Pular para o conteúdo principal

Demétrio Magnolli: democracia americana sairá menor do processo de impeachment de Trump

Excelente análise do colunista da Folha de S. Paulo, neste sábado (1/2) no jornal. Escreve Magnolli: os senadores americanos juraram, de acordo com a Constituição, fazer "justiça imparcial" no julgamento de Donald Trump. Mas Mitch McConnell, líder republicano no Senado, proclamou que conduziria sua bancada em "total coordenação" com o próprio Trump. Antes da primeira sessão, McConnell confessou perjúrio: "Não sou um juiz imparcial. Este é um processo político. Impeachment é uma decisão política". A democracia americana sairá menor do processo.
O instituto do impeachment deita raízes na Inglaterra do século 14. Michael de La Poe, ministro de Ricardo 2º, sofreu impeachment, em 1386, por nomear funcionários incompetentes. O bispo John Thornborough foi impedido, em 1604, por escrever um livro controverso sobre a união com a Escócia. Não faltaram casos de impeachment por ofensas como a demissão de bons magistrados ou oferecer conselhos ruinosos ao rei.

Continua, na íntegra abaixo:
Nos EUA, a tradição britânica foi recolhida, mas conheceu restrições. O impeachment só atingiria autoridades acusadas de "crimes e delitos sérios". Contudo nunca foi circunscrito a atos criminosos, na acepção judicial do termo. O critério americano destina-se a evitar que uma alta autoridade tire proveito do cargo para, violando leis, expandir seu poder pessoal ou perpetuar o poder de seu grupo político.
O impeachment é uma ferramenta de última instância de defesa da democracia. Nos regimes presidencialistas, serve como vacina parlamentarista aos excessos do chefe de Estado. McConnell tem razão quando o qualifica como "uma decisão política": o Congresso tem a prerrogativa de avaliar quais atos ajustam-se à definição constitucional. Por aqui, sob esse aspecto, as coisas funcionam do mesmo modo: o impeachment de Dilma, assim como o de Collor, seguiu a Constituição, diga o que disser o PT.
Ao importarem o instituto do impeachment, os arquitetos da Constituição americana tinham em mente, precisamente, casos como o de Trump. O presidente é acusado de chantagear o governo ucraniano, usando a ajuda militar ao aliado como moeda de troca para obter uma declaração desabonadora sobre os negócios de Hunter Biden, filho de seu mais provável desafiante eleitoral. No Brasil, Dilma foi acusada de infringir a lei fiscal, um expediente que lhe propiciou mascarar desequilíbrios orçamentários e autorizar gastos capazes de melhorar suas perspectivas eleitorais.
O impeachment circula na esfera política, mas não é um jogo partidário. O juramento constitucional exige que, durante o julgamento, os representantes do povo suspendam suas lealdades partidárias. O perjuro McConnell, porém, orientou a maioria republicana a impedir a arguição de testemunhas —e quase toda a bancada o seguiu, bloqueando a convocação de John Bolton. O ex-conselheiro de Segurança Nacional testemunharia, como indicam vazamentos de um livro seu ainda no prelo, que Trump coordenou pessoalmente os atos de extorsão. A "justiça imparcial" foi substituída por um cínico processo de acobertamento.
A natureza política do impeachment tem uma dimensão que vai além dos textos legais: presidentes só sofrem impedimento quando perdem as condições para governar. O Congresso rotulou as "pedaladas fiscais" de Dilma como crime de responsabilidade porque as ruas e as pesquisas atestaram que seu governo convertera-se numa pilha de ruínas. Trump, pelo contrário, conserva o apoio de dois quintos dos americanos. As sondagens indicam que uma significativa maioria condena a chantagem contra a Ucrânia “mas, diante da proximidade das eleições, quase metade dos eleitores rejeita seu afastamento do cargo.
Trump fica, pois o impeachment é "um processo político". Deixa como herança a desmoralização do instituto do impeachment, rebaixado pelos republicanos à condição de disputa partidária. Os americanos decidirão, nas urnas, se aceitam a amputação de sua democracia.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe