Pular para o conteúdo principal

Conti: no Brasil, dá-se por feliz o trabalhador que pedala 30 km e 12 horas por dia

O colunista da Folha de S. Paulo escreve hoje um belo artigo sobre as promessas e infortúnios do admirável mundo novo da economia de aplicativos. Abaixo, na íntegra, o texto de Mario Sergio Conti.

Que trabalhar é uma maldição se sabe desde a Bíblia: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”. No Brasil, dá-se por feliz o trabalhador que pedala 30 km e 12 horas por dia, fazendo entregas seis dias por semana. Sua renda mensal é de R$ 1.000. Não tem hora extra, plano de saúde, 13º, férias.
Mas tem uma bicicleta. Ela faz com que não seja um empregado. Quem disse isso foi a 37ª Vara de Trabalho de São Paulo. No mês passado, ela usou um conceito marxista para dar ganho de causa à iFood e à Rapiddo: dono do “meio de produção”, o entregador não tem vínculo empregatício com a empresa.
Logo, é um autônomo, quiçá um burguês. Não precisa de direitos trabalhistas. Isso apesar de, como moram longe, os entregadores por vezes dormirem na rua —com a cabeça enfiada no caixote da comida para atenuar o barulho e a luz.
Eis o admirável mundo novo da economia dos aplicativos, das plataformas digitais, da uberização. Uma boa introdução ao assunto é “Les Nouveaux Travailleurs des Applis” (Presses Universitaires de France, 115 págs.), com artigos de sociólogos, cientistas políticos e juristas.
O livro parte de uma pergunta singela: chamar um carro por meio de um aplicativo, em vez de pelo telefone, constitui uma revolução, como sugere o termo uberização? Apesar de revolução ser uma palavra enorme —sobretudo na França—, a resposta é sim.
Até porque, ao entrar para o dicionário “Robert”, a uberização foi definida com as tintas da mudança radical: “Transformar um setor da atividade econômica com um modelo inovativo, que tira partido da digitalização”.
As plataformas não são uma mera inovação tecnológica. São, diz o livro, “um novo espaço para modificar as regras do jogo em matéria de trabalho e emprego”. A Uber, por exemplo, foi fundada em 2010 e transporta 110 milhões de pessoas em 70 países. Tem 5 milhões de motoristas e apenas 27 mil funcionários contratados —e nenhum carro.
No Brasil, está em cem cidades, tem 22 milhões de fregueses e 600 mil “motoristas parceiros”. Junto com Rappi, iFood e 99, é um dos raros setores dinâmicos da economia. O número de brasileiros que trabalham em transporte cresceu 30% em 2018. São 3,6 milhões de pessoas.
As plataformas digitais se definem como empresas de tecnologia. É verdade, mas não só. Elas fazem intermediação: via tecnologia, aproximam clientes de prestadores de serviço. E ganham uma comissão – de 5% a 30% —para realizá-la.
Já seus trabalhadores ganham por serviço realizado. São amadores que fazem bicos. Não têm a perspectiva de ter uma carreira, desempenhar novas funções, subir na vida. Estão condenados à atomização.
Nos Estados Unidos, a economia 3.0 responde por quase 7% do PIB, mas emprega apenas 2,5% da mão de obra nacional. As gigantes extraem dados dos usuários e os revendem a anunciantes: Google e Facebook.
As de produtos oferecem serviços em troca de assinaturas pagas: Spotify e Netflix. E há as que usam massas de desempregados ou pequenos proprietários para oferecer produtos a clientes: Airbnb e Uber.
Para “Les Nouveaux Travailleurs des Applis”, o setor é altamente monopolista. A compra do LinkedIn pela Microsoft (por US$ 25 bilhões) e do WhatsApp pelo Facebook (US$ 19 bilhões) são exemplos. Mas o livro enfatiza as plataformas colaborativas —as que ligam as chamadas pessoas comuns, em busca de um objetivo ou serviço.
Florescentes na França, as plataformas colaborativas dificilmente vingam. Se não recebem investimentos e ganham mercado, vão à falência. Ou sucumbem à lógica do lucro, ou perecem. O único caso de sucesso apresentado é a Wikipédia: grátis e produzida por meio de trabalho não remunerado.
Não obstante, a ideologia do trabalho livre e do empreendedorismo atrai milhões de pessoas para as plataformas —talvez seja o principal motivo, depois do desemprego. Isso fica claro em “Você Não Estava Aqui”, o filme de Ken Loach que acabou de estrear.
O protagonista, funcionário na construção civil, explica no começo por que deseja ser entregador de uma plataforma digital. Quer se livrar dos chefetes tirânicos, dos colegas preguiçosos, do salário irrisório, dos horários impostos, dos gestos mecânicos, do cansaço permanente —da cadeia de comando que lhe inferniza a vida.
Quer ser dono de seu nariz. Quando começam as dificuldades, não tem a quem recorrer. Não tem companheiros, categoria profissional, classe social. O trabalho digital se resume à labuta sem futuro. O mundo novo de verdade não chegou.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...