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Dica da Semana: Professor Polvo, documentário, Netflix

Nesta edição, temos a estreia de mais uma nova colunista, Megan Kirkby, que passa a colaborar com a Dica da Newsletter da LAM Comunicação. Primeiro texto sobre um documentário que tem dado o que falar.  

Reflexões sobre a delicadeza do inumano dominam 


O título e a capa do documentário da plataforma de streaming líder no planeta  trazem a ideia de que é um filme para ser assistido de forma despretensiosa e passiva antes de dormir, quase como se fosse o Animal Planet. A sinopse, que pode ser resumida na história de um mergulhador que se apaixona por uma polva, nos provoca certo gozo: como assim, um documentário sobre o amor entre um homem de meia idade com um polvo comum? Pois antes mesmo do primeiro terço do filme o espectador já é desarmado do desdém inicial e é conquistado por esta narrativa – quase uma poesia – em torno do polvo.

O documentário, realizado por Pippa Ehrlich e James Reed, intercala filmagens capturadas em 2010 por Craig Foster – também produtor - na região do Cabo das Tormentas e depoimentos de Foster acerca do período de quase 1 ano em que passou mergulhando e registrando sua relação com um polvo. Craig, que trabalhava com filmagens e edição, relata que após um período de grande estresse com o trabalho – que levou ao desgaste de suas relações familiares – resolveu retornar ao mar, lugar que remete à sua infância. É interessante que Foster se refere à região geográfica como Cabo das Tormentas no momento em que contextualiza a sua conturbada vida pessoal e profissional; na História das grandes navegações, este mesmo local passou a ser chamado de Cabo da Boa Esperança quando descobriu-se que havia a possibilidade de chegar às Índias pela ligação do Oceano Atlântico com o Índico. 

Professor Polvo ultrapassa os aspectos da divulgação científica sobre a vida marinha e dos polvos, atingindo a camada filosófica sobre o que é o ser humano e o que são os animais. Alguns fatores ajudam a criar a empatia do público com o documentário, como por exemplo o próprio fato de ser documental e não fictício. Neste sentido, se um dos objetivos dos produtores era conscientizar sobre a importância da preservação da vida marinha, certamente muitos deixarão de comer polvos – ou sentirão um pouco de remorso ao fazê-lo. Objetivo que Okja, também produzida pela Netflix, talvez não tenha atingido por se mascarar no âmbito ficcional.

Diversas questões ético-filosóficas passam pela cabeça do espectador mais atento. Foster decide, por exemplo, não dar um nome ao polvo. Ao mesmo tempo, ele não se utiliza do pronome “it” – que em inglês serve para indicar objetos ou animais – mas sim do “her”, pronome utilizado geralmente para pessoas. Da mesma forma, quando o polvo é atacado por predadores, o mergulhador toma a decisão ética de não interferir na complexa cadeia alimentar desse habitat, por mais que tenha criado laços afetivos com a presa. O que o “professor polvo” ensina é que o mergulhador com sua câmera não é um visitante, mas sim parte de um ecossistema. Destaca-se também a delicadeza dos momentos de interação entre o polvo e o mergulhador, que se assemelham a uma bolha de sabão. São momentos únicos, preciosos e complexos; qualquer oscilação estoura essa bolha baseada na confiança, seja um movimento brusco de Foster ou um tubarão prestes a devorar o polvo. 

É inevitável que o espectador familiarizado em ter um cachorro ou gato não associe essa experiência com a relação de Foster e o polvo. Será que seríamos capazes de nutrir um amor desapegado com um animal selvagem? Será que saberíamos lidar com o fato de que não sabemos se iremos encontrar o animal no dia seguinte? E será que se soubéssemos que nossos bichinhos viveriam apenas por 1 ano, teríamos tanta facilidade em adotar um gato ou cachorro?

Talvez o documentário nos faça refletir sobre a morte, a brevidade da vida e a delicadeza do inumano. Também proporciona boas risadas e algumas lágrimas nos mais sensíveis. (por Megan Kirkby em 03/10/2020)



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