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Dica da Semana: Descobri que estava morto, J.P. Cuenca, Livro

Da Newsletter da LAM Comunicação

Vida e morte no meio fio 

Como sabemos que não estamos mortos? Qual a diferença entre a vida e a morte? Como provar que estamos vivos? Essas são as perguntas que se fazem os leitores de Descobri que estava morto, de J.P. Cuenca, livro publicado em 2016 pela Tusquets. Nessa trama autobiográfica, Cuenca filosofa sobre o tabu da morte, a partir de um estranho acontecimento: em 2011, recebeu uma ligação da delegacia dizendo que havia documentos que atestavam sua morte, anos antes, em 2008. 

A partir dessa ligação, um thriller policial se inicia. Cuenca se aventura a descobrir por que Cristiane Paixão, por ele totalmente desconhecida, havia identificado um corpo como seu na Lapa, Rio de Janeiro. No atestado de óbito havia, inclusive, o número da certidão de nascimento de J.P. Como? 

O autor é convencido por um amigo jornalista a contratar um detetive particular a fim de procurar a tal Cristiane. Porém, sem respostas do profissional, Cuenca, morto-vivo, desiste do caso. E da vida. 

Uma nova fase começa. Largado pelo mundo, sem lenço nem documento, nosso anti-herói parte para os colos de francesas, chinesas, alemãs… Vive na boêmia, dando palestras sobre literatura ao redor do mundo e enrolando seu próximo romance. Prestes a partir para um castelo na Itália, após três anos da notícia de sua própria morte, Cuenca recebe uma carta do detetive e retorna ao Rio de Janeiro. A revelação do profissional, porém, ao invés de lhe esclarecer as dúvidas, é o último empurrão para o fundo do poço. Vemos o personagem-autor perder de vez a vida, sem morrer. 

A partir dessa narrativa aparentemente mirabolante, que mistura realidade com ficção, o autor consegue desenvolver uma reflexão profunda sobre a morte. Não só a morte fisiológica, morrida ou matada, já explorada pelo mundo da filosofia e da religião (e da ciência, por que não?), mas também a morte subjetiva. 

Cuenca, em linhas maravilhosamente bem escritas, faz com que o leitor, sem perceber, comece a se indagar. O que significa, no âmbito psicológico e individual, ser considerado perante o Estado como morto? Como a nossa identidade é construída pela vida que levamos? Estar vivo é a mesma coisa que viver? 

No meio da obra, Cuenca destila críticas ferrenhas à literatura, provando, além de sua inutilidade completa, o desserviço que os livros de ficção prestam à humanidade. Essa acusação metalinguística diverte o leitor, ao mesmo tempo que o assusta. Aliás, durante todo o livro ficamos nesta posição: entre a risada sincera e o rir de nervoso. As fases da trajetória do autor são nebulosas e o sentido do porquê fazer o que fazemos se perde. O fato de a personagem principal ser um escritor agrava a situação. Um pensador, intelectual, crítico… Perde o fio da meada e mergulha em uma vida esvaziada. Mergulha no antônimo da vida. E o nosso choque é perceber que isso ainda não é morrer. (Por Teresa de Carvalho Magalhães em 9/10/2020)



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