De Nova York, Cadão Volpato escreve um belo obituário para o Valor de Zuza Homem de Mello, morto domingo, 4/10. Íntegra da homenagem a seguir.
Zuza Homem de Mello passou pela Terra como testemunha da melhor música que os homens foram capazes de criar no século XX. Ele morreu na madrugada de domingo (4), durante o sono, aos 87 anos. Antes de dormir, certamente ouviu uma boa música, porque ele sempre aparecia onde ela costumava estar. Em 1977, ouviu em primeira mão todas as canções do sensacional “Amoroso”, o disco que João Gilberto (1931-2019) gravava nos EUA, tocadas só para ele no quarto do hotel modesto onde o músico se hospedava em Manhattan.
Zuza cultivava essa espécie de invisibilidade sorridente, quando se tratava dos seus grandes ídolos. Ray Charles (1930-2004) era uma dessas figuras que ele admirava. Zuza gostava de contar a história de como esteve ao lado do cantor em situações diferentes, sem nunca ter coragem de dizer o quanto o admirava. Apenas ficou próximo dele, mudo, num estúdio em Nova York, e depois na ocasião em que Ray tocou no Tim Festival, em São Paulo.
Colaborador do Valor desde o início do jornal, em 2000, Zuza era musicólogo, crítico de música, contrabaixista, curador de festivais, escritor. Foi tudo isso e um pouco mais. Fez amigos em toda parte. Elis Regina (1945-1982) o chamava de José Eduardo, seu nome de batismo. “Eu a conheci na TV, como técnico”, ele contou uma vez. “Ela chegou uma tarde e foi direto ao sujeito que cuidava do som. Quando disse que era contrabaixista, ela adorou. Ela adorava o instrumento. Isso provocou uma empatia muito grande entre nós.”
Zuza acompanhou dos bastidores os grandes momentos que a música brasileira viveu a partir dos anos 1950. Gravou, como técnico de som, o primeiro “O Fino da Bossa”, programa que alavancou a carreira de Elis Regina nos anos 1960. Assistiu das coxias à ascensão irresistível de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Edu Lobo nos clássicos festivais da canção da mesma época. E também escutou em primeira mão os primeiros gritos e ousadias do tropicalismo.
Mas foi a bossa nova, que ele ouviu maravilhado ainda nos anos 1950, o movimento que mais o impressionou. Ouvir João Gilberto pela primeira vez teve, na vida de Zuza, um efeito avassalador. “Eu estava descendo a avenida Ibirapuera na minha perua Dodge, próximo ao monumento das Bandeiras”, ele contou em outra ocasião. “Então ouvi João no rádio. Fiquei tão chocado que parei o carro e fiquei ouvindo a música até acabar. Eu não conseguia mais sair do lugar. Era ‘Chega de Saudade’.”
Gil, Chico, Caetano, Roberto Carlos, Edu Lobo e Milton Nascimento: ele os viu nascer como músicos e os admirava profundamente. Mas era a bossa nova de Tom Jobim (1927-1994), Vinicius de Moraes (1913-1980) e João Gilberto que representava, para ele, a única grande revolução da música brasileira. E mais - ele costumava dizer que essa história de que a bossa nova teria nascido de uma costela do jazz não era verdade, ao contrário do que se dizia.
“Os caras que eram chegados ao jazz é que se aproximaram da bossa nova. Quando ela surge, mais para o final dos anos 50, evidenciada nos discos do João, inclusive com a menção da palavra, pela primeira vez, na contracapa do ‘Chega de Saudade’, a música brasileira se dividiu em duas metades. De um lado, os que a amavam; do outro, os que a abominavam. Não havia meio-termo.”
Tal entusiasmo era contagiante. Na sua última passagem por Nova York, cidade onde ele viveu e estudou música para valer, na prestigiosa Juilliard School e nos minúsculos clubes de jazz que frequentou como um aficionado nativo, Zuza foi homenageado com a exibição do documentário “Zuza Homem de Jazz”. Mas também deu uma palestra deliciosa sobre seu assunto favorito, João Gilberto, no consulado brasileiro, ao lado do biógrafo de Chet Baker (1929-1988), James Gavin.
Na ocasião, contou a amigos que estava reescrevendo a biografia de João, já publicada pela extinta Cosac Naify, mas que não parava de acrescentar dados novos a ela. Deu o ponto final no livro na terça-feira, 29 de setembro. Estava feliz. Era como deixar uma última mensagem para a humanidade, uma forma perfeita de homenagear um dos seus três grandes ídolos - os outros eram Ray Charles e Duke Ellington (1899-1974), com quem, aliás, também nunca conseguiu conversar.
A mensagem final de Zuza tem a ver com sua filosofia de vida: “É preciso saber ouvir”. E se houve uma coisa que ele soube fazer com toda arte foi escutar. Para a nossa sorte, soube guardar na memória e deixar no papel as mais extraordinárias passagens da melhor música brasileira e do jazz - essas categorias tão ameaçadas nestes tempos terríveis em que vivemos. Para os amigos, fica também um sorriso inconfundível.
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