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Dica da semana: Joias brutas, filme, Netflix

Filme traz metáfora angustiante sobre economia especulativa

A ficção, dirigida pelos irmãos Josh e Benny Safdie, traz como protagonista Hower Ratner, interpretado por Adam Sandler. Esse mesmo ator, conhecido pelas comédias “pastelão” (Como Se Fosse a Primeira Vez, O Paizão, Herança do Mr. Deeds etc), nos faz esquecer do seu estereótipo: Sandler se prova um ator exímio em Joias Brutas, interpretando um papel no qual a comédia fica de fora para dar luz à uma personagem imersa em tensões e angústias. 

O filme trata de um joalheiro, Hower Ratner (Adam Sandler), que entra em uma espiral de dívidas. Para pagar seu agiota, realiza apostas em partidas de basquete da NBA; para pagar as apostas, recorre à penhora; para pagar a penhora, recorre aos leilões. Nos momentos em que Hower consegue o dinheiro, investe tudo em aposta; quando não tem, cria dívidas especulando ou que irá acertar as jogadas dos atletas, ou que irá superfaturar sobre joias raras, como é o caso da Opala Negra. Esse mineral está presente logo na abertura do filme, quando o espectador mergulha no brilho colorido da joia bruta – e também encerra o filme, fazendo-nos refletir sobre questões como escassez, valor agregado, especulação e exploração.

Percebe-se, portanto, que toda a riqueza que Hower acumulou se baseia não no trabalho - como é o caso dos mineradores na Etiópia que extraem a Opala Negra -, mas na especulação. Tendo a perspectiva de que as maiores crises do sistema econômico a partir do século XX foram devido à especulação não correspondida pelo mercado, vemos centralizado em Hower diversas contradições e tensões provenientes do sistema econômico. A ideia aqui é diferente da proposta por filmes como O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese) ou A Grande Aposta (Adam McKay) que tentam explicar a forma literal de funcionamento da bolsa de valores. Em Joias Brutas, não existe referência a mercado imobiliário, bancos ou ações, mas a agiotas que literalmente perseguem Hower, sempre ávido em acumular mais riquezas – e sempre tentando escapar de seus credores - trazendo ao espectador um impacto visceral.

Nesse sentido, toda a produção dos irmãos Safdie colabora para criar um clima de angústia e tensão. A trilha sonora é marcante, com músicas sintetizadas que relembram os anos 80 e se repetem nos momentos de clímax; no plano de fundo, coadjuvantes estão frequentemente discutindo ou falando alto, e cenas triviais, como portas que travam, criam uma sensação de que a qualquer momento tudo irá dar errado.

Um outro aspecto que vale ressaltar é a presença do basquete como constituinte da cultura norte-americana. É um esporte que permeia toda a longa-metragem por meio da personagem Kevin Garnett e sua relação com Hower, que concede a Opala Negra ao atleta para, em troca, obter acertos em suas apostas. O basquete é um esporte que, diferentemente do futebol brasileiro, pode ser bastante previsível, o que possibilita apostas detalhadas sobre passes, jogadas e pontuações para toda a season. Essa previsibilidade movimenta enormes apostas em cidades como Las Vegas, como podemos ver nas cenas finais do filme.

Joias Brutas foi premiado pelo Independent Spirit Awards em 2020, com Adam Sandler para Melhor Ator e os irmãos Safdie para Melhor Direção. Essa obra prima foi, no entanto, esquecida pelo Oscar, que sequer fez menção ou indicação ao longa, fazendo render xingamentos e desdém no discurso de Sandler durante o Spirit Awards. 

Os mais céticos e realistas apostarão, depois de transcorridos alguns minutos de filme, que tudo dará errado no final. Os mais esperançosos talvez enxerguem uma luz no fim do túnel pra Hower. Afinal, existe alguma forma de sucessivas especulações se realizarem no final? (Por Megan Sutton-Kirkby em 17/10/2020)





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