Marcos numéricos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam para a análise estatística. Dias atrás, mundo afora, as manchetes destacaram a (falsa) ultrapassagem da fronteira do milhão de mortos por Covid-19. Certamente o limite foi rompido antes, mas não enxergamos a placa graças à subnotificação generalizada. De qualquer forma, é um sinal da escala da pandemia —e, ainda, um alerta sobre a arrogância humana, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna na Folha, publicada sábado, 03/10. Continua a seguir.
Um milhão é muito ou pouco? Não vale comparar a pandemia com
fenômenos cujas causas, temporalidades e espacialidades são distintas, como
guerras, atentados terroristas, mortes no trânsito ou tsunamis. Pandemias devem
ser cotejadas com pandemias; doenças com doenças.
A tuberculose mata, anualmente, cerca de 1,5 milhão; a
diarreia infecciosa, 1,4 milhão; a Aids, 950 mil; a malária, 620 mil; as gripes
comuns, 650 mil. A OMS estima até mais um milhão de óbitos pelo coronavírus
antes da vacinação em massa —e isso com o cortejo de restrições sanitárias
aplicadas pelos governos. É muito.
Ninguém sabe ao certo quantos morreram na gripe espanhola de
1918. As estimativas variam de 18 milhões a 50 milhões. A mortalidade giraria,
portanto, entre 1% e 2,7% da população mundial de 1,8 bilhão. Naquele ano, pela
última vez na história, registrou-se crescimento demográfico global negativo. A
Covid, em contraste, ceifará menos que 0,03% da população do planeta e será
praticamente indetectável nos gráficos da dinâmica demográfica. É pouco.
Muito ou pouco, depende do ponto de vista. O número assombra
os arautos da "gripezinha". Osmar Terra, guru especialista de
Bolsonaro, profetizou um máximo de 2.000 mortes no Brasil, num ciclo epidêmico
limitado a 13 semanas. Qual seria o saldo de óbitos pelo vírus se, como queria
o presidente, tivéssemos escolhido prosseguir a "vida normal"?
Na ponta oposta, o milhão global de mortos desmente os
profetas que, inspirados pelo Imperial College, imaginaram algo como uma
reedição da gripe espanhola. Atila Iamarino projetou "um milhão de pessoas
mortas" —mas apenas no Brasil e somente até o final de agosto. Isso, no
"cenário de mitigação que a gente está fazendo", ou seja, fechando
"escola, transporte, trabalho". Qual seria nosso saldo de miséria,
desemprego, desespero e violência social se, como queria o fundamentalismo epidemiológico,
tivéssemos optado pela via do "lockdown" eterno?
O erro é parte da experiência humana: ninguém deve ser
estigmatizado por equívocos de boa-fé. Mas as profecias hiperbólicas simétricas
evidenciaram complexos intercâmbios entre o discurso científico e as narrativas
políticas.
Os 2.000 de Terra ajudaram a extrema-direita a conferir um
simulacro de legitimidade científica ao negacionismo criminoso de Bolsonaro. O
milhão de Iamarino contribuiu com o esforço da esquerda de reivindicar o
impossível para, na sequência, acusar todos os governantes adversários de
negligência criminosa. A polarização política fecha caminhos à difícil busca do
equilíbrio entre as demandas contraditórias da saúde, da economia e das
liberdades públicas.
Até aí, porém, singramos na superfície. Atrás das profecias
minimalistas oculta-se a arrogância diante da natureza: o vírus pode ser
ignorado, pois a economia é tudo. Já as profecias maximalistas expressam a
arrogância diante da sociedade: a vida social, o emprego, os direitos
individuais podem ser cancelados indefinidamente, pois o vírus é tudo. Numa
ponta, despreza-se a perspectiva aterradora de pessoas morrendo sem atendimento
às portas de hospitais superlotados. Na outra, a paisagem perversa da
militarização das cidades, de suas periferias e favelas, decorrente da
estratégia utópica de supressão completa dos contágios.
Um milhão é muito ou pouco? Sei lá. No meu mundo ideal,
seria um chamado à humildade, à dúvida e ao diálogo.
Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue:
História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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