da dívida, no entanto, enfrenta a barreira da memória, já que o país enfrentou uma devastadora crise de endividamento na década de 1980 e episódios de alta inflação. “Não tem de onde vir inflação hoje”, diz a economista. Ela aponta que a crise da dívida se seguiu a um período de empréstimos fartos em dólar, que se tornaram impagáveis depois que o Federal Reserve elevou os juros americanos, em 1979.
A situação atual é inversa. Nos próximos anos, os juros devem permanecer baixos ao redor do mundo. A dívida brasileira, por sua vez, está denominada sobretudo em reais, o que protege contra súbita escassez de dólares. “Minha preocupação não é inflação, nem dívida. O debate está completamente errado no Brasil”, afirma. “O que me preocupa é a possibilidade de pegarmos dinheiro emprestado para fazer besteira. O grande perigo é ficarmos presos para sempre em uma armadilha de crescimento baixo.”
A ruptura teórica, para ela, exigirá que a economia como disciplina passe a reconhecer seu campo de estudo não mais como sistema estático, mas evolutivo e complexo. A maior vítima é a macroeconomia, que “conversa muito pouco com o mundo real e onde quase não houve inovação nas últimas décadas”. Na microeconomia, alguns desenvolvimentos das últimas décadas apontam direção mais fecunda, como é o caso das pesquisas que se apoiam sobre a psicologia comportamental ou a área do desenho de incentivos. “As aplicações são inúmeras, já que esses modelos afetam também a provisão de bens públicos, como saneamento básico”, diz.
“Muitas dessas reflexões já estavam na minha cabeça desde a crise de 2008, sobretudo as questões sobre a economia como disciplina”, relembra. “Por que ela se fechou em si mesma? Por que perdeu sua interdisciplinaridade? A que papel ela se presta nas intervenções de política pública? Sobretudo, como ela vem se tornando obsoleta ao longo do tempo?”
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