A contaminação ideológica na corrida por uma vacina contra o coronavírus no Brasil colocou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no centro de questionamentos sobre uma possível interferência política no único órgão que pode conceder o registro para distribuir uma vacina no país. Na mesma semana em que anunciou que o Governo cancelaria o acordo de intenção de compra da vacina do laboratório chinês Sinovac, o presidente Jair Bolsonaro aprovou no Senado quatro indicados para a cúpula da agência. À hipótese de maior controle do ultradireitista sobre a agência, somou-se a queixa do laboratório de que a Anvisa estaria demorando para autorizar a importação de insumos necessários para a produção do medicamento rejeitado pelo presidente, escreve Beatriz Jucá no site do El País em matéria publicada na sexta, 23/10. Continua a seguir.
No país onde o presidente elevou a cloroquina ao status de remédio prioritário mesmo sem comprovação, instalou-se o receio de que a posição ideológica do mandatário pudesse agora prejudicar o acesso a medicamentos importantes para alcançar a proteção coletiva contra a covid-19. Mas até que ponto Bolsonaro pode de fato interferir nessa questão?
A legislação brasileira garante independência de autarquias especiais como a Anvisa, o único órgão que pode autorizar a aplicação de uma vacina como política pública nacional. É prerrogativa do presidente indicar seus diretores, que cumprem um mandato fixo e não podem ser demitidos por decisão política do chefe do Executivo. Formalmente, o presidente também não pode dar ordens ou direcionar as decisões técnicas do órgão. Ele só conseguiria atuar na tentativa de influenciar diretores alinhados politicamente com ele ―e é aí que está a preocupação de pesquisadores consultados pelo EL PAÍS. Segundo eles, a Anvisa dificilmente conseguiria negar um eventual registro para uma vacina que comprove sua eficácia internacionalmente, mas poderia sim procrastinar para concedê-lo. “Do ponto de vista legal, não há possibilidade nenhuma de interferência do presidente. Do ponto de vista político, claro que existe. Negar o registro a Anvisa não pode. Ela tem que entregar o que a lei exige, havendo condições técnicas, mas segurar o processo é possível”, explica o sanitarista Gonzalo Vecina, que já dirigiu o órgão.
Essa possibilidade não soa como descabida diante do cenário político brasileiro: de olho nas eleições de 2022, Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, duelam pelo capital político da primeira vacina a ser registrada no Brasil. O governador paulista tem usado como trunfo a vacina da Sinovac, que está sendo desenvolvida por meio do Instituto Butantan, ligado ao executivo estadual. E o presidente, que fez um acordo para a transferência de tecnologia da vacina de Oxford por meio de seu Ministério da Saúde e aderiu a um consórcio internacional para aquisição de várias vacinas promissoras, excluiu o imunizante de Doria do plano nacional ao desautorizar a intenção de compra acordada pelo ministro Eduardo Pazuello. Bolsonaro chegou a afirmar que não compraria a Coronavac nem mesmo com registro da Anvisa. “Não acredito que ela transmita segurança para a população pela sua origem”, declarou em uma entrevista à Joven Pan.
Diante da crise instaurada sobre a questão, o presidente da Anvisa, Barra Torres, precisou ir à público para prometer o que a lei já lhe exige: decisões técnicas. Também tem tentado afastar a hipótese de interferência política no órgão que comanda. “Nunca houve um pedido, uma sugestão, uma orientação, nada do presidente Bolsonaro tenha feito em relação às minhas atitudes na Anvisa”, garantiu em uma entrevista à Rádio Bandeirantes. A agência é responsável por analisar os ensaios clínicos para decidir se uma vacina poderá ou não ser distribuída no país. Diante da gravidade da pandemia que já deixou mais de 155.000 mortes no Brasil, o órgão já havia adaptado procedimentos com o intuito de tentar acelerar o registro das vacinas logo que seus testes revelem segurança e eficácia. Por isso, mesmo antes da finalização dos ensaios nas quatro vacinas em fase três no Brasil, já analisa parte dos documentos.
Além da Anvisa, outras instituições também devem entrar na cadeia de decisões sobre o destino das vacinas contra a covid-19 no Brasil. A mais importante delas é o Supremo Tribunal Federal (STF). Ontem, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu que irá enviar direto para o plenário as ações que discutem se a vacinação deve ou não ser obrigatória no país. Ainda não há data marcada para o julgamento, mas a judicialização das futuras campanhas de vacinação já é uma realidade.
Na quinta-feira, um novo fato foi adicionado à suposta interferência política na agência: uma possível demora para um parecer da Anvisa que permitiria a importação de insumos para a fabricação da Coronavac. Em nota, o Instituto Butantan afirmou que aguardava desde 18 de setembro o parecer e que a agência só deveria deliberá-lo em três semanas, quando haveria uma reunião presencial do novo colegiado diante das alterações da diretoria aprovadas pelo Senado. Isso impactaria, segundo o instituto, as perspectivas de produção e disponibilização de vacina contra a covid-19 para a população brasileira. “O Butantan espera que a Anvisa reavalie prazos e contribua para resguardar a saúde pública e a proteção dos brasileiros”, dizia a nota.
A Anvisa então respondeu que, por conta da transição da diretoria colegiada, essa decisão sobre o pedido de importação havia sido colocada em circuito deliberativo, cuja votação deve apresentar uma decisão em no máximo cinco dias úteis. No dia seguinte às queixas, autorizou a importação excepcional de 6 milhões de doses já fabricadas da Coronavac pelo Butantan. A aplicação das doses na população, porém, ainda depende do aval da agência e do resultado dos testes clínicos.
Seja como for, o desgaste sobre a questão das vacinas levou até a Associação dos Servidores da Anvisa a emitir nota na qual os servidores prometem manter a isenção e a ética na análise dos imunizantes: “Independentemente de origem ou nacionalidade, os produtos serão avaliados dentro dos mais elevados padrões técnicos e científicos, com a finalidade de promover o acesso e proteger a saúde do povo brasileiro”.
Para o médico e advogado sanitarista Daniel de Araújo Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo, a possibilidade de ingerência política na Anvisa não está totalmente afastada. Ele cita como exemplo o caso da cloroquina, incluída no protocolo nacional por vontade do presidente e sem base científica. A agência publicou uma nota inicial afirmando que não havia nenhum medicamento aprovado para o tratamento da covid-19, mas depois autorizou o uso compassivo da cloroquina e foi pouco enérgica na posição sobre o protocolo adotado pelo Governo Bolsonaro. “A Anvisa parece estar lavando as mãos nas notas relacionadas ao tratamento precoce do ministro Pazuello. Quando é provocada, não tem uma postura firme sobre o uso de medicamentos fora de bula", analisa.
Já Gonzalo Vecina avalia que há evidências de que Bolsonaro “forçou a barra” sobre a questão, mas a Anvisa negou as pressões. “Ele só conseguiu colocar [a cloroquina ] como off-label, porque não tem justificativa técnica", afirma. O uso off-label corresponde à utilização de um medicamento já registrado, mas para indicações não constantes de sua bula. Não há hoje no Brasil registro da cloroquina especificamente ao tratamento da covid-19, mas o medicamento está no protocolo do Ministério da Saúde. "A agência já passou por outras situações de pressão e conseguiu responder com a ciência. Espero que isso se repita agora com a vacina”, afirma.
Uma possível imposição ideológica do presidente Bolsonaro provocou a reação de governadores, que consideraram até acionar o Supremo Tribunal Federal se ela fosse concretizada. A lei brasileira que dispõe sobre a pandemia do coronavírus até permite que Estados possam comprar o medicamento imunizante sem registro se for considerado essencial e já tiver registro por agências dos Estados Unidos, Japão, Europa ou China. Mas ainda assim precisariam de uma autorização da Anvisa para fazê-lo. “Com essa autorização, os Estados podem comprar e distribuir em seus sistemas de Saúde. Mas para entrar no SUS como uma estratégia nacional, só com o registro da Anvisa”, explica.
Por enquanto, toda essa discussão está no campo da especulação. Há quatro vacinas em testes avançados no Brasil, mas nenhuma delas apresentou até agora resultados de eficácia para solicitar o registro da Anvisa. "Não existe isso de interferência política dentro das agências. Tem lobby de empresas, de políticos. A gente já está vacinado porque, na história da regulação, pressões acontecem todo dia. De todos os lados”, rebate o presidente do Sindicato das agências regulatórias, Cleber Ferreira.
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