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Valor: Tim Robbins retorna ao mundo de Stephen King em Castle Rock

Excelente resenha de Elaine Guerini, de Veneza, para o Valor. Na íntegra, abaixo.

Tim Robbins tem uma dívida com Stephen King. “Mesmo que seja imaginária”, diz o ator californiano, de 61 anos. Aonde quer que vá, Robbins costuma ser reconhecido pelo papel de Andy Dufresne, de “Um Sonho de Liberdade” (1994), drama com sete indicações ao Oscar que foi adaptado da obra do escritor. Interpretar o banqueiro condenado à prisão perpétua por crime que não cometeu ainda forçou o ator a se familiarizar com o universo carcerário, no qual bebe artisticamente até hoje.
Foi na prisão que o ator reconheceu o potencial dramático para se projetar atrás das câmeras, ao assinar “Os Últimos Passos de um Homem” (1995), com o qual garantiu uma indicação ao Oscar de melhor diretor. Visitar presídios faz parte da sua rotina desde 2006, quando ele lançou o Prision Project, presente atualmente em 13 cadeias da Califórnia. Trata-se de uma iniciativa do grupo de teatro criado em 1981 em Los Angeles, o Actor’s Gang, do qual Robbins é fundador e diretor artístico.
“O cárcere é uma metáfora para a vida. É um bom lugar para aprendermos sobre a sociedade e sobre nós mesmos”, conta o ator, envolvido em mais um projeto relacionado à prisão fictícia de Shawshank. Mais lembrada como o cenário principal de “Um Sonho de Liberdade”, filme baseado no conto “Rita Hayworth and Shawshank Redemption”, a penitenciária aparece em várias outras obras de King, como “Dolores Claiborne”, “A Coisa” e “Sob a Redoma”.
Desta vez, a prisão supostamente localizada no Estado do Maine é uma das locações da série de terror psicológico “Castle Rock”, inspirada em personagens, enredos e cenários criados por King, incluindo a cidade fictícia que dá nome ao programa. A série é uma das atrações do catálogo da Starzplay, plataforma de streaming que chegou ao Brasil em outubro.
A segunda temporada da série, na qual Robbins volta a pisar no mundo de King após 25 anos, estará disponível a partir de 13 de fevereiro na plataforma. O ator ingressa na trama como Reginald “Pop” Merrill, um agiota que está morrendo de câncer. O sujeito que fez fortuna emprestando dinheiro aos mais desafortunados de Castle Rock terá a chance de se redimir, assim que forças sobrenaturais começarem a se manifestar, algo ligado ao passado da cidade.
“O meu personagem conhece melhor do que ninguém o potencial de Castle Rock para enveredar pela escuridão. Quando tudo fugir ao controle, ele terá de lidar com os erros que cometeu”, diz Robbins. O que quer que Merrill tenha feito promete levá-lo de volta, nem que seja para uma simples visita, à prisão de Shawshank, que fica nas redondezas.
Desde o primeiro contato com a penitenciária imaginada por King (para a qual o prédio do Reformatório Estadual de Ohio serviu de locação em “Um Sonho de Liberdade”), Robbins procurou evitar julgamentos. “Eu mesmo poderia ter parado na cadeia”, diz. O ator cresceu na área mais perigosa de Nova York, Lower Manhattan, nos anos 1960 e 1970. “Quando era criança, ouvia dizer que, para me proteger no bairro, eu precisaria aprender a lutar ou a correr muito rápido.”
Na adolescência, Robbins viu alguns de seus amigos se encrencarem com a polícia e indo parar na prisão. “Isso me fez perceber que eu não estava tão distante assim deles, correndo o risco de ter o mesmo destino. Qualquer um é capaz de fazer coisas estúpidas quando é mal orientado ou quando está sob o efeito de álcool ou drogas.”
Saber que uma parte dos detentos está presa por um único ato infeliz cometido foi o que motivou o ator a desenvolver o programa de reabilitação prisional do Actor’s Gang. Essas oficinas teatrais em que homens e mulheres encarcerados interpretam personagens da Commedia dell’Arte, como Arlequim, Capitão ou Colombina, estão registradas no documentário “45 Seconds of Laughter”, dirigido por Robbins.
Selecionado para o último Festival de Cinema de Veneza, em caráter hors-concours, o filme ainda sem data de estreia no Brasil foi rodado na prisão de Calipatria, na Califórnia. Os presos, que, na maioria das vezes, são segregados por etnia ou gangues nas cadeias, são vistos aqui trabalhando juntos, usando o teatro como ferramenta de expressão.
“Como a raiva parece ser a única emoção culturalmente aceitável na cadeia, eles acabam suprimindo as outras. Mas aqui eles acessam os sentimentos reprimidos, o que os ajuda na quebra de barreiras entre gangues, além de prepará-los para a vida além das grades”, afirma Robbins. O diretor aparece no documentário conduzindo uma das oficinas, para as quais ele sempre prefere selecionar os presos com reputação de “malcomportados”.
O fato de Robbins ser mundialmente conhecido como o presidiário de “Um Sonho de Liberdade” ajuda a quebrar o gelo com os detentos? “Em um primeiro momento, sim. Mas, depois que eles perguntam se eu sou mesmo o cara do filme, corto logo o assunto. Estou lá apenas como um dos professores do programa. Muitos presos não sabem quem eu sou - e não precisam saber.”
Robbins, por sua vez, não pergunta sobre motivos da detenção. “Muitas ações criminosas de empresas poderosas não recebem a punição merecida”, diz o ator. Ele cita como exemplo a epidemia de opioides que assola os EUA por influência da indústria farmacêutica. “Será que um dia veremos todos os executivos dessas empresas na cadeia?”
A mesma indignação levou Robbins a aceitar um papel de coadjuvante em “O Preço da Verdade - Dark Waters”, filme de Todd Haynes com lançamento no Brasil em 20 de fevereiro. O drama relembra o caso da empresa química DuPont, que em 2017 aceitou pagar US$ 671 milhões de indenização às famílias prejudicadas por vazamento de um produto químico tóxico, em West Virginia, nos EUA. Robbins interpreta Tom Terp, o sócio do escritório que apoia o advogado ambientalista Robert Bilott (Mark Ruffalo) na luta de 16 anos contra a DuPont. Embora tenha aceitado pagar a indenização, referente a mais de 3,55 mil processos, a empresa negou qualquer irregularidade.
Casos assim reforçam, na visão de Robbins, que “tudo depende de quem é o acusado”. “Já conheci quem foi condenado a passar o resto da vida na cadeia por porte de maconha. Ao mesmo tempo, poderosos de Wall Street flagrados com meio quilo de cocaína muitas vezes só prestam serviços comunitários”, afirma o ator.
Com mais de 70 créditos na bagagem e vencedor de um Oscar (de melhor coadjuvante por “Sobre Meninos e Lobos”, de 2003), Robbins já não encara a carreira como antes. Os filmes mais comerciais que fez, como “Top Gun: Ases Indomáveis” (1986), “A Teoria do Amor” (1994) e “Austin Powers: O Agente ‘Bond’ Cama” (1999), já não o interessariam. “Hoje me sinto mais recompensado trabalhando com presos do que atuando em produções nas quais não acredito. O Actor’s Gang é a chave para manter a minha sanidade em Los Angeles, a cidade que costuma levar todos à loucura”, brinca.



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