Pular para o conteúdo principal

Henrique Balbi: Parasita, Bong Joon-Ho e a lição artística de Martin Scorsese

Muito boa a resenha do filme que ganhou o Oscar e sobre Scorsese, que desta vez não levou, mas é uma lenda do cinema mundial. Publicado na sexta, 12/2, na revista Época. Íntegra a seguir.

Das quatro vezes que Bong Joon-Ho subiu ao palco do Oscar para receber prêmios por Parasita, talvez a mais interessante tenha sido a terceira, inesperada por ele, na categoria de Melhor Direção. Nela, o cineasta sul-coreano incluiu os outros indicados nos agradecimentos, com destaque óbvio a Quentin Tarantino, reconhecido como um apoiador, e principalmente a Martin Scorsese, seu ídolo, estudado nos tempos de aspirante a diretor.
Bong Joon-Ho disse que aprendeu com Scorsese uma lição que se “gravou fundo”: “o mais pessoal é o mais criativo”. Solta, descontextualizada, a frase pode soar a mera autoajuda, como as legendas motivacionais que acompanham fotos no Instagram de celebridades virtuais em paisagens deslumbrantes. No entanto, lida mais a fundo, a lição de Scorsese resume uma ideia de arte com muita potência criativa, de que Parasita é um exemplo.
Convém entender, antes de tudo, qual seria a relação dela com a obra do próprio Scorsese. Embora seja conhecido por seus filmes de gângsteres, com uma ameaça constante da irrupção de violência, o diretor norte-americano não dá a impressão de quem viveu na pele a brutalidade de seus roteiros, certamente não na extensão que ela aparece na tela. Faz sentido falar em algo “pessoal”, nesse caso?
A resposta está numa ampliação da ideia de “pessoal”. A dimensão pessoal, íntima, que parece mover o artista Scorsese e alimenta seus filmes não é necessariamente a experiência direta, vivida, dos gângsteres e dos seus protagonistas violentos e atormentados, como em Taxi Driver e Touro Indomável.
Na verdade, são os dilemas morais, as contradições internas e a busca por redenção num mundo caído, apodrecido, que dialogam com o “pessoal” em Scorsese. O cineasta e suas personagens passam por experiências radicalmente distintas, mas encontram uma ressonância interna, um drama pessoal, comum.
O exemplo mais claro disso talvez esteja no seu filme anterior a O Irlandês. Em Silêncio (2016), adaptação do livro de Shusako Endo (Tusquets), dois jesuítas vão ao Japão no século XVII em busca de um padre que teria renunciado à fé católica. Perseguidos e torturados pelas autoridades locais, expostos às (e indiretamente responsabilizados pelas) misérias que os fiéis sofrem, eles se interrogam constantemente a respeito do significado das palavras de Cristo, da presença de Deus e do sentido que elas têm num mundo corrompido pelo Mal.
Embora tenha pensado em ser padre, o católico Scorsese jamais poderia ter vivido algo similar ao que seus protagonistas enfrentaram, por uma impossibilidade concreta; afinal, são outros tempos, com outras forças históricas em jogo, em contextos inteiramente distintos.
O dilema humano que eles se colocam, porém, é perfeitamente compreensível para além do seu contexto, e não apenas por correligionários da Igreja Católica – o problema do Mal, a responsabilidade pelo sofrimento de outrem e a fidelidade a nossos princípios em situações adversas, entre tantas questões, dizem tanto respeito a nós, hoje em dia, quanto a missionários de quatrocentos anos atrás.
Assim, quando Bong Joon-Ho alude à frase “o mais pessoal é o mais criativo”, ele evidencia que não se trata de reducionismo narcisista, como se todos devêssemos nos voltar aos respectivos umbigos. Pelo contrário: “mais pessoal” coincide nesse caso com uma experiência ampla, coletiva, social; diz respeito aos dramas e conflitos a que qualquer um está sujeito e o torna um sujeito. Paradoxalmente, ao buscar o “mais pessoal”, o artista habilidoso consegue articular e expressar uma tensão geral, que o ultrapassa em todos os níveis.
Quem resumiu de modo exemplar um aspecto dessa contradição fundamental da cultura foi o teórico inglês Mark Fisher, em Ghosts of My Life (algo como “Fantasmas da Minha Vida”). Diz ele, em tradução livre: “a maneira mais produtiva de ler ‘o pessoal é político’ é interpretá-lo como ‘o pessoal é impessoal’. (...) A cultura, e a análise da cultura, é valiosa na medida em que permite uma fuga de nós mesmos.” Destaquemos isso: o pessoal é impessoal.
Ou seja, aquilo que mais me toca, num nível infra-individual, também toca a outros; ao fugir de si, o artista encontra esse denominador comum, que permite aos leitores e espectadores saírem de si e compartilharem a experiência estética. A obra cria, assim, um novo espaço comum, relativamente autônomo a diferenças culturais, individuais e nacionais mais imediatas.
A saraivada de prêmios a Parasita certamente tem a ver com a criação desse espaço de ressonância humana em que qualquer um pode se reconhecer, sul-coreano ou norte-americano, rico ou pobre. Que esse espaço possa ser habitado por todos, aliás, só reforça o absurdo das cisões de classe denunciadas pelo filme e replicadas na vida real, um absurdo amplificado pela ironia de o Oscar – prêmio da elite cultural do planeta a si mesma – o consagrar com a maior das honrarias. Bong Joon-Ho aprendeu com louvor a lição de Scorsese. Resta ver se sua própria lição será sequer assimilada para além das telas.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...