Muito interessante a análise de Pedro Butcher para o Valor, publicada sexta, dia 7/2, no caderno Eu&Fim de Semana do jornal. Íntegra a seguir.
Quando recebeu o Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira por “Parasita”, no dia 6 de janeiro, o diretor Bong Joon-ho alfinetou a plateia. “Quando vocês superarem a barreira de uma polegada das legendas, serão apresentados a muitos outros filmes incríveis”, disse, com um leve sorriso no rosto.
A crítica não tinha como alvo direto a Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, anfitriã da noite, mas o imenso público da transmissão televisiva (18,3 milhões de espectadores nos EUA) e, sobretudo, os convidados presentes no salão, a elite de Hollywood, reunida no primeiro de muitos encontros que antecedem o Oscar, que será entregue no domingo (com transmissão no Brasil pela Globo, TNT, Globoplay e G1).
Da forma como foi colocada, a crítica do cineasta sul-coreano reforçou (ou pelo menos pareceu reforçar) um velho clichê evocado para justificar a ínfima presença de obras faladas em outras línguas que não o inglês nas telas de cinema dos EUA: seria culpa exclusiva do público e de sua “preguiça” de ler legendas. O mesmo argumento costuma ser usado para justificar a preferência da indústria pela compra dos direitos para produzir versões em inglês, em vez de investir na distribuição dos filmes estrangeiros - estratégia que já alvejou o próprio “Parasita”, que está sendo transformado em série pelo HBO.
Bong Joon-ho tem toda razão de chamar atenção para o fato, mas a questão não se limita à “barreira de uma polegada de altura das legendas”. Se o impedimento é a “preguiça” de ler legendas, o mesmo poderia valer para plateias europeias e latino-americanas, que veem a maioria dos filmes americanos na versão dublada. O que impediria, portanto, a exibição nos cinemas americanos de filmes dublados em inglês?
Surpresas ainda são possíveis , principalmente depois que a Academia aumentou o número de indicados a melhor longa-metragem
A culpa não é do público, mas de uma cultura que começou a tomar forma muito cedo, historicamente ligada à própria constituição interna do cinema como indústria nos Estados Unidos, a partir dos anos 1910. Um processo que, como demonstrou o pesquisador Richard Abel, incluiu a fabricação de um discurso de superioridade da produção local, combinado a uma progressiva marginalização dos produtos estrangeiros. Estes, até aquele momento, circulavam e tinham a preferência do público nos EUA, sobretudo os filmes da francesa Pathé, líder de mercado até a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Aos poucos - e com a contribuição circunstancial da guerra, que retirou momentaneamente a produção europeia de cena -, consolidou-se a ideia de que tudo que fosse estrangeiro, no ambiente cinematográfico dos EUA, só seria legitimado se antes fosse assimilado e deglutido pela máquina da indústria local.
Esse mesmo processo que praticamente tirou de cena a produção que vinha de fora foi também responsável pela diminuição radical da diversidade nos quadros de trabalhadores do cinema americano. Enquanto a atividade se expandia e se tornava a diversão favorita do público, mas ainda não havia se estruturado como indústria, as mulheres tiveram mais responsabilidades e ocupavam várias posições com poder de decisão - as atrizes Mabel Normand (1892-1930) e Mary Pickford (1892-1979), por exemplo, também dirigiam filmes, para citar apenas dois exemplos.
Na medida em que essa indústria se organizou como um oligopólio dominado por oito marcas (Paramount, Fox e Warner à frente), a importância das mulheres ficou circunscrita à frente das câmeras, graças ao “star system”. Ignoradas pela história que começou a ser escrita a partir dos anos 1940, as pioneiras do cinema, algumas ativas até meados dos anos 1920, tiveram suas trajetórias recentemente resgatadas em pesquisas acadêmicas, livros e documentários como “Be Natural - The Untold History of Alice Guy-Blachet” (2018) ou “E a Mulher Criou Hollywood” (2016).
Do ponto de vista racial, Hollywood se estruturou reproduzindo a segregação interna do país, tornando-se não apenas uma indústria majoritariamente branca, como também uma das mais fechadas à diversidade mesmo depois de aberturas promovidas pelos movimentos civis.
As provações e atribulações que assombram o Oscar, todas ligadas a uma incapacidade de se diversificar e renovar, são reflexos da própria indústria do cinema americano. Nas primeiras décadas da premiação, apenas produções em inglês participavam. Os filmes estrangeiros só começaram a ser convidados para a festa a partir de 1947 - não por acaso, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o caos econômico nos países em reconstrução se revelou perfeito para uma ampliação ainda maior da presença hollywoodiana, gerando um intenso desconforto político e a adoção de políticas de proteção às produções nacionais.
Entre 1947 e 1955 (com exceção de 1953), troféus especiais ou honorários foram atribuídos a oito filmes estrangeiros - não por acaso, produções francesas e italianas. Somente em 1956 a categoria “melhor filme em língua estrangeira” foi oficialmente estabelecida e, desde então, tem sido centro de disputas e polêmicas que provocam constantes mudanças em seus critérios de elegibilidade. Agora, mudou também o nome: a partir de 2020, passa a se chamar “melhor filme internacional”.
Assim como aconteceu com “Roma”, de Alfonso Cuarón, falado em espanhol, no ano passado, o sul-coreano “Parasita” superou a tal “barreira das legendas” e conseguiu indicações em várias outras categorias além de “longa-metragem internacional” - seis ao todo, incluindo longa-metragem, direção, roteiro, direção de arte e montagem. No domingo, quando os vencedores forem revelados, uma eventual vitória do filme na categoria “melhor longa-metragem” poderá fazer história: seria a primeira produção não falada em inglês a vencer o Oscar na categoria principal.
As chances existem, claro, mas são improváveis. Em 2019, “Roma” teve uma campanha ainda maior e conquistou mais indicações (dez ao todo), levando três prêmios: melhor direção, fotografia e longa em língua estrangeira. A categoria principal ficou com “Green Book: O Guia”, um quase azarão que viu seu favoritismo crescer na última hora e que teve uma sutil campanha de bastidores liderada por Steven Spielberg.
Neste ano, as premiações que antecedem o Oscar têm destacado “1917”, de Sam Mendes (Globo de Ouro de melhor filme dramático e o prêmio de melhor filme do Sindicato dos Produtores) e “Era Uma Vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino (Globo de Ouro de melhor comedia ou musical). Na premiação do sindicato dos atores (SAG Awards), “Parasita” se tornou a primeira produção não falada em inglês a ganhar o prêmio de “melhor elenco de longa-metragem” - feito que se explica mais porque o filme não ganharia qualquer das premiações “isoladas” de atuação, que foram para Joaquin Phoenix (“Coringa”) e Renée Zellweger (“Judy”), como melhor ator e atriz; e Brad Pitt (“Era Uma Vez em Hollywood”) e Laura Dern (“História de um Casamento”), melhores ator e atriz coadjuvantes.
Cada vez mais previsível em função da proliferação de premiações anteriores que tentam adivinhar/ditar as tendências para a Academia, a noite do Oscar quase sempre reserva ao menos uma surpresa. No ano passado, por exemplo, foi a vitória de Olivia Colman (“A Favorita”) em detrimento de Glenn Close, que recebia sua sétima indicação por “A Esposa”.
O épico sobre a Primeira Guerra Mundial “1917”, de Sam Mendes, vem traçando um caminho semelhante ao de “Green Book” no ano passado, apresentando-se como o título mais conciliador de votos, com a grande vantagem de ostentar um impressionante virtuosismo técnico que transpira academicismo. A proeza da narrativa sem cortes parece um argumento imbatível para angariar votos - e pouco importa se essa continuidade é uma impressão parcialmente falsa, possibilitada pela tecnologia digital. Soma-se à proeza a força do sempre influente Spielberg, que também é advogado do filme, e já temos um cenário bastante provável de vitória.
Mas surpresas ainda são possíveis, principalmente depois que a Academia aumentou o número de indicados a melhor longa de cinco para um número que pode chegar a dez, dependendo do volume e da distribuição dos votos. Será bem difícil, porém, que alguma surpresa abale a categoria “filme internacional”, em que a vitória parece mesmo garantida a “Parasita”, coroando uma carreira extremamente bem-sucedida que começou com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em maio do ano passado. Prêmio também inédito, a Palma para a Coreia do Sul contribuiu para chamar atenção para uma das indústrias mais interessantes e ricas do planeta, potente econômica e artisticamente, capaz de garantir à produção local cerca de 50% de participação no mercado interno ao ano, e onde está aquele que é considerado um dos maiores cineastas autorais da atualidade, Hong Sang-soo.
Como “filme internacional”, concorrem com “Parasita” o espanhol “Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, o francês “Os Miseráveis (todos esses três com a chancela do Festival de Cannes), além de dois “azarões”: o polonês “Corpus Christi” e o macedônio “Honeyland” - este também indicado na categoria “melhor longa-metragem documental”. Os indicados a “filme internacional” venceram uma batalha feroz que começou com a escolha interna de seus países. Neste ano, 94 cinematografias mandaram representantes, um novo recorde - e um número que só causa mais problemas para a Academia.
A comissão que escolheu o concorrente brasileiro optou por “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, o que desencadeou questionamentos sobre as chances maiores de “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Ambos tiveram ótima recepção em Cannes e foram premiados, mas “Bacurau” concorreu na competição principal, enquanto “A Vida Invisível” participou da mostra Um Certo Olhar.
Enquanto por aqui se discutia intensamente a categoria “filme internacional”, praticamente nenhuma atenção se deu aos concorrentes a melhor documentário em longa-metragem, em que a disputa é ainda mais feroz: eram 159 títulos “elegíveis”. E eis que, no dia do anúncio das indicações, lá estava o brasileiro “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, um filme que teve uma visibilidade significativa desde seu lançamento pela Netflix e chegou a aparecer na lista dos dez melhores filmes do ano de A.O. Scott, influente crítico do “New York Times”.
Narrado em primeira pessoa, misturando a trajetória da família da diretora e um olhar pessoal sobre o furacão político que se instaurou no Brasil a partir do processo de impeachment que tirou Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, “Democracia em Vertigem” ecoou junto a plateias internacionais e conseguiu estabelecer relações entre a política no Brasil e a situação de outros países, com a ascensão do conservadorismo e de grupos de extrema-direita.
Vencidas as barreiras mais difíceis, “Democracia em Vertigem” tem chances reais em uma categoria sempre marcada por certa imprevisibilidade. Mas a concorrência é forte. Apontado como um dos favoritos, “American Factory” (Netflix), acompanha a compra de antiga fábrica fechada da General Motors, em Ohio, por empresários chineses. O filme também ecoa grandes preocupações da sociedade hoje, com o crescimento econômico da China, os desafios do setor industrial e o abandono da classe trabalhadora - uma das causas que têm sido apontadas para o avanço do poder conservador.
A produção do filme é assinada pelo casal Obama, o que pode ser um ponto a favor ou contra. Estamos em ano eleitoral e a grande maioria dos votantes da Academia é simpatizante do Partido Democrata e, sobretudo, anti-Trump. Mas, geralmente, o ativismo político dos acadêmicos fica circunscrito aos bastidores ou aos discursos de agradecimento.
Outros dois fortíssimos concorrentes são “For Sama” e “Honeyland”. O primeiro reúne urgência e alta carga dramática, com forte potencial de catalisar votos. Trata-se de um retrato ao mesmo tempo gráfico e comovente dos horrores da guerra civil na Síria, acompanhando a trajetória de uma jornalista (Waad Al-Kateab), seu marido médico (Hamza Al-Kateab) e a pequena filha do casal, que permanecem em Aleppo enquanto a cidade é destroçada. O filme é todo montado a partir de um farto material captado por Waad (que assina a direção, ao lado de Edward Watts) ao longo de vários anos.
Já “Honeyland” conseguiu o raríssimo feito duplo de ser indicado também como “filme internacional”, categoria em geral destinada às ficções. As poucas chances dele por lá podem favorecer sua vitória como documentário. Com visual deslumbrante e pegada ambiental, o filme retrata a rotina de uma cultivadora de abelhas de uma região remota da Macedônia do Norte, a partir de certo momento perturbada pela chegada de uma família que resolve cultivar mel, como ela.
A categoria “melhor documentário”, aliás, é uma espécie de microilha de diversidade na tão criticada distribuição de indicações deste ano. Dos 5 concorrentes, 4 são produções não americanas e 3 foram dirigidos ou codirigidos por mulheres. Uma variedade que não aparece em outras categorias, sobretudo nas de atuação, o que tem gerado novos protestos.
Por muito pouco não se repetiu a situação que, quatro anos atrás, levou à formação do movimento #Oscarsowhite (Oscartãobranco), chamando atenção para a total ausência de atores e atrizes negros entre os indicados. Há apenas uma atriz negra, Cynthia Erivo, concorrendo como melhor atriz, pelo filme “Harriet”. Uma ausência que não mais pode ser justificada por “falta de opção” ou pela “realidade da indústria”. Ainda que a representatividade esteja longe de ser resolvida nas engrenagens de Hollywood, que continua essencialmente excludente, filmes com atores e atrizes negros não faltam.
Na premiação do sindicato dos atores (SAG Awards), por exemplo, além de Cynthia também estava indicada Lupita Nyong’o, por seu impressionante duplo trabalho em “Nós”, de Jordan Peele. A total ausência do longa do Oscar 2020, depois da forte presença do filme anterior de Peele, “Corra!”, em 2017, é algo que diz tanto sobre a Academia e seu desprezo pelos filmes de gênero (sobretudo suspense e horror) quanto sobre a trajetória de Peele, uma das maiores revelações do cinema americano recente. Depois da consagração de “Corra!”, Peele preferiu realizar um filme ainda mais radical em sua proposta não conciliadora e incômoda, sabendo que isso arriscaria sua presença no Oscar.
Na questão da paridade de gênero, a situação não foi diferente. Nenhuma mulher concorre ao prêmio de direção. A exclusão mais evidente foi a de Greta Gerwig, que teve seu “Adoráveis Mulheres” lembrado em seis categorias. Mais uma vez, possíveis parâmetros de mérito e qualidade, que nunca foram propriamente um ponto forte do Oscar, vão por água abaixo.
O fato é que, quando temos um grupo bastante homogêneo em termos de qualidade de trabalho disputando apenas cinco vagas, os diretores homens estão sempre à frente, não só como reflexo da indústria como ela é, mas principalmente como reflexo da composição da Academia e de seu processo de votação.
Desde a explosão dos movimentos #Oscarsowhite e #Metoo, a Academia tem feito um esforço para melhoras seus indicativos de representatividade. Segundo a revista “Variety”, ela tem hoje cerca de 9 mil integrantes com direito a voto, dos quais 16% não são brancos. O percentual representa um aumento significativo quando comparado aos 8% de 2015, mas ainda assim é baixo. Na convocação de novos integrantes do ano passado, 50% dos convidados eram mulheres, e 29%, não brancos. Mas o desequilíbrio ainda se faz ver nos resultados das indicações e vitórias, que sempre tendem a refletir o que há de mais conservador no status quo da indústria. Uma indústria que, para sobreviver, precisa da surpresa e da criação.
Quando recebeu o Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira por “Parasita”, no dia 6 de janeiro, o diretor Bong Joon-ho alfinetou a plateia. “Quando vocês superarem a barreira de uma polegada das legendas, serão apresentados a muitos outros filmes incríveis”, disse, com um leve sorriso no rosto.
A crítica não tinha como alvo direto a Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, anfitriã da noite, mas o imenso público da transmissão televisiva (18,3 milhões de espectadores nos EUA) e, sobretudo, os convidados presentes no salão, a elite de Hollywood, reunida no primeiro de muitos encontros que antecedem o Oscar, que será entregue no domingo (com transmissão no Brasil pela Globo, TNT, Globoplay e G1).
Da forma como foi colocada, a crítica do cineasta sul-coreano reforçou (ou pelo menos pareceu reforçar) um velho clichê evocado para justificar a ínfima presença de obras faladas em outras línguas que não o inglês nas telas de cinema dos EUA: seria culpa exclusiva do público e de sua “preguiça” de ler legendas. O mesmo argumento costuma ser usado para justificar a preferência da indústria pela compra dos direitos para produzir versões em inglês, em vez de investir na distribuição dos filmes estrangeiros - estratégia que já alvejou o próprio “Parasita”, que está sendo transformado em série pelo HBO.
Bong Joon-ho tem toda razão de chamar atenção para o fato, mas a questão não se limita à “barreira de uma polegada de altura das legendas”. Se o impedimento é a “preguiça” de ler legendas, o mesmo poderia valer para plateias europeias e latino-americanas, que veem a maioria dos filmes americanos na versão dublada. O que impediria, portanto, a exibição nos cinemas americanos de filmes dublados em inglês?
Surpresas ainda são possíveis , principalmente depois que a Academia aumentou o número de indicados a melhor longa-metragem
A culpa não é do público, mas de uma cultura que começou a tomar forma muito cedo, historicamente ligada à própria constituição interna do cinema como indústria nos Estados Unidos, a partir dos anos 1910. Um processo que, como demonstrou o pesquisador Richard Abel, incluiu a fabricação de um discurso de superioridade da produção local, combinado a uma progressiva marginalização dos produtos estrangeiros. Estes, até aquele momento, circulavam e tinham a preferência do público nos EUA, sobretudo os filmes da francesa Pathé, líder de mercado até a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Aos poucos - e com a contribuição circunstancial da guerra, que retirou momentaneamente a produção europeia de cena -, consolidou-se a ideia de que tudo que fosse estrangeiro, no ambiente cinematográfico dos EUA, só seria legitimado se antes fosse assimilado e deglutido pela máquina da indústria local.
Esse mesmo processo que praticamente tirou de cena a produção que vinha de fora foi também responsável pela diminuição radical da diversidade nos quadros de trabalhadores do cinema americano. Enquanto a atividade se expandia e se tornava a diversão favorita do público, mas ainda não havia se estruturado como indústria, as mulheres tiveram mais responsabilidades e ocupavam várias posições com poder de decisão - as atrizes Mabel Normand (1892-1930) e Mary Pickford (1892-1979), por exemplo, também dirigiam filmes, para citar apenas dois exemplos.
Na medida em que essa indústria se organizou como um oligopólio dominado por oito marcas (Paramount, Fox e Warner à frente), a importância das mulheres ficou circunscrita à frente das câmeras, graças ao “star system”. Ignoradas pela história que começou a ser escrita a partir dos anos 1940, as pioneiras do cinema, algumas ativas até meados dos anos 1920, tiveram suas trajetórias recentemente resgatadas em pesquisas acadêmicas, livros e documentários como “Be Natural - The Untold History of Alice Guy-Blachet” (2018) ou “E a Mulher Criou Hollywood” (2016).
Do ponto de vista racial, Hollywood se estruturou reproduzindo a segregação interna do país, tornando-se não apenas uma indústria majoritariamente branca, como também uma das mais fechadas à diversidade mesmo depois de aberturas promovidas pelos movimentos civis.
As provações e atribulações que assombram o Oscar, todas ligadas a uma incapacidade de se diversificar e renovar, são reflexos da própria indústria do cinema americano. Nas primeiras décadas da premiação, apenas produções em inglês participavam. Os filmes estrangeiros só começaram a ser convidados para a festa a partir de 1947 - não por acaso, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o caos econômico nos países em reconstrução se revelou perfeito para uma ampliação ainda maior da presença hollywoodiana, gerando um intenso desconforto político e a adoção de políticas de proteção às produções nacionais.
Entre 1947 e 1955 (com exceção de 1953), troféus especiais ou honorários foram atribuídos a oito filmes estrangeiros - não por acaso, produções francesas e italianas. Somente em 1956 a categoria “melhor filme em língua estrangeira” foi oficialmente estabelecida e, desde então, tem sido centro de disputas e polêmicas que provocam constantes mudanças em seus critérios de elegibilidade. Agora, mudou também o nome: a partir de 2020, passa a se chamar “melhor filme internacional”.
Assim como aconteceu com “Roma”, de Alfonso Cuarón, falado em espanhol, no ano passado, o sul-coreano “Parasita” superou a tal “barreira das legendas” e conseguiu indicações em várias outras categorias além de “longa-metragem internacional” - seis ao todo, incluindo longa-metragem, direção, roteiro, direção de arte e montagem. No domingo, quando os vencedores forem revelados, uma eventual vitória do filme na categoria “melhor longa-metragem” poderá fazer história: seria a primeira produção não falada em inglês a vencer o Oscar na categoria principal.
As chances existem, claro, mas são improváveis. Em 2019, “Roma” teve uma campanha ainda maior e conquistou mais indicações (dez ao todo), levando três prêmios: melhor direção, fotografia e longa em língua estrangeira. A categoria principal ficou com “Green Book: O Guia”, um quase azarão que viu seu favoritismo crescer na última hora e que teve uma sutil campanha de bastidores liderada por Steven Spielberg.
Neste ano, as premiações que antecedem o Oscar têm destacado “1917”, de Sam Mendes (Globo de Ouro de melhor filme dramático e o prêmio de melhor filme do Sindicato dos Produtores) e “Era Uma Vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino (Globo de Ouro de melhor comedia ou musical). Na premiação do sindicato dos atores (SAG Awards), “Parasita” se tornou a primeira produção não falada em inglês a ganhar o prêmio de “melhor elenco de longa-metragem” - feito que se explica mais porque o filme não ganharia qualquer das premiações “isoladas” de atuação, que foram para Joaquin Phoenix (“Coringa”) e Renée Zellweger (“Judy”), como melhor ator e atriz; e Brad Pitt (“Era Uma Vez em Hollywood”) e Laura Dern (“História de um Casamento”), melhores ator e atriz coadjuvantes.
Cada vez mais previsível em função da proliferação de premiações anteriores que tentam adivinhar/ditar as tendências para a Academia, a noite do Oscar quase sempre reserva ao menos uma surpresa. No ano passado, por exemplo, foi a vitória de Olivia Colman (“A Favorita”) em detrimento de Glenn Close, que recebia sua sétima indicação por “A Esposa”.
O épico sobre a Primeira Guerra Mundial “1917”, de Sam Mendes, vem traçando um caminho semelhante ao de “Green Book” no ano passado, apresentando-se como o título mais conciliador de votos, com a grande vantagem de ostentar um impressionante virtuosismo técnico que transpira academicismo. A proeza da narrativa sem cortes parece um argumento imbatível para angariar votos - e pouco importa se essa continuidade é uma impressão parcialmente falsa, possibilitada pela tecnologia digital. Soma-se à proeza a força do sempre influente Spielberg, que também é advogado do filme, e já temos um cenário bastante provável de vitória.
Mas surpresas ainda são possíveis, principalmente depois que a Academia aumentou o número de indicados a melhor longa de cinco para um número que pode chegar a dez, dependendo do volume e da distribuição dos votos. Será bem difícil, porém, que alguma surpresa abale a categoria “filme internacional”, em que a vitória parece mesmo garantida a “Parasita”, coroando uma carreira extremamente bem-sucedida que começou com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em maio do ano passado. Prêmio também inédito, a Palma para a Coreia do Sul contribuiu para chamar atenção para uma das indústrias mais interessantes e ricas do planeta, potente econômica e artisticamente, capaz de garantir à produção local cerca de 50% de participação no mercado interno ao ano, e onde está aquele que é considerado um dos maiores cineastas autorais da atualidade, Hong Sang-soo.
Como “filme internacional”, concorrem com “Parasita” o espanhol “Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, o francês “Os Miseráveis (todos esses três com a chancela do Festival de Cannes), além de dois “azarões”: o polonês “Corpus Christi” e o macedônio “Honeyland” - este também indicado na categoria “melhor longa-metragem documental”. Os indicados a “filme internacional” venceram uma batalha feroz que começou com a escolha interna de seus países. Neste ano, 94 cinematografias mandaram representantes, um novo recorde - e um número que só causa mais problemas para a Academia.
A comissão que escolheu o concorrente brasileiro optou por “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, o que desencadeou questionamentos sobre as chances maiores de “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Ambos tiveram ótima recepção em Cannes e foram premiados, mas “Bacurau” concorreu na competição principal, enquanto “A Vida Invisível” participou da mostra Um Certo Olhar.
Enquanto por aqui se discutia intensamente a categoria “filme internacional”, praticamente nenhuma atenção se deu aos concorrentes a melhor documentário em longa-metragem, em que a disputa é ainda mais feroz: eram 159 títulos “elegíveis”. E eis que, no dia do anúncio das indicações, lá estava o brasileiro “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, um filme que teve uma visibilidade significativa desde seu lançamento pela Netflix e chegou a aparecer na lista dos dez melhores filmes do ano de A.O. Scott, influente crítico do “New York Times”.
Narrado em primeira pessoa, misturando a trajetória da família da diretora e um olhar pessoal sobre o furacão político que se instaurou no Brasil a partir do processo de impeachment que tirou Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, “Democracia em Vertigem” ecoou junto a plateias internacionais e conseguiu estabelecer relações entre a política no Brasil e a situação de outros países, com a ascensão do conservadorismo e de grupos de extrema-direita.
Vencidas as barreiras mais difíceis, “Democracia em Vertigem” tem chances reais em uma categoria sempre marcada por certa imprevisibilidade. Mas a concorrência é forte. Apontado como um dos favoritos, “American Factory” (Netflix), acompanha a compra de antiga fábrica fechada da General Motors, em Ohio, por empresários chineses. O filme também ecoa grandes preocupações da sociedade hoje, com o crescimento econômico da China, os desafios do setor industrial e o abandono da classe trabalhadora - uma das causas que têm sido apontadas para o avanço do poder conservador.
A produção do filme é assinada pelo casal Obama, o que pode ser um ponto a favor ou contra. Estamos em ano eleitoral e a grande maioria dos votantes da Academia é simpatizante do Partido Democrata e, sobretudo, anti-Trump. Mas, geralmente, o ativismo político dos acadêmicos fica circunscrito aos bastidores ou aos discursos de agradecimento.
Outros dois fortíssimos concorrentes são “For Sama” e “Honeyland”. O primeiro reúne urgência e alta carga dramática, com forte potencial de catalisar votos. Trata-se de um retrato ao mesmo tempo gráfico e comovente dos horrores da guerra civil na Síria, acompanhando a trajetória de uma jornalista (Waad Al-Kateab), seu marido médico (Hamza Al-Kateab) e a pequena filha do casal, que permanecem em Aleppo enquanto a cidade é destroçada. O filme é todo montado a partir de um farto material captado por Waad (que assina a direção, ao lado de Edward Watts) ao longo de vários anos.
Já “Honeyland” conseguiu o raríssimo feito duplo de ser indicado também como “filme internacional”, categoria em geral destinada às ficções. As poucas chances dele por lá podem favorecer sua vitória como documentário. Com visual deslumbrante e pegada ambiental, o filme retrata a rotina de uma cultivadora de abelhas de uma região remota da Macedônia do Norte, a partir de certo momento perturbada pela chegada de uma família que resolve cultivar mel, como ela.
A categoria “melhor documentário”, aliás, é uma espécie de microilha de diversidade na tão criticada distribuição de indicações deste ano. Dos 5 concorrentes, 4 são produções não americanas e 3 foram dirigidos ou codirigidos por mulheres. Uma variedade que não aparece em outras categorias, sobretudo nas de atuação, o que tem gerado novos protestos.
Por muito pouco não se repetiu a situação que, quatro anos atrás, levou à formação do movimento #Oscarsowhite (Oscartãobranco), chamando atenção para a total ausência de atores e atrizes negros entre os indicados. Há apenas uma atriz negra, Cynthia Erivo, concorrendo como melhor atriz, pelo filme “Harriet”. Uma ausência que não mais pode ser justificada por “falta de opção” ou pela “realidade da indústria”. Ainda que a representatividade esteja longe de ser resolvida nas engrenagens de Hollywood, que continua essencialmente excludente, filmes com atores e atrizes negros não faltam.
Na premiação do sindicato dos atores (SAG Awards), por exemplo, além de Cynthia também estava indicada Lupita Nyong’o, por seu impressionante duplo trabalho em “Nós”, de Jordan Peele. A total ausência do longa do Oscar 2020, depois da forte presença do filme anterior de Peele, “Corra!”, em 2017, é algo que diz tanto sobre a Academia e seu desprezo pelos filmes de gênero (sobretudo suspense e horror) quanto sobre a trajetória de Peele, uma das maiores revelações do cinema americano recente. Depois da consagração de “Corra!”, Peele preferiu realizar um filme ainda mais radical em sua proposta não conciliadora e incômoda, sabendo que isso arriscaria sua presença no Oscar.
Na questão da paridade de gênero, a situação não foi diferente. Nenhuma mulher concorre ao prêmio de direção. A exclusão mais evidente foi a de Greta Gerwig, que teve seu “Adoráveis Mulheres” lembrado em seis categorias. Mais uma vez, possíveis parâmetros de mérito e qualidade, que nunca foram propriamente um ponto forte do Oscar, vão por água abaixo.
O fato é que, quando temos um grupo bastante homogêneo em termos de qualidade de trabalho disputando apenas cinco vagas, os diretores homens estão sempre à frente, não só como reflexo da indústria como ela é, mas principalmente como reflexo da composição da Academia e de seu processo de votação.
Desde a explosão dos movimentos #Oscarsowhite e #Metoo, a Academia tem feito um esforço para melhoras seus indicativos de representatividade. Segundo a revista “Variety”, ela tem hoje cerca de 9 mil integrantes com direito a voto, dos quais 16% não são brancos. O percentual representa um aumento significativo quando comparado aos 8% de 2015, mas ainda assim é baixo. Na convocação de novos integrantes do ano passado, 50% dos convidados eram mulheres, e 29%, não brancos. Mas o desequilíbrio ainda se faz ver nos resultados das indicações e vitórias, que sempre tendem a refletir o que há de mais conservador no status quo da indústria. Uma indústria que, para sobreviver, precisa da surpresa e da criação.
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