O fato da semana sem dúvida foi o inacreditável ataque ao senador Cid Gomes, baleado enquanto enfrentava policiais amotinados na quarta-feira, 19/2. Renato Sérgio De Lima e Arthur Trindade Maranhão Costa publicaram na Piauí uma análise do que ocorreu: o atentado sofrido na última quarta-feira (19) pelo senador Cid Gomes (PDT), em Sobral, no Ceará, trouxe à tona mais uma vez o debate sobre a incapacidade de os governadores controlarem suas polícias e sobre a influência do projeto populista de poder do presidente Jair Bolsonaro junto aos policiais brasileiros. Cid Gomes sofreu duas perfurações por arma de fogo quando, em seu estilo pouco afeito a contemporizações, pilotava uma retroescavadeira na tentativa de furar o bloqueio de supostos policiais encapuzados diante de um batalhão da PM em Sobral. Horas antes, os encapuzados já haviam circulado pela cidade a bordo de carros da polícia exigindo que o comércio fechasse suas portas. A segurança da população ficou refém da política e virou palco de uma disputa envolvendo policiais militares. Mas o Ceará não está sozinho.
Em menos de duas semanas, Ceará e Bahia, coincidentemente os dois maiores estados governados pelo PT, perderam totalmente, por diferentes razões, o controle de suas PMs. No caso cearense, o motivo público da atual crise é a recusa, inicialmente por parte de uma das associações representativas dos policiais, em aceitar a proposta de reajuste salarial e o plano de carreira negociados pelo governo estadual. Isso foi criando uma bola de neve de conflitos e resultou em um movimento paradista bastante radicalizado.
Diferentemente de outras categorias profissionais, os policiais não têm direito a greve, e suas reivindicações não são definidas no âmbito de um único sindicato. Sem regulação adequada, demandas legítimas são capturadas por lógicas e interesses políticos particulares, e os problemas que geraram tais demandas continuam intactos. Ganha quem gritar mais alto.
A questão não é a luta dos policiais por direitos, mas o uso que dela tem sido feito para catapultar projetos de poder. Estudo do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Tavares dos Santos com base em dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que, de 1997 a 2017, o Brasil teve 715 greves policiais. Dessas, 52 foram de policiais militares.
Em geral essas paralisações trazem pânico à população e resultam em crises de governo. Ao final das greves, os policiais eventualmente punidos pelo Judiciário ou pelo Executivo costumam ser anistiados pelas Assembleias Legislativas e/ou pelo Congresso, compostos cada vez mais por representantes dos próprios policiais. Como resultado, governos ficam cada vez mais reféns das polícias. O medo de uma nova greve contamina todas as decisões políticas na área de segurança pública. Não raro, o medo de greve vira moeda de chantagem política.
Essa parece ter sido a razão para a decisão de Romeu Zema (Novo-MG) de dar aumento de 41,7% para policiais, mesmo com as contas de Minas Gerais quebradas, ou de Eduardo Leite (PSDB-RS), que aprovou um amplo plano de cargos e salários para o funcionalismo público gaúcho com ajustes importantes na estrutura da Brigada Militar daquele estado. Santa Catarina, Pernambuco, Paraíba e Espírito Santo, bem como Mato Grosso do Sul, Bahia e Alagoas, também estão entre os estados com maior pressão de policiais por reajustes e melhores condições de trabalho.
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública foi ágil em creditar para si a responsabilidade pela queda dos indicadores de violência no país, puxada exatamente por muitos desses estados que agora estão às voltas com ameaças paradistas – a começar pelo Ceará, que sozinho respondeu por 20% da queda nacional dos homicídios em 2019. Agora, o ministério está em silêncio, deixando por conta dos governadores a solução dos problemas. O ministro Sergio Moro, sempre bastante ativo nas redes sociais, não havia tocado no assunto até a manhã desta quinta (20).
Também ficou em silêncio no obscuro episódio da morte do ex-PM Adriano da Nóbrega, suspeito de liderar uma das mais temidas milícias do Rio de Janeiro, por forças especiais da Polícia Militar da Bahia. Ainda não estão esclarecidas a cadeia de comando da operação nem as razões técnicas para a morte do miliciano. O depoimento de Nóbrega poderia esclarecer dúvidas sobre o modus operandi da milícia fluminense e separar o que é teoria da conspiração do que é fato na relação da família presidencial com tais grupos.
O governo petista da Bahia, que na segurança pública não difere substantivamente do modelo defendido por Jair Bolsonaro, foi capturado por uma armadilha retórica que o colocou em posição defensiva em relação à operação e o enfraquece junto à opinião pública. De problema do presidente, o episódio foi transformado em problema do governo estadual – o que agora projeta uma zona de sombra perfeita para que o exército bolsonarista das redes sociais explore as contradições do caso.
A segurança pública foi recolocada em seu eixo histórico: um permanente foco de tensões e crises, sem que a queda da violência de 2019 tenha sido aproveitada para consolidar reformas estruturais necessárias a fim de tornar o sistema mais eficiente e transparente. É necessário reforçar os canais de diálogo, transparência e fiscalização das instituições policiais no Brasil, de modo a garantir a busca por efetividade nos marcos previstos na Constituição Federal.
Com a eleição em 2018 de quatro senadores (ES, RN, SE e SP) e 32 deputados federais oriundos das forças policiais do país (6% da Câmara dos Deputados), os policiais veem o fortalecimento de suas demandas corporativas. Sentem-se cada vez mais autônomos para tutelar a política e definir rumos da área, mesmo que, em qualquer democracia do mundo, nenhuma instituição de força tenha poder absoluto sobre seus mandatos e missões. As polícias são as fiadoras da ordem democrática, mas alguns de seus representantes não se acanham em se movimentar como os novos donos do poder no país.
Ciente disso, o projeto populista de poder de Bolsonaro e seu grupo, que encontra forte eco nas fileiras policiais, busca usar as demandas dos policiais para fortalecer suas posições e enfraquecer os governadores, em especial os de oposição.
Nesse amálgama de interesses, não podemos esquecer que, no Chile, na Bolívia e em vários outros países da América Latina, as polícias, mais do que as Forças Armadas, tiveram recentemente um papel central na desestabilização da ordem democrática vigente e no controle de manifestações sociais. Da mesma forma, Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e o general Augusto Heleno deram declarações ameaçando reagir com medidas de exceção, à semelhança de um novo AI-5 ou uma “GLO [Garantia da Lei e da Ordem] nacional”, a qualquer sinal de “desordem” social.
Riscos de ruptura institucional não são mais meramente imaginários e exigem atenção dos dirigentes policiais. Quando a polícia e seus membros se deixam levar pela política eleitoral, a consequência é a exacerbação da ideologia política que interessa no momento, em detrimento de uma instituição policial verdadeiramente de Estado.
Polícias fortes e com profissionais valorizados são fundamentais em uma democracia, mas jamais devem ser autorizadas a impor a qualquer custo suas concepções e interpretações de ordem pública. O descontrole não é saudável. E é muito perigoso.
Em menos de duas semanas, Ceará e Bahia, coincidentemente os dois maiores estados governados pelo PT, perderam totalmente, por diferentes razões, o controle de suas PMs. No caso cearense, o motivo público da atual crise é a recusa, inicialmente por parte de uma das associações representativas dos policiais, em aceitar a proposta de reajuste salarial e o plano de carreira negociados pelo governo estadual. Isso foi criando uma bola de neve de conflitos e resultou em um movimento paradista bastante radicalizado.
Diferentemente de outras categorias profissionais, os policiais não têm direito a greve, e suas reivindicações não são definidas no âmbito de um único sindicato. Sem regulação adequada, demandas legítimas são capturadas por lógicas e interesses políticos particulares, e os problemas que geraram tais demandas continuam intactos. Ganha quem gritar mais alto.
A questão não é a luta dos policiais por direitos, mas o uso que dela tem sido feito para catapultar projetos de poder. Estudo do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Tavares dos Santos com base em dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que, de 1997 a 2017, o Brasil teve 715 greves policiais. Dessas, 52 foram de policiais militares.
Em geral essas paralisações trazem pânico à população e resultam em crises de governo. Ao final das greves, os policiais eventualmente punidos pelo Judiciário ou pelo Executivo costumam ser anistiados pelas Assembleias Legislativas e/ou pelo Congresso, compostos cada vez mais por representantes dos próprios policiais. Como resultado, governos ficam cada vez mais reféns das polícias. O medo de uma nova greve contamina todas as decisões políticas na área de segurança pública. Não raro, o medo de greve vira moeda de chantagem política.
Essa parece ter sido a razão para a decisão de Romeu Zema (Novo-MG) de dar aumento de 41,7% para policiais, mesmo com as contas de Minas Gerais quebradas, ou de Eduardo Leite (PSDB-RS), que aprovou um amplo plano de cargos e salários para o funcionalismo público gaúcho com ajustes importantes na estrutura da Brigada Militar daquele estado. Santa Catarina, Pernambuco, Paraíba e Espírito Santo, bem como Mato Grosso do Sul, Bahia e Alagoas, também estão entre os estados com maior pressão de policiais por reajustes e melhores condições de trabalho.
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública foi ágil em creditar para si a responsabilidade pela queda dos indicadores de violência no país, puxada exatamente por muitos desses estados que agora estão às voltas com ameaças paradistas – a começar pelo Ceará, que sozinho respondeu por 20% da queda nacional dos homicídios em 2019. Agora, o ministério está em silêncio, deixando por conta dos governadores a solução dos problemas. O ministro Sergio Moro, sempre bastante ativo nas redes sociais, não havia tocado no assunto até a manhã desta quinta (20).
Também ficou em silêncio no obscuro episódio da morte do ex-PM Adriano da Nóbrega, suspeito de liderar uma das mais temidas milícias do Rio de Janeiro, por forças especiais da Polícia Militar da Bahia. Ainda não estão esclarecidas a cadeia de comando da operação nem as razões técnicas para a morte do miliciano. O depoimento de Nóbrega poderia esclarecer dúvidas sobre o modus operandi da milícia fluminense e separar o que é teoria da conspiração do que é fato na relação da família presidencial com tais grupos.
O governo petista da Bahia, que na segurança pública não difere substantivamente do modelo defendido por Jair Bolsonaro, foi capturado por uma armadilha retórica que o colocou em posição defensiva em relação à operação e o enfraquece junto à opinião pública. De problema do presidente, o episódio foi transformado em problema do governo estadual – o que agora projeta uma zona de sombra perfeita para que o exército bolsonarista das redes sociais explore as contradições do caso.
A segurança pública foi recolocada em seu eixo histórico: um permanente foco de tensões e crises, sem que a queda da violência de 2019 tenha sido aproveitada para consolidar reformas estruturais necessárias a fim de tornar o sistema mais eficiente e transparente. É necessário reforçar os canais de diálogo, transparência e fiscalização das instituições policiais no Brasil, de modo a garantir a busca por efetividade nos marcos previstos na Constituição Federal.
Com a eleição em 2018 de quatro senadores (ES, RN, SE e SP) e 32 deputados federais oriundos das forças policiais do país (6% da Câmara dos Deputados), os policiais veem o fortalecimento de suas demandas corporativas. Sentem-se cada vez mais autônomos para tutelar a política e definir rumos da área, mesmo que, em qualquer democracia do mundo, nenhuma instituição de força tenha poder absoluto sobre seus mandatos e missões. As polícias são as fiadoras da ordem democrática, mas alguns de seus representantes não se acanham em se movimentar como os novos donos do poder no país.
Ciente disso, o projeto populista de poder de Bolsonaro e seu grupo, que encontra forte eco nas fileiras policiais, busca usar as demandas dos policiais para fortalecer suas posições e enfraquecer os governadores, em especial os de oposição.
Nesse amálgama de interesses, não podemos esquecer que, no Chile, na Bolívia e em vários outros países da América Latina, as polícias, mais do que as Forças Armadas, tiveram recentemente um papel central na desestabilização da ordem democrática vigente e no controle de manifestações sociais. Da mesma forma, Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e o general Augusto Heleno deram declarações ameaçando reagir com medidas de exceção, à semelhança de um novo AI-5 ou uma “GLO [Garantia da Lei e da Ordem] nacional”, a qualquer sinal de “desordem” social.
Riscos de ruptura institucional não são mais meramente imaginários e exigem atenção dos dirigentes policiais. Quando a polícia e seus membros se deixam levar pela política eleitoral, a consequência é a exacerbação da ideologia política que interessa no momento, em detrimento de uma instituição policial verdadeiramente de Estado.
Polícias fortes e com profissionais valorizados são fundamentais em uma democracia, mas jamais devem ser autorizadas a impor a qualquer custo suas concepções e interpretações de ordem pública. O descontrole não é saudável. E é muito perigoso.
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