No mundo pré-pandêmico, o professor universitário Roberto Francisco de Abreu, de 56 anos, não economizava. Todos os dias havia um motivo para sair, celebrar, encontrar amigos e não necessariamente se preocupar com a conta no final da noite. A rotina se mantinha ainda que, ao fim de cada mês, algumas contas ficassem no vermelho. A falta de preocupação com o futuro se refletia na qualidade — e no preço — de seu sono. Abreu dormia sem pensar nos boletos a pagar e, mesmo no inverno, ligava o ar-condicionado e se cobria com um edredom. Em março, tudo mudou. As aulas minguaram, o salário caiu e a pandemia tirou a leveza despreocupada de seus dias. “Fiquei assustado, e ainda estou, porque não tinha uma reserva. É uma cultura do brasileiro acreditar que o amanhã vai ser melhor. E, quando fomos impactados por uma coisa dessas, percebemos que o amanhã é incerto”, contou. Constança Tatsch escreve uma excelente reportagem na edição desta semana da revista Época, vale a leitura!
De março para cá, Abreu se tornou outro homem. Fez uma reorganização financeira severa. Comida, só preparada em casa. Ar-condicionado, só quando indispensável. Hoje, mesmo com menos aulas e recebendo menos, saiu do negativo para uma situação em que consegue economizar um pouco todo mês com a ajuda de uma consultora financeira. Cortar, renegociar e poupar são os novos mantras. Mais do que uma mudança pontual, ele mudou sua forma de gastar. “É uma mudança de olhar, mais consciente. Está havendo uma reorganização no consumo, e acredito que veio para ficar. Já estou fazendo uma projeção financeira para o futuro, quanto preciso economizar para me aposentar com tranquilidade”, afirmou o professor, que revelou não vir comprando nenhuma roupa já há sete meses.
O QUE VOCÊ APRENDEU COM A PANDEMIA?
Passar mais tempo com os animais aqui de casa, que são considerados parte da família, e não ter de lidar com pessoas na rua
Homem, 37 anos, classe B
A convivência diária com a família, porque estamos mais próximos e tentando resolver as coisas com mais simplicidade
Homem, 43 anos, classe A
Estou tendo aulas on-line, o que eliminou o teste de 160 km diários indo e voltando da faculdade e poupou tempo, dinheiro e esforço
Homem 21, anos classe C
Pude estudar coisas novas na Internet e pude repensar o que realmente importa em nossas vidas. Também vi filmes e séries
Mulher, 65 anos, classe B
Criei consciência corporal e espiritual. Me dediquei mais a isso nesse período, me sinto mais saudável e motivada
Mulher, 44 anos, classe B
Consigo descansar mais, pois fui mandado embora do meu último emprego. Assisto às coisas que gosto e limpo a casa para ajudar minha mãe
Homem, 22 anos, classe C
O comportamento mais parcimonioso com os gastos, com foco em economizar, ganhou força entre os brasileiros durante a pandemia. Uma pesquisa conduzida pela agência de publicidade DPZ&T com 2 mil pessoas, em três etapas, entre os meses de junho e setembro, mostra o início de uma transformação. Segundo os dados, obtidos com exclusividade por ÉPOCA, o comportamento despreocupado deu lugar à cautela e à intenção de planejar o futuro. No período pesquisado, quem acreditava que a economia e o emprego se recuperariam não chegou ao patamar dos 20% dos entrevistados. Em junho, eram 18% dos entrevistados em comparação a 19% do mês passado. Outros 50% discordaram da afirmação. Os que concordavam que “estamos saindo dessa”, em junho, eram 22% e, dois meses depois, 31%. Nas três etapas da pesquisa, o índice de pessoas que concordavam com a afirmação “O futuro será muito melhor” se manteve idêntico: 36%. “As pessoas estão mais ligadas no final da pandemia, mas o futuro é uma incógnita”, afirmou Fernando Diniz, sócio da DPZ&T.
Com menos medo da pandemia e mais disposição em buscar novas fontes de renda, o motorista Anderson Buriche, de 42 anos, que havia sido dispensado do emprego em março, dedicou-se a trabalhar para aplicativos de transporte. O que costumava ser sua segunda fonte de renda virou a principal ocupação. Sua esposa, Renata, manicure, também ficou sem trabalho. No auge da pandemia, ele chegou a rodar dez horas em um dia e ganhar apenas R$ 70. Para complementar a renda, colocou a mulher e o filho de 17 anos, que está sem aula no colégio estadual, para tocarem um pequeno negócio de venda de água. “É um dinheirinho que não sai do orçamento. Tivemos cortes, como parar de pedir lanche, fazer churrasco, comprar roupa para meu filho de 2 anos. Enxugamos ao máximo, e ainda tive de renegociar a dívida do cartão, mas estou honrando tudo”, disse Buriche. Ele revelou não ter confiança em uma volta à normalidade.
O estudo, que contemplou as classes A, B e C, mostra diferenças comportamentais entre faixas de renda. A classe C estava mais otimista que as outras em junho: 24% acreditavam que a situação melhoraria (em comparação a 19% da classe A). Agora, a curva se inverteu: 39% dos entrevistados de renda alta acreditam na melhora mais rápida em comparação a 35% da classe C. Esses dois percentuais são, contudo, a minoria. Mais de 60% dos entrevistados têm uma avaliação mais moderada ou pessimista sobre as perspectivas de recuperação.
A forma como homens e mulheres encaram a pandemia também é diferente. Segundo a pesquisa, 67% dos homens afirmaram ter mais medo de serem infectados em junho do que tinham no início, enquanto as mulheres eram 77%. Na economia doméstica, 71% das mulheres afirmaram conduzirem suas finanças com cautela e planejamento em relação a 64% dos homens. Para o economista Eduardo Giannetti, há um paralelo estreito entre saúde e economia. “É o valor que se atribui ao futuro. As mulheres têm mais apreço pelos valores que se materializam no tempo, o homem é mais impulsivo. É bastante consistente com a psicologia econômica dos gêneros: prudência, parcimônia, cautela; a mulher pensa mais no futuro da família do que o homem”, explicou.
A pesquisa indica que, em setembro, houve aumento na confiança da população, o que se deve, principalmente, à melhoria na percepção em relação ao final da pandemia — ainda que a expectativa econômica não tenha avançado tanto.
O QUE VOCÊ APRENDEU COM A PANDEMIA?
Me aproximei mais de pessoas e vi que estar próximo nem sempre é estar perto
Mulher, 20 anos, classe B
Acho que aprendi a dar mais valor à vida como um todo. Sinto que fiquei mais próximo dos meus familiares, e isso é ótimo
Homem, 21 anos, classe C
Por atingir quase o fundo do poço, eu decidi que se eu não tentasse melhorar algumas áreas da minha vida, como alimentação, eu ia morrer. Então, melhorei
Mulher, 24 anos, classe B
Me sinto inseguro de curto a médio prazo com relação à economia e à geração de novos empregos, porém sinto que meu vínculo familiar (com esposa e filha) está melhor do que antes da pandemia
Homem, 38 anos, classe C
Me preocupo mais com o bem-estar da minha família, como nunca tinha me preocupado antes. Temo perder alguém pela epidemia, passei a me importar mais com a minha família
Homem, 41 anos, classe B
Na casa da bióloga Ilana Salorenzo, de 41 anos, em Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a relação com o consumo também precisou ser repensada. Os cuidados com a família, que inclui a filha pequena e a mãe imunodeprimida, além dos com a casa e o trabalho, se tornaram um malabarismo desafiador. A família segue em isolamento a maior parte do tempo e optou por não mandar a pequena para a escola. Assim, mesmo sendo “contra consumismo e geração de lixo”, começaram a dar muitos brinquedos para a criança na tentativa de ocupá-la. “Eu me dei conta, sentamos e conversamos. Estávamos indo por um caminho diferente do que deve ser. Agora estamos mais adaptados”, contou. Mas os desafios continuam: “Não tenho coragem de trazer a funcionária. A casa fica uma loucura, a gente faz quando dá, um dia lava um banheiro, no outro dia lava outro”, disse. O desespero inicial passou, mas ela ainda não tem confiança de que tudo voltará ao normal tão cedo. “Hoje, o medo diminuiu não porque nos acomodamos, mas porque já sabemos do que se trata. Mas tenho certeza de que a curto prazo não sairemos dessa.”
O discurso pé no chão está refletido nos gastos das famílias. Itens essenciais como café, leite e boa parte dos alimentos se mantiveram estáveis e houve queda de consumo em segmentos como roupas e cosméticos.
O consumo nos últimos meses foi sustentado por um balão de oxigênio. Como medida para mitigar os efeitos da crise, 67 milhões de pessoas receberam um auxílio emergencial do governo, que custou aos cofres públicos R$ 174 bilhões, o que representa cinco vezes o gasto anual do Bolsa Família em apenas cinco meses. Não fosse essa medida, projeta-se que o sentimento de descrença em relação à economia impactaria mais os indicadores. Giannetti explicou que muitos daqueles que hoje ainda recebem o auxílio deixaram de engordar as fileiras do desemprego durante o recebimento do benefício — mas agora deverão voltar a ela. “É muito provável, e já está começando a acontecer, que o desemprego dê um salto nos próximos meses. Aí, sim, virá a onda forte e brava do impacto socioeconômico da pandemia”, previu.
O advento do auxílio e a maior cautela com os gastos fez com que, apesar da crise e do desemprego, os entrevistados afirmassem conseguir poupar mais. Para 46%, a necessidade de ter algum investimento se deu em razão da preocupação com o futuro. “Isso pode ter efeito pedagógico na população, porque o brasileiro é um dos povos que menos poupam no planeta. Mesmo países com populações com nível de renda menor têm mais poupança, como a China. O brasileiro é imediatista, é um traço comportamental porque vem de culturas imediatistas. Outro elemento é o clima. Ao longo de muitas gerações isso tem impacto brutal”, explicou Giannetti. Outra mudança observada é a melhora no convívio familiar. Eles disseram ter melhorado a convivência como resultado do home office e do isolamento e também afirmaram estar estudando mais. O professor Roberto Abreu sentiu isso no dia a dia de seus cursos, com alunos mais interessados em participar. “Acho que perceberam que é um valor que estão investindo e agora entendem que precisam se dedicar mais.”
O QUE VOCÊ APRENDEU COM A PANDEMIA?
Apesar de todo o problema, de ficar sem trabalhar, ficar sem dinheiro, ficar mais tempo com meus filhos está valendo a pena
Homem, 41 anos, classe C
Procurei ficar mais próxima de Deus e me conhecer melhor
Mulher, 44 anos, Classe B
As reflexões que fiz sobre companheirismo e amizade me ajudaram a enxergar as pessoas que realmente atendem a esses adjetivos
Mulher, 43 anos, classe A
Estou arriscando mais na gastronomia e preparando diferentes pratos. Aprendi a trabalhar com diferentes softwares por causa das aulas remotas
Mulher, 43 anos, classe B
Saber quanto somos finitos
Homem, 33 anos, classe B
Apesar das mudanças, ainda há dúvidas sobre se o brasileiro cauteloso veio para ficar ou se é apenas um produto temporário da pandemia. Giannetti acredita na segunda opção. “Quando sentir que acabou, deve haver um momento de desafogo. Depois do luto, consternação e pânico, vem um rebote, como foi o Carnaval pós-gripe espanhola. Nos Estados Unidos, após o 11 de setembro, durante algumas semanas, despencou a demanda por produtos dietéticos, academias de ginástica, tudo que exigia fazer um esforço imediato. Havia dificuldade de abrir mão de prazeres por benefícios que não se sabia se seriam colhidos. A onda hedonista virá quando virarmos a página”, profetizou. Em 1920, uma das mais marcantes marchinhas do Carnaval, composta por Assis Valente e eternizada na voz de Carmen Miranda, ilustrava a sede por vida. Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar(...) E sem demora fui tratando de aproveitar/Beijei na boca de quem não devia/Peguei na mão de quem não conhecia/Dancei um samba em traje de maiô/E o tal do mundo não se acabou.”
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