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Reinaldo Azevedo: empregadas, uni-vos na borrachada da luta sem classe

Muito bom o texto do colunista da Folha, publicado no jornal nesta sexta-feira, dia 12/2, sobre o absurdo dito pelo ministro Paulo Guedes, que repercutiu muito mal durante a semana e viralizou em memes na internet. Guedes não voltou atrás nem pediu desculpas, apenas disse ter sido "mal interpretado" ao comentar que no tempo do dólar a R$ 1,80 era uma festa, "até doméstica ia a Disney". Texto de Reinaldo na íntegra, abaixo.

Aparecida, minha mãe, não foi à Disney
Minha mãe era empregada doméstica na década de 1970. Faxineira. Numa das casas, a patroa queria que as pedras do quintal, porosas, ficassem brancas. Era preciso esfregar muito. Com sabão em pó e água sanitária, que chamávamos “água de lavadeira”. Os pobres são convidados a encontrar o seu lugar já no vocabulário. “A linguagem é um vírus”. A educação pelas pedras.
A essa casa, tinha uns 10 anos, eu ia junto. A mãe tinha dores nas costas. Eu ajudava a esfregar o quintal. Ficava branco como leite. Nem pecado tributável passaria por ali.
Ela, então, molhou as pedras com a mangueira e as salpicou de Omo, aos poucos, em pequenas veredas. Pobre economiza sabão em pó alheio porque o desperdício ofende algo mais do que o bolso do patrão: agride o senso de sobrevivência. Peguei, moleque meio enfezado, a vassoura de piaçava para esfregar com força. Tem de ficar branca. Como leite. Sem pecado nem perdão.
Talvez fosse desnecessário acrescentar pitadas da estética “Parasita”. Ou de “Feios, Sujos e Malvados”, de que o filme coreano é caudatário, para informar: já tínhamos comido de pé, na cozinha, macarrão lavado com água de salsicha. Não era uma comida, mas um clichê. Como em “Parasita”. Como em “Feios, Sujos e Malvados”. Ettore Scola veio bem antes, admita-se, e era muito mais transgressor. Mas nós não queríamos roubar nada nem buscávamos intimidade.
A patroa viu a mãe polvilhar o sabão em pó. Gritou: “Tá pensando que eu sou a dona da fábrica de Omo? Você sabe quanto custa?” Ódio de pobre. Não havia desperdício. É que ela nos via como parasitas da sua riqueza. No fim das contas, o que a ofendia é que aquele serviço custasse uma diária.
Há preconceito contra negros no Brasil. Há preconceito contra mulheres no Brasil. Há preconceito contra gays no Brasil. Há preconceitos no Brasil. O maior de todos, o mal talvez incurável, a canalhice insofismável, o ódio primordial, o medo primitivo é um só: de verdade, “eles” — permitam-me as aspas, que eu mesmo costumo combater — odeiam os pobres.
A mãe se quedou paralisada, pálida como as pedras — literatice minha, não dela — e tentou balbuciar desculpas: “Mas eu não joguei muito, é que espalhei...” E se seguiram todos os eteceteras do reino da necessidade. A dona não quis saber. “Isso é sabão, custa caro. Vocês nem devem saber o que é. Vocês não conhecem nem sabonete. Vocês nem devem tomar banho”.
Pobre cheira. Como em “Parasitas”, mesmo que não. Pensei então, eu juro hoje pelas filhas!, que não fazia sentido a expressão “vocês não conhecem nem sabonete” porque este me parecia superior ao sabão numa escala que hoje chamaria estilística: o grosseiro “ão” contra o finório “ete”. Mas escapei logo das digressões de menino tendente a se abobar com livros.
A mangueira soltava um fio contínuo e mirrado de água para garantir a esfregação. Parei. Encostei a vassoura à parede da casa. Fechei a torneira. Puxei aquela longa borracha azul — era azul —, dobrei em quatro e parti para cima da desbocada: “Fala de novo que a gente não toma banho, fdp!”
Foi a sua vez de mimetizar as pedras. Esboçou um pedido de socorro. A casa ficava ao lado da sua empresa, que costurava artefatos de plástico. Falei alto. Falei para ser ouvido. Algumas costureiras se levantaram para ver o que se passava. Ninguém interferiu. Tive a minha primeira lição de luta de classes sobre pedras imaculadas. Havia uma voz silenciosa: “Cobre ela de borrachada!”
Minha mãe correu e arrancou a mangueira dobrada das minhas mãos. “Para com isso! Vamos embora!”. Tirou o avental e procurou o calçado — estávamos descalços. A tal ainda gritou às nossas costas: “Eu preciso te pagar”. Minha mãe pediu que ela incorporasse o dinheiro à parte terminal do aparelho digestivo.
Aparecida, Dona Cida, nunca foi à Disney. Nem sei se o câmbio era favorável à época. Desculpo-me pelo incômodo de contar uma história assim, de chimpanzés contaminados pelo marxismo cultural, vertido, nesse caso, em borrachada didática.
Uma lição de moral. Em sua resistência fria. Em sua carnadura concreta.


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