Vivian Oswald, de Londres, escreve ótimo texto sobre os 100 anos da Dama do Crime, na revista Época desta semana. Íntegra a seguir.
No ano em que Agatha Christie publicou seu primeiro livro, O misterioso caso de Styles (1920), o mundo ainda enfrentava a última onda da gripe espanhola. A epidemia, que teve início logo depois da Primeira Guerra Mundial, se arrastou por três anos, matou de 50 milhões a 100 milhões de pessoas e infectou mais de 500 milhões — cerca de um quarto da população do planeta à época. Àquela altura, ainda desconhecida, Agatha Christie não imaginava que suas histórias seriam avidamente consumidas pelos 100 anos que se seguiriam — com mais de 2 bilhões de cópias vendidas. Traduzida em 103 idiomas, só perde em popularidade para as obras de William Shakespeare e a Bíblia. Tampouco cogitava que, exatamente um século depois, seus livros serviriam de refúgio para leitores assombrados por outra pandemia planetária.
“Quero saber de outros livreiros o que venderam melhor desde o lockdown, além de Agatha Christie, que tem desaparecido das prateleiras como nunca vi”, provocou em sua página no Facebook Shaun Bythell, dono da The Bookshop, o segundo maior sebo de livros do Reino Unido, baseado na tristonha cidadezinha de Wigtown, na Escócia. Rapidamente, choveram comentários de seus pares, profissionais independentes de dentro e de fora do país, confirmando a inesperada preferência da clientela pela autora. Cada um arrisca um palpite para explicar o fenômeno. “É a nostalgia por tempos passados diferentes de 2020. É também extremamente reconfortante ter a garantia de um fim (de história) arrumadinho, num momento em que você luta para conhecer o desfecho na vida real”, disse Laura Blaikie, dona de sebo na Inglaterra. “Ela sempre foi popular em minha loja, mas a procura por boa parte dos autores de thrillers também tem crescido bastante nos últimos meses: John Grisham, David Baldacci etc. Leitura de escapismo…”, arriscou Tina Gateley, proprietária do sebo The Bookworm, do outro lado do Atlântico, no Canadá. “Também tenho vendido toneladas de Agatha Christie e me perguntava exatamente por que isso agora. Até umas velhas cópias dos anos 1970 e 1980, que não são propriamente atraentes, têm saído muito”, disse a livreira Kathryn Walker, lembrando que outros títulos de crimes estão com a demanda em alta. Ela arrisca uma razão um pouco mais distópica para o sucesso, com uma ponta de humor negro: “Talvez as pessoas estejam procurando ideias para assassinar seus parceiros de confinamento”.
A AbeBooks, o maior mercado on-line do mundo para livros novos, usados, raros, ou fora de catálogo, também notou o frenesi. “Vimos um aumento significativo das vendas dos livros de Agatha Christie de 1º de março a 1º de setembro deste ano em comparação ao mesmo período do ano passado”, afirmou a ÉPOCA Richard Davies, o porta-voz da empresa, que não divulga estatísticas de vendas, mas enumera os títulos mais procurados. Entre eles, Assassinato no Expresso do Oriente, E não sobrou nenhum (ou O caso dos dez negrinhos, como eram traduzidas as primeiras edições para o português), seu livro mais vendido mundo afora — mais de 100 milhões de cópias —, e O assassinato de Roger Ackroyd (1926). Também tiveram procura bem acima da média as coleções de histórias dos detetives eternizados pela Dama do Crime: o minucioso e sistemático Hercule Poirot e a senhorinha sempre mais sagaz do que a polícia, Miss Marple — por sinal, uma das primeiras protagonistas femininas do métier.
Os livros de Agatha Christie foram amplamente traduzidos e têm um número imenso de cópias de segunda mão baratas disponíveis na internet, mas a relação custo-benefício não é a única explicação para a explosão das vendas. A AbeBooks também vendeu obras caríssimas de colecionador. O recorde deste período foi uma primeira edição autografada de Seguindo a correnteza (1948). Saiu por US$ 4.125. É verdade que não se trata de uma obra como outra qualquer. Tem direito a dedicatória para a amiga da autora, Dorothy North, e inclui ainda a “assinatura” do detetive Hercule Poirot — criada por Agatha Christie, na mesma ocasião, com outra caligrafia, evidentemente. Qualquer livro assinado por ela é valioso. Uma cópia autografada em boas condições pode custar mais de US$ 10 mil. Para os apreciadores, a livraria on-line avisa que ainda tem disponível uma edição de Morte no Nilo, de 1937 — que costuma ser disputada —, pelo valor de US$ 6 mil.
“Certamente, uma das ligações mais óbvias de Agatha Christie com a Covid é que seus romances se passam muito frequentemente em espaços de confinamento, lugares de onde ninguém pode sair: um trem, um vilarejo sob tempestade de neve, um avião, um barco, ilhas, casas no campo. E, dentro dessas casas, ainda há inúmeros cômodos trancados: a biblioteca, o quarto de dormir. Agatha explora como as pessoas interagem quando confinadas. Há ressentimentos, paixões, violência e, em última instância, assassinatos. Como em E não sobrou nenhum, suas histórias são sobre estar em lockdown com gente insuportável, potencialmente odiosa e perigosa. Infelizmente, isso faz lembrar situações da era da Covid”, disse a ÉPOCA Dominique Jeannerod, professor e pesquisador da Queen’s University Belfast, que é especialista em literatura do século XX, cultura popular e ficção policial. Segundo o acadêmico, o filósofo e crítico literário Walter Benjamin já havia chamado a atenção para o fato de que os romances policiais funcionam como uma espécie de antídoto para nossos medos, ao projetá-los. Ou seja, ler sobre assassinatos em famílias em confinamento é uma maneira de manter o medo à distância.
Jeannerod explicou que, mesmo quando se passam em países distantes, os romances da autora britânica não se prendem ao exotismo, mas sim a um olhar para dentro, que tem por foco a psicologia de personagens muito vívidos e suas interações. “Os personagens quase sempre parecem ter mais cores do que os cenários. Eu sempre me perguntei se seus romances constituíam mesmo fuga e escapismo ou se, ao contrário, não estariam mais relacionados ao cativeiro, ou a uma espécie de ‘cativeirismo’, o que poderíamos definir como uma arte de entusiasmar a partir de fantasias literárias em cativeiro. O que nos atrai é a associação muito disfuncional de personagens muito estranhos confinados juntos pela duração da história. E o fato de haver a libertação no horizonte, provocada pela crise, um crime e, depois, por sua solução”, afirmou Jeannerod. Tudo isso em um universo em que a razão e a lucidez sempre vencem a loucura, mesmo quando a justiça não prevalece por completo.
OS 10 TÍTULOS DE AGATHA CHRISTIE MAIS VENDIDOS DURANTE A QUARENTENA
1. Assassinato no Expresso do Oriente
2. E não sobrou nenhum
3. O assassinato de Roger Ackroyd
4. O mistério do trem azul
5. O misterioso caso de Styles
6. Morte no Nilo
7. Um corpo na biblioteca
8. Os crimes ABC
9. Um crime adormecido
10. O cavalo amarelo
O misterioso caso de Styles, foi o début da autora e de Poirot. O livro surgiu por acaso. Foi sua resposta a um desafio feito pela irmã mais nova, Maggie. Queria saber se a mais velha era capaz de escrever um suspense tão benfeito, de modo que o leitor só fosse capaz de desvendar o crime ao final da história. Agatha Christie teve uma carreira para lá de prolífica. Notabilizou-se por 66 romances policiais e 14 livros de contos. Nos anos 1970, Poirot ganhou uma página inteira de obituário no jornal americano The New York Times.
Em mais de 50 anos, peças baseadas em seus livros foram encenadas em teatros do West End, região famosa da capital britânica. Três chegaram a ser encenadas simultaneamente, nas décadas de 1940 e 1950. A ratoeira talvez seja uma de suas obras de maior repercussão. Em cartaz desde 1953, entrou para o Guinness, o livro dos recordes, como a encenada há mais tempo da história. Neste ano, pela primeira vez, ficou seis meses fora de cena por causa do confinamento e das regras de distanciamento social impostas pela pandemia. Muitos teatros não tiveram fôlego para se sustentar com portas fechadas. Mas, para a alegria dos fãs de Agatha Christie, o St. Martin’s já anunciou que A ratoeira estará de volta ao palco até o final de outubro para seguir batendo seus recordes de audiência — isso se os planos não forem atropelados por ordens do governo, preocupado com a segunda onda.
Agatha Christie sempre lutou contra a ideia de uma literatura com fórmula, mas acabou, a despeito de seus esforços para surpreender os leitores, por lançar mão de padrões, sistemas de oposições e simetrias. Jeannerod destacou que não é mera coincidência o fato de Poirot ser tão obcecado por formas, clareza, combinações e quebra-cabeças. A aritmética e a geometria têm seu papel nos livros. Aqui vai um spoiler: “Ela usa isso desde o primeiro romance, quando nos leva a crer que o suspeito mais óbvio, o marido muito mais jovem da vítima, é muito óbvio para ser o culpado pelo crime de que é acusado. Até o momento em que revela que é evidente que só ele poderia ser o culpado”, disse o professor. Nos livros que se seguiram foi atrás de soluções novas e criativas. Mais spoilers: desde o narrador como criminoso (em O assassinato de Roger Ackroyd), até o próprio Hercule Poirot como culpado em seu último caso (Cai o pano, de 1975). Outra característica: ela entendia tudo sobre venenos diversos. Aprendeu a lidar com eles durante o período em que trabalhou como enfermeira durante a Primeira Guerra Mundial, enquanto escrevia seu primeiro romance.
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