Entramos em outubro com o coronavírus nos acompanhando. O número de casos de covid-19 segue aumentando dia a dia no mundo. No Brasil, o número de novos infectados segue alto - cerca de 30 mil na média de sete dias e 700 óbitos no mesmo período de tempo. O leitor já aprendeu que esses números variam de semana a semana, são sujeitos a críticas de metodologia e ninguém bate o martelo sobre qual será o número mais baixo que conseguiremos atingir no país, nos estados e em cada município, antes do desenvolvimento de uma vacina eficaz. São números altos qualquer que seja o critério de comparação adotado, escreve Iran Gonçalves Jr. no Valor, em artigo publicado na sexta, 2/10.
O que restou de isolamento social, respeito às proibições de ajuntamentos e orientações de distanciamento e uso de máscaras, mantém esses números. Nos países onde as medidas de restrições foram abrandadas se observa aumento no número de casos, nunca uma diminuição. Aqui no Brasil já estamos observando o mesmo fenômeno em várias cidades.
Ao mesmo tempo, vemos que leitos hospitalares dedicados aos pacientes com covid, mesmo aqueles de unidades de terapia intensiva, têm ocupação decrescente e que hospitais de campanha estão sendo desmontados. Isso significa que atingimos nosso número de equilíbrio?
Muito provavelmente não. Significa que conseguimos uma primeira e importante vitória na contenção do vírus, objetivo das primeiras orientações no mês de março. Pode significar que os mais suscetíveis já foram atingidos e que agora haverá menor necessidade de internação hospitalar. Dado o fato de que os números seguem altos, ainda não é possível afirmar que a tal imunidade de rebanho foi atingida.
O desafio atual é o processo de retorno às atividades econômicas e sociais sem que se perca o controle da situação. Perder o controle significa observar um aumento muito grande do número de casos, já que sabemos que o número de casos vai crescer. Os critérios para se manter isolamento e distanciamento adotados até agora terão que mudar porque mudará o equilíbrio alcançado até este momento.
O problema é definir o que é um “grande aumento”. Essa definição não existe na literatura médica e deverá ser pactuada pela sociedade e por cada grupo de pessoas que convivem em escolas, igrejas, clubes e eventos, por exemplo. É um processo complexo porque envolve muitos atores com diferentes riscos, idades e estados de saúde numa mesma comunidade.
Tomemos como exemplo uma escola ou universidade. Sabemos que as crianças raramente ficam doentes e os jovens adultos geralmente apresentam doença leve, mas professores, funcionários e familiares dos alunos fazem parte dessa comunidade, que será afetada de forma distinta caso fiquem doentes. O transporte dos estudantes também envolve contato com outros atores, seja escolar ou ônibus público.
O que será aceitável para essa comunidade? Fechar tudo caso ocorra um único caso? Apenas se ocorrerem 5, 10, 20 casos? Suspender aulas se alguém for internado? Fechar apenas se ocorrer algum óbito? Deve haver uma discussão profunda que permita um acordo do que será aceitável ou não. O mesmo raciocínio vale para fábricas, comércio, clubes e escritórios ou para se permitir aglomerações. Este é o problema que enfrentamos quando tomamos a decisão de afrouxar as medidas de distanciamento, isolamento e uso de máscaras.
No acordo das comunidades escolares, de trabalho, lazer ou devoção deve estar claro para todos que o número de infectados aumentará e que o risco de cada indivíduo é dado pelas comorbidades existentes e por um fator imponderável que é a resposta de cada um à agressão viral.
Não há uma resposta simples. Há uma resposta possível, que deve ser discutida e aceita pela comunidade, seja a escola, seja a cidade, do que fazer quando os casos aparecerem ou aumentarem. Esta resposta não deve ser dogmática, deve ser flexível, se adaptar à análise dos dados empíricos de cada local.
Testagem dos casos suspeitos e das pessoas próximas é a ferramenta disponível para procurar se compreender o caminho do vírus e se prevenir novos casos. Esse procedimento é mais fácil de se descrever do que realizar quando há um grande número de casos. Foi o pai ou o filho que levou o vírus para dentro de casa? Vai se testar o pessoal do trabalho do pai ou os contactantes da comunidade escolar? Ou ambos?
Abertura com apenas determinado percentual da capacidade da sala de aula ou do escritório, rodízio de alunos e funcionários para as atividades presenciais podem parecer boas ideias, mas sem a observação e análise dos resultados são apenas boas intenções sem validação empírica.
Não se conhecem os fatores que tornam as pessoas mais susceptíveis de contrair o vírus, mas conhecemos os fatores que tornam a infecção potencialmente mais grave e com maior risco de óbito. Idosos e pacientes próximos à quinta década de vida, portadores de doenças cardiovasculares, respiratórias ou outras doenças crônicas devem ser mantidos mais protegidos.
René Descartes (1596-1650), na primeira parte do “Discurso Sobre o Método”, escreve que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo. Todos julgam ser bem providos dele e não costumam desejar mais bom senso do que têm. Explica a diversidade de opiniões não como ausência de bom senso, mas pelas diversas vias pelas quais conduzimos nosso pensamento. Nesse clássico da filosofia, que abre o caminho para o pensamento epistemológico moderno, a maneira de atingir o verdadeiro conhecimento é a aplicação de uma metodologia sistemática.
É o que precisamos neste momento, transparência nos resultados obtidos a cada decisão tomada aliada à metodologia sistemática para análise e decisão do que fazer a seguir. É hora de controlar as “Paixões da Alma”, aliás, título de outro livro de Descartes.
Iran Gonçalves Jr., médico intensivista, cardiologista do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e responsável pelo PS de Cardiologia do Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, escreve neste espaço mensalmente
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