Mesmo no melhor dos tempos, organizar eleições num país de dimensões continentais com 330 milhões de habitantes seria uma tarefa difícil. Mas os tempos não são normais, e, faltando apenas um mês para escolher um presidente, os Estados Unidos definitivamente não são um país normal. Mais de 200 mil cidadãos já morreram numa pandemia que continua afligindo todos os aspectos da vida nacional, a economia está dizimada, o país é governado por um dirigente autoritário acusado de ser racista e corrupto e uma crescente polarização política e racial tem levado a confrontações e mortes nas ruas, escreve o colunista da revista Época na edição desta semana. Continua a seguir.
A votação marcada para o dia 3 de novembro não é apenas uma disputa normal entre Donald Trump e Joe Biden, republicanos e democratas, para eleger o presidente, os 435 representantes da Câmara de Deputados e um terço do Senado. Para muitos, vai determinar também se os Estados Unidos continuam como país democrático ou entram no caminho ao absolutismo, com Trump no papel de máximo caudilho. Outros ainda consideram a eleição a mais importante desde 1860, quando a vitória de Abraham Lincoln desencadeou uma guerra civil. “A escolha não pode ser mais clara”, declarou Biden, em agosto, retratando a votação como uma batalha entre “luz e trevas”. “Não se engane: apenas por meio da unidade nacional é que podemos vencer esta temporada de escuridão na América.”
Para entender uma eleição presidencial americana, o primeiro passo é descartar a ideia de que se trata de um só sufrágio, com um só padrão nacional, em que o candidato com o maior número de votos colhidos nas urnas é vitorioso. Não é assim: são 51 eleições simultâneas, mas distintas (uma por estado, mais o distrito federal de Washington, D.C.) e com regras diferentes orientando os horários de votação, a maneira de contar votos e até o tipo de máquinas e cédulas usadas. Só depois dessa fase preliminar é que acontece a verdadeira escolha do presidente: num Colégio Eleitoral, com a votação decisiva dos delegados marcada para 14 de dezembro, seguida por uma ratificação formal no novo Congresso no dia 6 de janeiro.
Em outras palavras, é uma eleição indireta, em que o eleitorado escolhe delegados para que estes, em nome do povo, elejam o presidente. A distribuição de delegados entre os estados segue uma fórmula fixada na Constituição em 1788: quanto mais habitantes um estado tem, mais delegados terá no Colégio Eleitoral. O montante em cada estado é a soma do número de senadores (sempre dois) mais o número de deputados na Câmara, com um mínimo de três delegados. No total, são 538 votos, e para ganhar a eleição é preciso ter ao menos 270.
Isso leva a situações em que o resultado no Colégio Eleitoral não coincide com a vontade popular expressada nas urnas. Nos primeiros 200 anos da República, isso aconteceu apenas duas vezes, em 1876 e em 1888. Mas nos últimos 20 anos ocorreu outras duas vezes, sempre com vantagem para os republicanos. Em 2000, George W. Bush perdeu o voto popular pela estreita margem de 543.895, mas ganhou no Colégio Eleitoral, 271 a 267. Em 2016, Hillary Clinton recebeu 2.868.686 de votos a mais que Donald Trump, mas perdeu por 306 a 232 na única votação que realmente conta.
Olhando o mapa eleitoral de 2020, os politólogos calculam que Trump poderia perder a votação popular por até 5 milhões de votos e ainda assim triunfar no Colégio Eleitoral. Com as pesquisas consistentemente indicando que Biden tem o apoio de 48% ou 49% do eleitorado, em comparação a 41% de Trump, parece que a estratégia do presidente se baseia na exploração desta anomalia fundamental: está tentando aumentar o número de votos válidos nos estados onde tem apoio e, a todo custo, suprimir a votação da oposição, tanto nos lugares onde não tem a mínima chance de ganhar como nos estados mais competitivos.
Por exemplo, Trump nem sequer pretende fazer campanha na Califórnia, apesar de seus 40 milhões de habitantes e 55 votos no Colégio Eleitoral, porque já sabe que vai perder feio lá e não pretende desperdiçar dinheiro e esforço no maior curral do país. Seguindo a mesma lógica, Biden precisa decidir se vale a pena montar campanha no Texas, que tem 29 milhões de habitantes e 38 votos, mas não apoia um democrata desde 1976. Por essa razão, a eleição será decidida em nove “estados oscilantes”, duramente concorridos justamente porque o resultado é imprevisível: Arizona, Carolina do Norte, Colorado, Flórida, Iowa, Michigan, Nevada, Pensilvânia e Wisconsin.
Em 2016, Trump ganhou sete destes estados, perdendo apenas em Nevada e no Colorado. Mas as pesquisas mais recentes apontam que ele está perdendo por margens de até 9 pontos (no Arizona) e, na melhor das hipóteses, empatado em dois (Flórida e Carolina do Norte). Para reverter essas tendências, está apoiando medidas extraconstitucionais e antidemocráticas cada vez mais extremas, numa tentativa de minar o processo e a estrutura eleitoral. Num recente comício na Carolina do Norte, por exemplo, incitou a plateia a votar duas vezes e no debate assustadoramente combativo e caótico com Biden em 29 de setembro incentivou seus seguidores a “fiscalizar” (leia-se “intimidar”) a oposição nos locais de votação.
Devido à pandemia de Covid-19, milhões de eleitores pretendem evitar as urnas e votar pelo correio. É um sistema confiável, que funciona há décadas; em cinco estados, é a única maneira de votar. Mas Trump tem lançado uma verdadeira cruzada para desprestigiar e impossibilitar o voto por correio — modalidade que ele próprio usa. Apesar de não existir nenhuma prova para sustentar suas acusações, ele alega que vai haver “uma fraude histórica”, que milhões de cédulas falsas favorecendo Biden, fabricadas por potências estrangeiras como China e Irã, vão inundar o correio e que os democratas vão injetar outros milhões mais delas.
Pior ainda, ele está tentando enfraquecer, ou até paralisar, os próprios Correios. Quando em maio indicou um bilionário, grande doador republicano e chefe de uma empresa privada concorrente dos Correios como novo chefe do órgão, começaram a sumir das esquinas das grandes cidades as caixas de correio, e nas agências centenas das máquinas que fazem a triagem da correspondência também desaparecerem. Em agosto, foi ainda mais longe, dizendo que vetaria qualquer legislação para aliviar o impacto econômico da pandemia se a proposta incluísse ajuda financeira para tornar os Correios mais eficientes.
Um projeto de lei aprovado pela Câmara, de maioria democrata, tem duas cláusulas destinando US$ 28 bilhões para esse fim. Mas, uma das características mais marcantes de Trump é que ele não esconde suas intenções, e assim foi no caso dos Correios. “Eles precisam daquele dinheiro para que os Correios funcionem e tenham a capacidade de processar milhões e milhões de cédulas”, declarou. “Se eles não conseguem os dois itens, significa que não será possível ter a votação universal por correio.” Calcula-se que até 85 milhões de votos serão dados via Correios, a maioria deles de democratas.
Diferentemente do Brasil, a votação não é obrigatória nos Estados Unidos, e em 2016 apenas 60% de um eleitorado total de 250 milhões de pessoas votou. Mas as múltiplas crises e polêmicas do governo de Trump têm motivado uma participação cívica maior, especialmente entre jovens e minorias raciais. O casal Obama está liderando uma das campanhas nacionais para registrar novos eleitores, e outros esforços contam com a participação de celebridades como Jennifer Lopez, Leonardo DiCaprio, Jennifer Aniston, Lebron James e Meghan Markle. “É dever de todo cidadão americano ser parte das mudanças que queremos ver em nosso país,” escreveu a atriz Reese Witherspoon.
Naturalmente, Trump e os republicanos estão contra. Se os democratas conseguirem expandir o eleitorado, o presidente alertou em março, “vai haver níveis tais de votação que, doravante, se você concordar com isso, faria nenhum republicano jamais ser eleito neste país”. Por isso, os republicanos não têm concordado: nos 26 estados onde eles controlam o governo estadual, estão fazendo de tudo para frear a expansão do eleitorado ou até diminuir o número de inscritos. Estão limpando os registros eleitorais de pessoas que não votaram em 2016, reduzindo o número de locais de votação em bairros negros e hispânicos, e (num país sem carteira de identidade) restringindo os tipos de documentos válidos para poder votar: no Texas, cédula de posse de arma vale, carteira de estudante universitário não.
Algumas das outras artimanhas empregadas pelos republicanos para baixar artificialmente a participação são engenhosas — e diabólicas. Em Dakota do Sul, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto que tornaria inelegível todo eleitor que usa uma caixa postal como endereço oficial — isso num estado em que 9% da população é indígena, a maioria deles morando em reservas, sem endereço fixo. Na Flórida, foi aprovado num plebiscito em 2018 a restauração do direito de votar a mais de 1 milhão de pessoas com antecedentes criminais. Mas a Assembleia republicana não aceitou: determinou que ex-presos poderiam votar só depois de quitar as despesas legais do julgamento contra eles. Quando o bilionário Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York e desafeto histórico de Trump, se ofereceu para pagar as multas, o governo estadual lançou um inquérito contra ele, alegando sua “ingerência no processo eleitoral”.
Trump ansiava ganhar uma maioria nas urnas para poder acabar de uma vez com as críticas de que o mandato dele carece de legitimidade porque é um presidente minoritário e também para melhorar sua própria autoestima, frágil e abatida. Mas parece já entender que está destinado a perder o voto popular e que as chances de ser derrotado no Colégio Eleitoral aumentam diariamente. Num tuíte em julho, aproveitou a crise do vírus, que ele próprio criou com políticas incompetentes, para lançar a ideia de “postergar a eleição até o povo poder votar adequadamente, seguramente e protegidamente”, depois de a pandemia terminar.
A sugestão foi imediatamente rebatida, até por seus aliados, e de lá para cá ele tem adotado uma estratégia de semear confusão, com a esperança de gerar um caos pós-eleitoral que pode aproveitar para permanecer mais quatro anos no cargo. Na semana passada, recusou-se a garantir uma transição pacífica de poder caso Biden ganhe, dizendo: “Livre-se das cédulas e, francamente, não haverá uma transição, haverá uma continuação”. Também deu a entender que poderá mandar tropas e policiais confiscar cédulas “suspeitas” — possibilidade que deixa o Pentágono, por lei apartidário, extremamente nervoso. E na internet, a fake news, espalhada por Trump e seu aliado russo Vladimir Putin, estourou, com Biden acusado de ser senil, pedófilo e de fazer uso de drogas.
Com a morte no dia 18 de setembro da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg, uma situação já complicadíssima ficou ainda mais enredada. A Corte tem nove integrantes, todos com mandato vitalício, e está dividida em duas facções bem definidas: cinco conservadores e quatro progressistas. Ginsburg foi decana do segundo grupo, com 27 anos de serviço, e, mesmo antes de ser enterrada, Trump já tinha apresentado para a aprovação do Senado uma jovem juíza ultraconservadora, Amy Coney Barrett, de 48 anos, para substituir Ginsburg.
Em fevereiro de 2016, com outra vaga aberta e faltando nove meses para a eleição, a maioria republicana no Senado nem convocou audiências preliminares sobre o juiz indicado pelo então presidente Obama, dizendo que num ano eleitoral é imprescindível “deixar o povo americano falar” por intermédio da escolha de um novo presidente. Mas esse princípio foi jogado fora agora, escassas seis semanas antes da eleição, e por razões óbvias: com Trump perdendo nas pesquisas, os republicanos querem consolidar quanto antes o controle duradouro do Judiciário. “Tomara que ela fique 40 anos na Corte”, Trump disse, sobre Barrett, num comício.
Com a indicação de Barrett, Trump pretende incentivar sua base a votar maciçamente, especialmente os evangélicos. Mas corre o risco de animar ainda mais a oposição: nas primeiras 48 horas após o falecimento de Ginsburg, os democratas colheram mais de US$ 100 milhões em doações, tamanha foi a indignação e o temor do eleitorado. A agenda da próxima sessão da Corte, que começa em outubro, está repleta de casos de extraordinária importância, e existe um medo generalizado de que uma nova supermaioria republicana e conservadora revogue o direito ao aborto e anule a lei que garante planos de saúde com preços controlados para toda a população, conhecida como Obamacare.
No fundo, existe outra grande preocupação: de uma crise constitucional que uma Suprema Corte republicana resolveria a favor de Trump, ignorando o veredito das urnas, exatamente como fez em 2000. Em suas declarações, Trump tem deixado claro que não aceita como legítimo qualquer resultado em que ele não ganhe e que pretende recorrer à Corte caso Biden tenha mais votos populares que ele. “A tramoia que os democratas estão implementando — é um golpe, uma jogada suja — vai acabar na Corte Suprema”, garantiu. No debate, voltou a ameaçar que a questão do voto por correio “não vai acabar bem” e alertou um grupo racista e neofascista que o apoia, Os Meninos Orgulhosos: “Fiquem prontos”.
Por tudo isso, o período entre 3 de novembro e 20 de janeiro de 2021, data da posse do próximo presidente, promete ser um dos mais tumultuados da história dos Estados Unidos. Fala-se de multidões nas ruas em pleno inverno — os seguidores de Trump armados com fuzis, os partidários de Biden empunhando cartazes —, enquanto os advogados dos candidatos batalham nos tribunais. Parece que a única maneira de evitar um confronto seria uma vitória esmagadora de Biden, que não deixaria a vontade do povo e a do Colégio Eleitoral em dúvida. Mas será que Trump acataria?
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