Excelente reportagem sobre tema super atual, escrito por Laura Greenhalgh para o Valor, publicada na sexta-feira, 28/02, no jornal. Texto na íntegra, abaixo.
Há pelo menos meio século, habitantes deste planeta esférico perceberam que a humanidade caminhava a passos largos para a era da informação. Assim a aldeia global, preconizada pelo escritor canadense Marshall McLuhan (1911-1980), nos anos 1960, foi tecendo sua trama de proximidades, numa utopia envolvente - ainda que um outro escritor, o britânico Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido como George Orwell, já houvesse alertado para os riscos de um mundo hiperconectado no célebre “1984”, livro publicado no fim dos anos 1940. No mundo pós-guerra, Orwell ofereceu a antevisão de uma distopia futurista, passível de novas e inusitadas formas de totalitarismo.
Hoje a humanidade começa a se dar conta de um tempo que muitos vêm chamando de “a era da desinformação”. Trata-se de uma negação apenas aparente do que se falou há 50 anos, com surpresas e complexidades inimagináveis.
“A política entrou na categoria do espetáculo, dos afagos ao ego, das manipulações”, afirma o professor da USP Eugênio Bucci
“O iPhone tem 10 anos de idade, o Twitter tem 12, e o Facebook, 14. A história mostrou que ‘o meio é a mensagem’ [conceito de MacLuhan] e que mudanças cataclísmicas ocorrem na sociedade pela maneira como nos comunicamos. Começamos a nos indagar como o momento que vivemos agora se diferencia de outros já vividos no tempo” - esta é a questão inicial de um estudo sobre desinformação, “The Fight Against Disinformation in the US: A Landscape Analysis”, realizado em 2018 por pesquisadores do Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy, da Universidade de Harvard.
Mas o que vem a ser a “desinformação”? As tentativas de definição são inesgotáveis, mas basicamente tem a ver com sistemas de produção e disseminação de mensagens nas quais a verdade dos fatos perde relevância para o efeito imediato que tais mensagens possam exercer - não apenas sobre o receptor, como também sobre o emissor das mesmas. Pode soar complexo, mas esse fenômeno se manifesta corriqueiramente na vida de uma pessoa conectada.
Algumas perguntas: por que nos sentimos “perdidos” ou “desorientados” diante da massa de dados a que estamos expostos cotidianamente? Por que identificamos a presença de informação falsa em nossos celulares e computadores e, mesmo assim, paramos para olhar, ler e passar adiante? Por que, ao fim do dia, lidamos com a sensação ambígua de muito saber e nada saber? Segundo consultorias, a desinformação já é o principal motor da economia digital - 25% da economia global -, que gera lucros estratosféricos com a monetização de dados, além de abrir novas fronteiras para o mercado publicitário.
Craig Silverman, um dos editores internacionais da plataforma BuzzFeed, costuma utilizar uma expressão original para explicar esse universo de fabulosos negócios: a “economia da atenção”. Em outras palavras, cada segundo que passamos plugados à web vale dinheiro. É como se o tempo conectado em nossos smartphones, computadores e outros aparelhos on-line tenha virado uma espécie de commodity nos mercados digitais. Quanto está valendo a atenção das pessoas hoje?
Detalhe: na média, em 58% do tempo que passamos navegando por sites de busca e plataformas de compartilhamento, recebemos informações dirigidas que nem sequer solicitamos. Esse índice alcança 70% do tempo de navegação no YouTube, por exemplo. Somos monitorados em nossos interesses e preferências. Depois, induzidos a comportamentos.
Hoje a desinformação on-line se manifesta em qualquer domínio da atividade humana. Vem direcionando a comunicação política em inúmeros países, influenciando resultados eleitorais e abalando os alicerces das democracias - afinal, o que a desinformação quer é linha direta com as massas.
“Não seria correto dizer que as grandes plataformas digitais propiciaram, no plano político, essa irracionalidade que parece crescer na sociedade. Mas elas dinamizam os mercados digitais que hoje lucram com as divisões sociais, a alimentação de falsas crenças e a fragmentação de audiências”, segundo afirma o estudo “Digital Deceit” (Desencanto Digital), também do Shorenstein Center.
Um dos autores do estudo é Dipayan Ghosh, ex-consultor do Facebook e conselheiro do ex-presidente americano Barack Obama para a área de tecnologia, nos tempos da Casa Branca. Entrevistado pelo Valor, Ghosh se manifestou sobre o seguinte paradoxo: a internet cresceu e se consolidou com a grande rede/teia mundial ao conectar/juntar indivíduos onde quer que estejam e desde haja condições para tanto.
“O brasileiro deixa de comer para comprar celular. Mas será que está preparado para lidar com tanta desinformação?”, diz Renato Blum
No entanto, em vez de juntar, hoje os mercados digitais dividem as pessoas com base em perfis psicológicos definidos por algoritmos, criando “nichos” para os quais são endereçadas mensagens feitas sob medida. Para que estas sejam bem-sucedidas, precisam surtir efeito. Para isso, vale falsear a realidade e até propagar a mentira, de tal forma que ela se instale como verdade na mente das pessoas - como ensinou Joseph Goebbels (1897-1945), o ministro da propaganda de Hitler, hoje invocado por figuras públicas no Brasil.
“O único jeito de lidar com os perigos da segmentação de audiência e dos conteúdos direcionados será reforçar a privacidade dos cidadãos, começando por exigir mais transparência sobre como as empresas lidam com dados pessoais”, diz Ghosh. Ao mesmo tempo, o professor de Harvard alerta que o combate à desinformação não pode ficar restrito ao mundo empresarial e nem às plataformas on-line (Google, Facebook, YouTube, Instagram e outras). Esse combate deveria resultar de uma ação conjunta englobando a participação de governos, de legisladores e da sociedade como um todo. “A desinformação digital coloca diante de nós a necessidade urgente de um contrato social para a internet.”
Para Ghosh, esse contrato social precisaria ser construído sobre três pilares: transparência (todo cidadão tem o direito de saber quem está influenciando suas escolhas pessoais e visões políticas); privacidade (todo cidadão precisa saber como seus dados estão sendo coletados, usados e até monetizados) e competição (as pessoas devem contar com múltiplos canais para se informar e compartilhar no meio digital).
O terceiro pilar pode ser entendido como um recado a empresas como Google, Facebook e Amazon, avaliadas na casa dos trilhões de dólares e criticadas por formação de monopólio. Suas receitas já superam as da indústria do petróleo no mundo. Porém, se essas empresas estão se saindo bem num mercado com baixa regulamentação, por que inventar regras? As gigantes da internet preservam sua privacidade e destinam fortunas para manter o sigilo do negócio - sobretudo, a calibragem de seus algoritmos.
Enquanto isso, a desinformação aproveita todas as oportunidades para se expandir, invariavelmente ocultando interesses: propagar histórias falsas, crenças infundadas, “fake news” etc. é justamente o que leva a milhões de visualizações e compartilhamentos. “Acho que estamos apenas vendo a ponta do iceberg, ou melhor, do problema”, avalia Laura Moraes, diretora de campanhas da Avaaz, uma organização social sem fins lucrativos que promove o ativismo global por meio de petições on-line em defesa de grandes causas - por exemplo, combate às mudanças climáticas, proteção animal, defesa dos direitos humanos.
Essa organização global (com sede nos Estados Unidos e um time ativo no Brasil) vem concentrando esforços e recursos no combate à desinformação, propondo soluções. Em 2018, por exemplo, a Avaaz divulgou um estudo voltado para o Brasil, em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações e o Ibope. A ideia era entender por que os índices de vacinação caíram tão drasticamente no país (que já teve o maior programa de imunizações do mundo), trazendo de volta doenças que haviam sido controladas. Em 2015, os índices de vacinação de sarampo eram de 96%; baixaram para 57% em 2019. O mesmo vale para a poliomielite - 95% em 2015; 51% em 2019.
O estudo acabou revelando uma enxurrada de notícias falsas sobre vacinas nas redes sociais - mentiras como “o vírus do câncer está presente em vacinas”, “o autismo é consequência das vacinas”, “vacinas são parte de um complô mundial para matar pessoas e fazer controle da população” - e por aí vai. Trabalhando com especialistas, a Avaaz conseguiu chegar a um determinado IP (Internet Protocol, a identificação única de um computador conectado à rede), em seguida ao CPF de um determinado usuário de rede social, identificando o maior difusor de mentiras sobre vacinas no Brasil.
Trata-se de um homem de meia-idade que se apresenta como terapeuta naturalista. Em site, ele oferece livros e produtos, além de ser o protagonista de vídeos exibidos no YouTube que geraram vários compartilhamentos. Descobriu-se, ao longo do estudo, que esse homem mantém vínculos com um grupo americano de produtos naturais. Segundo pesquisa Avaaz/SBIm/Ibope, 13% dos entrevistados deixaram de se vacinar ou de vacinar uma criança; 31% passaram a crer que vacinar é desnecessário e 48% admitem que se informam sobre vacinação em redes sociais.
Nos EUA, o site foi banido e tirado do ar. No Brasil, o conteúdo falacioso conseguiu migrar para outro site. Como disse o médico Drauzio Varella no programa “Fantástico” (Rede Globo), “as pessoas estão sendo enganadas, levadas a consumir produtos alternativos e esperar curas milagrosas. Quem dissemina falsidades em relação às vacinas comete crime”. No Congresso Nacional, a CPI das Fake News, em fase de elaboração de relatório, recomendará penas elevadas aos que disseminarem falsidades sobre saúde, e a comissão parlamentar ainda quer ouvir Varella sobre o assunto.
A desinformação já acionou sua máquina mortífera em relação ao coronavírus, disseminando mentiras como a de que se trata de um complô patrocinado pela Fundação Bill and Melina Gates para fazer explodir a venda de vacinas pelo mundo. Ou alardeando tratamentos alternativos para os infectados, à base de alho ou água sanitária. Para conter a paranoia geral e se contrapor às ondas de “fake news”, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já está trabalhando com as gigantes das redes sociais, como Facebook e Pinterest.
Os estudos da Avaaz sobre desinformação começaram com o Brexit, prosseguiram na campanha presidencial americana de 2016, já passaram pelo universo dos “gillets jaunes” (coletes amarelos) na França e mantêm como foco permanente o crescimento do discurso negacionista em relação a mudança climática. Pesquisadores constataram que o YouTube dissemina vídeos negando que o planeta está ameaçado pelos níveis das emissões de carbono, por desmatamento, estresse hídrico, poluição atmosférica etc. E verificaram que tais vídeos - muitos vão além do ceticismo ecológico ao propagar mentiras - apareceram ao lado de anúncios de marcas como Greenpeace, Danone, Decathlon, sem que as mesmas tivessem sido informadas. A Avaaz tem procurado alertar sobre essas situações.
Na comunidade da internet, já se formou o consenso de que a desinformação não deve ser vista como fenômeno ideológico meramente, até porque há sempre quem esteja lucrando com ela. Desinformar abriu uma espécie de corrida pelo ouro. “Por isso essa epidemia se alastra pelo mundo”, afirma Laura Moraes. “São falsidades, informações tiradas de contexto, narrativas montadas, manipulações, sempre ocultando interesses e impedindo a formação da opinião orgânica. É tanto absurdo que as pessoas começam a se perguntar ‘no que acreditar, afinal?’. Isso é um risco tremendo para a democracia no mundo.”
Sobre esse terreno tem se debruçado o jornalista, escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Eugênio Bucci, autor de “Existe Democracia Sem Verdade Factual?” (Ed. Estação das Letras e Cores). Bucci analisa, entre outros aspectos, o que terá mudado na relação entre governantes e governados nestes tempos de “fake news”. Começa por fazer uma distinção entre política e democracia. “A política precede a democracia, vem dos tempos de Platão e Aristóteles. Já a democracia tal como a conhecemos, ou seja, a prevalência da maioria, resguardados os direitos das minorias, é invenção do século XIX”, diz. “Acreditamos na democracia como algo natural, que deve cair do céu, mas não é assim. Democracia ainda é coisa recente, rascunhada e não acabada.”
Para Bucci, sendo a democracia um sistema que se apoia em fatos e escolhas racionais, ela se expressa por meio da vontade dos cidadãos. Só que, com o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade de consumo, afirma, o campo da vontade foi invadido pelo campo do desejo. “Isso se vê claramente na publicidade, com suas promessas de luxo, felicidade e gozo.” O que Bucci localiza, agora, é a entrada da política na dimensão do desejo.
“A política entrou na categoria do espetáculo, dos afagos ao ego, das manipulações. Por isso as pessoas se manifestam no on-line de maneira tão apaixonada, querendo amar o candidato e matar o adversário. Recebem via WhatsApp informações deliberadamente erradas, mas sentem prazer em repassá-las”, diz. “O problema é que o desejo não é bom conselheiro nessas horas. Ele é pulsional, libidinal, instintivo... parece que aquilo que nos tirava da infância não está respondendo mais.”
Essa análise comunicacional/política encontra paralelos na neurociência. Pesquisadores da Brain & Behavior Research Foundation (com sede em Nova York, ela atua globalmente no campo da saúde mental) têm voltado no tempo ao rever experimentos dos anos 1950 sobre condicionamentos, conduzidos pelo psicólogo B. F. Skinner (1904-1990). E lançam questões: como viver a vida que se quer, fugindo da captura incessante das mensagens dirigidas? Somos, de fato, livres, considerando um mercado de alta performance, que vive de atrair e vender a nossa atenção? O uso excessivo das redes sociais causa vício no patamar da compulsão por sexo, compras ou videogames?
Impossível cravar que rede social causa vício, dizem esses neurocientistas, ainda que as razões do uso excessivo sejam as mesmas de outros tipos de dependência, como superar experiências negativas, conviver com a solidão, ultrapassar perdas, melhorar a autoimagem. Depois de lidar com os grupos da pesquisa, avaliando até mudanças de humor em relação à privação do tempo de conexão e compartilhamento on-line, esses estudiosos afirmaram: 5% dos adolescentes usuários de redes sociais apresentaram sintomas de dependência. “Projetando esse percentual para o mundo de hoje, entendemos que as soluções para essa dependência, com evidente comprometimento da saúde mental, passam por regulamentações governamentais similares às da indústria do tabaco”, conclui o trabalho.
É comum ouvir no mundo das plataformas digitais que uma coisa é desinformação, outra coisa é privacidade de dados. Executivos dessas plataformas - entrevistados pelo Valor no Brasil, porém instruídos por suas empresas globais a não falar publicamente - tratam esses dois temas como departamentos isolados. Caso exemplar é exibido no documentário “Privacidade Hackeada”, produzido pela Netflix, mostrando como a empresa de análise de dados Cambridge Analytica atuou de forma obscura, e com alta carga de desinformação, desde a eleição presidencial de 2016 nos EUA - quando teve acesso a milhões de dados de cidadãos de forma nada transparente. “Se não houver regulação no setor, a sociedade continuará a ser explorada como uma grande jazida. Ou então a democracia reage para quebrar os monopólios de extração de dados”, diz Bucci.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), aplicou multa de R$ 6,6 milhões ao Facebook em dezembro do ano passado, resultante de uma investigação sobre o compartilhamento irregular de informações dos usuários. O episódio tem a ver com o caso da Cambridge Analytica, segundo o qual dados de brasileiros no Facebook teriam sido repassados à empresa pelo cientista americano Aleksandr Kogan. Controvertida figura, ele ostenta diplomas das universidades da Califórnia, de Hong Kong, de São Petersburgo e de Cambridge. Foi ele quem desenvolveu aplicativos para a Cambridge Analytica dando acesso a dados de mais de 80 milhões de usuários do Facebook - a Cambridge Analytica foi presidida por Steve Bannon, ex-estrategista de Trump na Casa Branca, hoje saudado como gênio por filhos do presidente Bolsonaro.
O Facebook diz que está “avaliando suas opções legais” e não confirma se irá recorrer da decisão ministerial. Extraoficialmente, a plataforma teria sido enganada por Kogan, com quem havia feito um acordo de transferência de dados que não previa a utilização dos mesmos pela Cambridge Analytica. Diz-se que não há evidências de que essas informações foram repassadas para a empresa de Bannon e que os usuários brasileiros tiveram a opção de compartilhar, ou não, seus próprios dados e os de seus amigos, quando convidados pela plataforma. Um exemplo de que clicar em “aceito” pode ser mais complexo do que se imagina.
O acesso a dados, de cidadãos comuns a chefes de Estado, tornou-se crucial para a formação das “filter bubbles” - dados alimentam o aprendizado constante dos algoritmos, que por sua vez criam perfis psicológicos para constituir audiências que pensam de forma semelhante (inclusive na política), cujos comportamentos podem ser previstos ou mesmo induzidos. Idealmente, audiências segmentadas devem ser constantemente ativadas para gerar reações. Para que isso ocorra, a distorção dos fatos funciona muito melhor do que a precisão deles. E eis o perigo: desinformar poderá se tornar mais atraente e lucrativo do que informar.
“O Brasil gosta muito da internet. É um dos países que mais navega em redes sociais no mundo (só perde para Filipinas, segundo a pesquisa GlobalWebIndex). O brasileiro deixa de comer para comprar celular. Mas será que ele está preparado para lidar com tanta desinformação?” A pergunta é do advogado Renato Opice Blum, referência jurídica no mundo das tecnologias. Ele antecipa a resposta: “Não está preparado”. Blum acha que o Estado brasileiro deveria investir pesado em educação digital, “mas a verdade é que isso não acontece aqui, nem em outras partes”.
Além de acompanhar os debates parlamentares em torno da legislação para o setor - como a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, em agosto deste ano -, o advogado vive em seu escritório o dia a dia de empresas atropeladas pela desinformação, vítimas de jogos de interesses, má-fé e/ou concorrência desleal, situações cada vez mais frequentes no mundo dos negócios. São inúmeras empresas surpreendidas por vídeos falsos envolvendo integrantes da diretoria, simulação de produtos fora da validade ou das normas, vinganças de ex-amigos ou ex-cônjuges de executivos - Jeff Bezzos, o todo-poderoso dono da Amazon, anda às voltas com o conteúdo surrupiado de um dos seus celulares, revelando inclusive imagens e diálogos íntimos.
“Vamos sempre à Justiça pedir a remoção desses conteúdos, bem como a responsabilização dos seus autores. No entanto, esses caluniadores poderão ser condenados a penas baixíssimas, um, dois anos de detenção. Isso não é nada. Indenizações até agora também são muito baixas”, diz Blum. “Mesmo que a empresa coloque a sua versão na web, o conteúdo ‘fake’ já terá viralizado, tornando impossível recolocar a verdade dos fatos. As empresas gritam, mas o áudio das ‘fake news’ é mais forte.” Ele já está preocupado com a onda de “deep fakes” que poderá se disseminar nas próximas eleições brasileiras - são vídeos com sofisticada adulteração de som e imagem, capazes de colocar falsos discursos na boca das pessoas.
A sociedade precisaria estar mais informada sobre essas falsificações, na visão do advogado. O país conta com mais de 120 milhões de pessoas conectadas e 230 milhões de celulares em uso. A taxa de postagem em grupo é cinco vezes maior do que a média dos países. “Brasileiro tem a mania de dar parabéns em grupos do WhatsApp, muitas vezes poluindo conversas de trabalho e ampliando o vaivém de mensagens. Por que não faz isso ‘inbox’? O celular sempre nas mãos também tem a ver com a mobilidade em nossas cidades: paradas nos engarrafamentos, as pessoas vão postar e compartilhar mais.” Outro aspecto a considerar, segundo Blum, são sinais de uso das redes sociais, com desinformação, pelo crime organizado, embora não se conheça a real dimensão do problema.
Entre avanços e retrocessos, o Brasil busca uma legislação que responda aos desafios da evolução tecnológica - sempre mais veloz do que o ritmo do Congresso. Vale citar a Lei Carolina Dieckmann, de 2012, que tipifica crimes informáticos, e o Marco Civil da Internet, de 2014, que trata da função social da rede, passando por neutralidade, privacidade, liberdade de expressão, responsabilidade civil de usuários e provedores - as duas leis foram sancionadas pela ex-presidente Dilma Rousseff.
“Sempre se pode melhorar a lei brasileira”, diz o advogado. “Multas brandas para propagadores de mentiras não resolvem. Precisamos de penas e multas fortes. Da parte das aplicações, como Google e Facebook, precisamos de maior colaboração, afinal, a desinformação com o tempo será um grave problema também para essas empresas. Quanto aos tribunais brasileiros, eles passam a atuar de forma mais efetiva.” É esperado que atuem de forma mais rápida, também. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) levou mais de um ano para proibir e punir o disparo em massa de mensagens de campanhas políticas via WhatsApp, embora a denúncia dessa irregularidade tenha sido apontada durante a eleição presidencial de 2018, pelo jornal “Folha de S. Paulo”.
Trinta notícias falsas sobre vacinas no Brasil geraram 2,4 milhões de visualizações no YouTube, 23,5 milhões de visualizações no Facebook, fora 578 mil compartilhamentos. Sessenta e nove vídeos antivacinação alcançaram 9,2 milhões de visualizações. Foram computados mais de 1,6 mil links contrários às imunizações - números tirados do estudo Avaaz sobre desinformação. “Será preciso agir rápido: corrigir sistematicamente os conteúdos falsos, através do ‘fact checking’, cobrar das plataformas sinalizações claras sobre ‘fake news’, mostrar o que é robô e o que é humano, desintoxicar algoritmos e criar marcos legais democráticos”, enumera Laura Moraes.
Num tempo em que mentiras sao propagadas e repetidas para se transformar em verdades de ocasião, a indústria do “fact checking” só faz crescer pelo mundo. Os serviços dessas empresas ainda são considerados caros, por ser uma atividade predominantemente humana - algoritmos, pelo que se sabe, ainda não estão preparados para separar verdade e mentira. Mas qual será o futuro de uma sociedade atravessada por informações cotidianamente carentes de verificação?
Bucci vê com reservas essa perspectiva, mesmo reconhecendo que o “fact checking”, como impulso geral, nasceu para o bem. Acredita que se a imprensa livre depender de “fact checking”, ou seja, de checar tudo a todo momento, “ela perderá a sua razão última de ser, para se converter numa besta-fera positivista”. Para Bucci, a verdade factual não se resolve com averiguações empíricas, periciais e nem tampouco se resume aos fatos. Até por isso ela se abre ao debate público. “Seja como for, a verdade, ela mesma, jamais estará alojada a meia distância de duas distorções.”
Há pelo menos meio século, habitantes deste planeta esférico perceberam que a humanidade caminhava a passos largos para a era da informação. Assim a aldeia global, preconizada pelo escritor canadense Marshall McLuhan (1911-1980), nos anos 1960, foi tecendo sua trama de proximidades, numa utopia envolvente - ainda que um outro escritor, o britânico Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido como George Orwell, já houvesse alertado para os riscos de um mundo hiperconectado no célebre “1984”, livro publicado no fim dos anos 1940. No mundo pós-guerra, Orwell ofereceu a antevisão de uma distopia futurista, passível de novas e inusitadas formas de totalitarismo.
Hoje a humanidade começa a se dar conta de um tempo que muitos vêm chamando de “a era da desinformação”. Trata-se de uma negação apenas aparente do que se falou há 50 anos, com surpresas e complexidades inimagináveis.
“A política entrou na categoria do espetáculo, dos afagos ao ego, das manipulações”, afirma o professor da USP Eugênio Bucci
“O iPhone tem 10 anos de idade, o Twitter tem 12, e o Facebook, 14. A história mostrou que ‘o meio é a mensagem’ [conceito de MacLuhan] e que mudanças cataclísmicas ocorrem na sociedade pela maneira como nos comunicamos. Começamos a nos indagar como o momento que vivemos agora se diferencia de outros já vividos no tempo” - esta é a questão inicial de um estudo sobre desinformação, “The Fight Against Disinformation in the US: A Landscape Analysis”, realizado em 2018 por pesquisadores do Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy, da Universidade de Harvard.
Mas o que vem a ser a “desinformação”? As tentativas de definição são inesgotáveis, mas basicamente tem a ver com sistemas de produção e disseminação de mensagens nas quais a verdade dos fatos perde relevância para o efeito imediato que tais mensagens possam exercer - não apenas sobre o receptor, como também sobre o emissor das mesmas. Pode soar complexo, mas esse fenômeno se manifesta corriqueiramente na vida de uma pessoa conectada.
Algumas perguntas: por que nos sentimos “perdidos” ou “desorientados” diante da massa de dados a que estamos expostos cotidianamente? Por que identificamos a presença de informação falsa em nossos celulares e computadores e, mesmo assim, paramos para olhar, ler e passar adiante? Por que, ao fim do dia, lidamos com a sensação ambígua de muito saber e nada saber? Segundo consultorias, a desinformação já é o principal motor da economia digital - 25% da economia global -, que gera lucros estratosféricos com a monetização de dados, além de abrir novas fronteiras para o mercado publicitário.
Craig Silverman, um dos editores internacionais da plataforma BuzzFeed, costuma utilizar uma expressão original para explicar esse universo de fabulosos negócios: a “economia da atenção”. Em outras palavras, cada segundo que passamos plugados à web vale dinheiro. É como se o tempo conectado em nossos smartphones, computadores e outros aparelhos on-line tenha virado uma espécie de commodity nos mercados digitais. Quanto está valendo a atenção das pessoas hoje?
Detalhe: na média, em 58% do tempo que passamos navegando por sites de busca e plataformas de compartilhamento, recebemos informações dirigidas que nem sequer solicitamos. Esse índice alcança 70% do tempo de navegação no YouTube, por exemplo. Somos monitorados em nossos interesses e preferências. Depois, induzidos a comportamentos.
Hoje a desinformação on-line se manifesta em qualquer domínio da atividade humana. Vem direcionando a comunicação política em inúmeros países, influenciando resultados eleitorais e abalando os alicerces das democracias - afinal, o que a desinformação quer é linha direta com as massas.
“Não seria correto dizer que as grandes plataformas digitais propiciaram, no plano político, essa irracionalidade que parece crescer na sociedade. Mas elas dinamizam os mercados digitais que hoje lucram com as divisões sociais, a alimentação de falsas crenças e a fragmentação de audiências”, segundo afirma o estudo “Digital Deceit” (Desencanto Digital), também do Shorenstein Center.
Um dos autores do estudo é Dipayan Ghosh, ex-consultor do Facebook e conselheiro do ex-presidente americano Barack Obama para a área de tecnologia, nos tempos da Casa Branca. Entrevistado pelo Valor, Ghosh se manifestou sobre o seguinte paradoxo: a internet cresceu e se consolidou com a grande rede/teia mundial ao conectar/juntar indivíduos onde quer que estejam e desde haja condições para tanto.
“O brasileiro deixa de comer para comprar celular. Mas será que está preparado para lidar com tanta desinformação?”, diz Renato Blum
No entanto, em vez de juntar, hoje os mercados digitais dividem as pessoas com base em perfis psicológicos definidos por algoritmos, criando “nichos” para os quais são endereçadas mensagens feitas sob medida. Para que estas sejam bem-sucedidas, precisam surtir efeito. Para isso, vale falsear a realidade e até propagar a mentira, de tal forma que ela se instale como verdade na mente das pessoas - como ensinou Joseph Goebbels (1897-1945), o ministro da propaganda de Hitler, hoje invocado por figuras públicas no Brasil.
“O único jeito de lidar com os perigos da segmentação de audiência e dos conteúdos direcionados será reforçar a privacidade dos cidadãos, começando por exigir mais transparência sobre como as empresas lidam com dados pessoais”, diz Ghosh. Ao mesmo tempo, o professor de Harvard alerta que o combate à desinformação não pode ficar restrito ao mundo empresarial e nem às plataformas on-line (Google, Facebook, YouTube, Instagram e outras). Esse combate deveria resultar de uma ação conjunta englobando a participação de governos, de legisladores e da sociedade como um todo. “A desinformação digital coloca diante de nós a necessidade urgente de um contrato social para a internet.”
Para Ghosh, esse contrato social precisaria ser construído sobre três pilares: transparência (todo cidadão tem o direito de saber quem está influenciando suas escolhas pessoais e visões políticas); privacidade (todo cidadão precisa saber como seus dados estão sendo coletados, usados e até monetizados) e competição (as pessoas devem contar com múltiplos canais para se informar e compartilhar no meio digital).
O terceiro pilar pode ser entendido como um recado a empresas como Google, Facebook e Amazon, avaliadas na casa dos trilhões de dólares e criticadas por formação de monopólio. Suas receitas já superam as da indústria do petróleo no mundo. Porém, se essas empresas estão se saindo bem num mercado com baixa regulamentação, por que inventar regras? As gigantes da internet preservam sua privacidade e destinam fortunas para manter o sigilo do negócio - sobretudo, a calibragem de seus algoritmos.
Enquanto isso, a desinformação aproveita todas as oportunidades para se expandir, invariavelmente ocultando interesses: propagar histórias falsas, crenças infundadas, “fake news” etc. é justamente o que leva a milhões de visualizações e compartilhamentos. “Acho que estamos apenas vendo a ponta do iceberg, ou melhor, do problema”, avalia Laura Moraes, diretora de campanhas da Avaaz, uma organização social sem fins lucrativos que promove o ativismo global por meio de petições on-line em defesa de grandes causas - por exemplo, combate às mudanças climáticas, proteção animal, defesa dos direitos humanos.
Essa organização global (com sede nos Estados Unidos e um time ativo no Brasil) vem concentrando esforços e recursos no combate à desinformação, propondo soluções. Em 2018, por exemplo, a Avaaz divulgou um estudo voltado para o Brasil, em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações e o Ibope. A ideia era entender por que os índices de vacinação caíram tão drasticamente no país (que já teve o maior programa de imunizações do mundo), trazendo de volta doenças que haviam sido controladas. Em 2015, os índices de vacinação de sarampo eram de 96%; baixaram para 57% em 2019. O mesmo vale para a poliomielite - 95% em 2015; 51% em 2019.
O estudo acabou revelando uma enxurrada de notícias falsas sobre vacinas nas redes sociais - mentiras como “o vírus do câncer está presente em vacinas”, “o autismo é consequência das vacinas”, “vacinas são parte de um complô mundial para matar pessoas e fazer controle da população” - e por aí vai. Trabalhando com especialistas, a Avaaz conseguiu chegar a um determinado IP (Internet Protocol, a identificação única de um computador conectado à rede), em seguida ao CPF de um determinado usuário de rede social, identificando o maior difusor de mentiras sobre vacinas no Brasil.
Trata-se de um homem de meia-idade que se apresenta como terapeuta naturalista. Em site, ele oferece livros e produtos, além de ser o protagonista de vídeos exibidos no YouTube que geraram vários compartilhamentos. Descobriu-se, ao longo do estudo, que esse homem mantém vínculos com um grupo americano de produtos naturais. Segundo pesquisa Avaaz/SBIm/Ibope, 13% dos entrevistados deixaram de se vacinar ou de vacinar uma criança; 31% passaram a crer que vacinar é desnecessário e 48% admitem que se informam sobre vacinação em redes sociais.
Nos EUA, o site foi banido e tirado do ar. No Brasil, o conteúdo falacioso conseguiu migrar para outro site. Como disse o médico Drauzio Varella no programa “Fantástico” (Rede Globo), “as pessoas estão sendo enganadas, levadas a consumir produtos alternativos e esperar curas milagrosas. Quem dissemina falsidades em relação às vacinas comete crime”. No Congresso Nacional, a CPI das Fake News, em fase de elaboração de relatório, recomendará penas elevadas aos que disseminarem falsidades sobre saúde, e a comissão parlamentar ainda quer ouvir Varella sobre o assunto.
A desinformação já acionou sua máquina mortífera em relação ao coronavírus, disseminando mentiras como a de que se trata de um complô patrocinado pela Fundação Bill and Melina Gates para fazer explodir a venda de vacinas pelo mundo. Ou alardeando tratamentos alternativos para os infectados, à base de alho ou água sanitária. Para conter a paranoia geral e se contrapor às ondas de “fake news”, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já está trabalhando com as gigantes das redes sociais, como Facebook e Pinterest.
Os estudos da Avaaz sobre desinformação começaram com o Brexit, prosseguiram na campanha presidencial americana de 2016, já passaram pelo universo dos “gillets jaunes” (coletes amarelos) na França e mantêm como foco permanente o crescimento do discurso negacionista em relação a mudança climática. Pesquisadores constataram que o YouTube dissemina vídeos negando que o planeta está ameaçado pelos níveis das emissões de carbono, por desmatamento, estresse hídrico, poluição atmosférica etc. E verificaram que tais vídeos - muitos vão além do ceticismo ecológico ao propagar mentiras - apareceram ao lado de anúncios de marcas como Greenpeace, Danone, Decathlon, sem que as mesmas tivessem sido informadas. A Avaaz tem procurado alertar sobre essas situações.
Na comunidade da internet, já se formou o consenso de que a desinformação não deve ser vista como fenômeno ideológico meramente, até porque há sempre quem esteja lucrando com ela. Desinformar abriu uma espécie de corrida pelo ouro. “Por isso essa epidemia se alastra pelo mundo”, afirma Laura Moraes. “São falsidades, informações tiradas de contexto, narrativas montadas, manipulações, sempre ocultando interesses e impedindo a formação da opinião orgânica. É tanto absurdo que as pessoas começam a se perguntar ‘no que acreditar, afinal?’. Isso é um risco tremendo para a democracia no mundo.”
Sobre esse terreno tem se debruçado o jornalista, escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Eugênio Bucci, autor de “Existe Democracia Sem Verdade Factual?” (Ed. Estação das Letras e Cores). Bucci analisa, entre outros aspectos, o que terá mudado na relação entre governantes e governados nestes tempos de “fake news”. Começa por fazer uma distinção entre política e democracia. “A política precede a democracia, vem dos tempos de Platão e Aristóteles. Já a democracia tal como a conhecemos, ou seja, a prevalência da maioria, resguardados os direitos das minorias, é invenção do século XIX”, diz. “Acreditamos na democracia como algo natural, que deve cair do céu, mas não é assim. Democracia ainda é coisa recente, rascunhada e não acabada.”
Para Bucci, sendo a democracia um sistema que se apoia em fatos e escolhas racionais, ela se expressa por meio da vontade dos cidadãos. Só que, com o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade de consumo, afirma, o campo da vontade foi invadido pelo campo do desejo. “Isso se vê claramente na publicidade, com suas promessas de luxo, felicidade e gozo.” O que Bucci localiza, agora, é a entrada da política na dimensão do desejo.
“A política entrou na categoria do espetáculo, dos afagos ao ego, das manipulações. Por isso as pessoas se manifestam no on-line de maneira tão apaixonada, querendo amar o candidato e matar o adversário. Recebem via WhatsApp informações deliberadamente erradas, mas sentem prazer em repassá-las”, diz. “O problema é que o desejo não é bom conselheiro nessas horas. Ele é pulsional, libidinal, instintivo... parece que aquilo que nos tirava da infância não está respondendo mais.”
Essa análise comunicacional/política encontra paralelos na neurociência. Pesquisadores da Brain & Behavior Research Foundation (com sede em Nova York, ela atua globalmente no campo da saúde mental) têm voltado no tempo ao rever experimentos dos anos 1950 sobre condicionamentos, conduzidos pelo psicólogo B. F. Skinner (1904-1990). E lançam questões: como viver a vida que se quer, fugindo da captura incessante das mensagens dirigidas? Somos, de fato, livres, considerando um mercado de alta performance, que vive de atrair e vender a nossa atenção? O uso excessivo das redes sociais causa vício no patamar da compulsão por sexo, compras ou videogames?
Impossível cravar que rede social causa vício, dizem esses neurocientistas, ainda que as razões do uso excessivo sejam as mesmas de outros tipos de dependência, como superar experiências negativas, conviver com a solidão, ultrapassar perdas, melhorar a autoimagem. Depois de lidar com os grupos da pesquisa, avaliando até mudanças de humor em relação à privação do tempo de conexão e compartilhamento on-line, esses estudiosos afirmaram: 5% dos adolescentes usuários de redes sociais apresentaram sintomas de dependência. “Projetando esse percentual para o mundo de hoje, entendemos que as soluções para essa dependência, com evidente comprometimento da saúde mental, passam por regulamentações governamentais similares às da indústria do tabaco”, conclui o trabalho.
É comum ouvir no mundo das plataformas digitais que uma coisa é desinformação, outra coisa é privacidade de dados. Executivos dessas plataformas - entrevistados pelo Valor no Brasil, porém instruídos por suas empresas globais a não falar publicamente - tratam esses dois temas como departamentos isolados. Caso exemplar é exibido no documentário “Privacidade Hackeada”, produzido pela Netflix, mostrando como a empresa de análise de dados Cambridge Analytica atuou de forma obscura, e com alta carga de desinformação, desde a eleição presidencial de 2016 nos EUA - quando teve acesso a milhões de dados de cidadãos de forma nada transparente. “Se não houver regulação no setor, a sociedade continuará a ser explorada como uma grande jazida. Ou então a democracia reage para quebrar os monopólios de extração de dados”, diz Bucci.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), aplicou multa de R$ 6,6 milhões ao Facebook em dezembro do ano passado, resultante de uma investigação sobre o compartilhamento irregular de informações dos usuários. O episódio tem a ver com o caso da Cambridge Analytica, segundo o qual dados de brasileiros no Facebook teriam sido repassados à empresa pelo cientista americano Aleksandr Kogan. Controvertida figura, ele ostenta diplomas das universidades da Califórnia, de Hong Kong, de São Petersburgo e de Cambridge. Foi ele quem desenvolveu aplicativos para a Cambridge Analytica dando acesso a dados de mais de 80 milhões de usuários do Facebook - a Cambridge Analytica foi presidida por Steve Bannon, ex-estrategista de Trump na Casa Branca, hoje saudado como gênio por filhos do presidente Bolsonaro.
O Facebook diz que está “avaliando suas opções legais” e não confirma se irá recorrer da decisão ministerial. Extraoficialmente, a plataforma teria sido enganada por Kogan, com quem havia feito um acordo de transferência de dados que não previa a utilização dos mesmos pela Cambridge Analytica. Diz-se que não há evidências de que essas informações foram repassadas para a empresa de Bannon e que os usuários brasileiros tiveram a opção de compartilhar, ou não, seus próprios dados e os de seus amigos, quando convidados pela plataforma. Um exemplo de que clicar em “aceito” pode ser mais complexo do que se imagina.
O acesso a dados, de cidadãos comuns a chefes de Estado, tornou-se crucial para a formação das “filter bubbles” - dados alimentam o aprendizado constante dos algoritmos, que por sua vez criam perfis psicológicos para constituir audiências que pensam de forma semelhante (inclusive na política), cujos comportamentos podem ser previstos ou mesmo induzidos. Idealmente, audiências segmentadas devem ser constantemente ativadas para gerar reações. Para que isso ocorra, a distorção dos fatos funciona muito melhor do que a precisão deles. E eis o perigo: desinformar poderá se tornar mais atraente e lucrativo do que informar.
“O Brasil gosta muito da internet. É um dos países que mais navega em redes sociais no mundo (só perde para Filipinas, segundo a pesquisa GlobalWebIndex). O brasileiro deixa de comer para comprar celular. Mas será que ele está preparado para lidar com tanta desinformação?” A pergunta é do advogado Renato Opice Blum, referência jurídica no mundo das tecnologias. Ele antecipa a resposta: “Não está preparado”. Blum acha que o Estado brasileiro deveria investir pesado em educação digital, “mas a verdade é que isso não acontece aqui, nem em outras partes”.
Além de acompanhar os debates parlamentares em torno da legislação para o setor - como a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, em agosto deste ano -, o advogado vive em seu escritório o dia a dia de empresas atropeladas pela desinformação, vítimas de jogos de interesses, má-fé e/ou concorrência desleal, situações cada vez mais frequentes no mundo dos negócios. São inúmeras empresas surpreendidas por vídeos falsos envolvendo integrantes da diretoria, simulação de produtos fora da validade ou das normas, vinganças de ex-amigos ou ex-cônjuges de executivos - Jeff Bezzos, o todo-poderoso dono da Amazon, anda às voltas com o conteúdo surrupiado de um dos seus celulares, revelando inclusive imagens e diálogos íntimos.
“Vamos sempre à Justiça pedir a remoção desses conteúdos, bem como a responsabilização dos seus autores. No entanto, esses caluniadores poderão ser condenados a penas baixíssimas, um, dois anos de detenção. Isso não é nada. Indenizações até agora também são muito baixas”, diz Blum. “Mesmo que a empresa coloque a sua versão na web, o conteúdo ‘fake’ já terá viralizado, tornando impossível recolocar a verdade dos fatos. As empresas gritam, mas o áudio das ‘fake news’ é mais forte.” Ele já está preocupado com a onda de “deep fakes” que poderá se disseminar nas próximas eleições brasileiras - são vídeos com sofisticada adulteração de som e imagem, capazes de colocar falsos discursos na boca das pessoas.
A sociedade precisaria estar mais informada sobre essas falsificações, na visão do advogado. O país conta com mais de 120 milhões de pessoas conectadas e 230 milhões de celulares em uso. A taxa de postagem em grupo é cinco vezes maior do que a média dos países. “Brasileiro tem a mania de dar parabéns em grupos do WhatsApp, muitas vezes poluindo conversas de trabalho e ampliando o vaivém de mensagens. Por que não faz isso ‘inbox’? O celular sempre nas mãos também tem a ver com a mobilidade em nossas cidades: paradas nos engarrafamentos, as pessoas vão postar e compartilhar mais.” Outro aspecto a considerar, segundo Blum, são sinais de uso das redes sociais, com desinformação, pelo crime organizado, embora não se conheça a real dimensão do problema.
Entre avanços e retrocessos, o Brasil busca uma legislação que responda aos desafios da evolução tecnológica - sempre mais veloz do que o ritmo do Congresso. Vale citar a Lei Carolina Dieckmann, de 2012, que tipifica crimes informáticos, e o Marco Civil da Internet, de 2014, que trata da função social da rede, passando por neutralidade, privacidade, liberdade de expressão, responsabilidade civil de usuários e provedores - as duas leis foram sancionadas pela ex-presidente Dilma Rousseff.
“Sempre se pode melhorar a lei brasileira”, diz o advogado. “Multas brandas para propagadores de mentiras não resolvem. Precisamos de penas e multas fortes. Da parte das aplicações, como Google e Facebook, precisamos de maior colaboração, afinal, a desinformação com o tempo será um grave problema também para essas empresas. Quanto aos tribunais brasileiros, eles passam a atuar de forma mais efetiva.” É esperado que atuem de forma mais rápida, também. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) levou mais de um ano para proibir e punir o disparo em massa de mensagens de campanhas políticas via WhatsApp, embora a denúncia dessa irregularidade tenha sido apontada durante a eleição presidencial de 2018, pelo jornal “Folha de S. Paulo”.
Trinta notícias falsas sobre vacinas no Brasil geraram 2,4 milhões de visualizações no YouTube, 23,5 milhões de visualizações no Facebook, fora 578 mil compartilhamentos. Sessenta e nove vídeos antivacinação alcançaram 9,2 milhões de visualizações. Foram computados mais de 1,6 mil links contrários às imunizações - números tirados do estudo Avaaz sobre desinformação. “Será preciso agir rápido: corrigir sistematicamente os conteúdos falsos, através do ‘fact checking’, cobrar das plataformas sinalizações claras sobre ‘fake news’, mostrar o que é robô e o que é humano, desintoxicar algoritmos e criar marcos legais democráticos”, enumera Laura Moraes.
Num tempo em que mentiras sao propagadas e repetidas para se transformar em verdades de ocasião, a indústria do “fact checking” só faz crescer pelo mundo. Os serviços dessas empresas ainda são considerados caros, por ser uma atividade predominantemente humana - algoritmos, pelo que se sabe, ainda não estão preparados para separar verdade e mentira. Mas qual será o futuro de uma sociedade atravessada por informações cotidianamente carentes de verificação?
Bucci vê com reservas essa perspectiva, mesmo reconhecendo que o “fact checking”, como impulso geral, nasceu para o bem. Acredita que se a imprensa livre depender de “fact checking”, ou seja, de checar tudo a todo momento, “ela perderá a sua razão última de ser, para se converter numa besta-fera positivista”. Para Bucci, a verdade factual não se resolve com averiguações empíricas, periciais e nem tampouco se resume aos fatos. Até por isso ela se abre ao debate público. “Seja como for, a verdade, ela mesma, jamais estará alojada a meia distância de duas distorções.”
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