Morreu a irmã do meu dentista, 54 anos, o pai da minha amiga de faculdade, 64, o vizinho do quinto andar, 31. Você já viu escova de cabelo vazada? Você sabia que existem lencinhos, com um perfume bem suave, que limpam as lentes dos óculos? Para que serve o secador de cabelo mais caro do mundo? Eu não sei, mas sigo pessoas que podem me explicar. Odeio essas pessoas, não as respeito e fico um bom tempo prestando atenção no que elas ensinam, até anoto algumas dicas. A prima de um ex-namorado, 36, o filho intubado da funcionária da padaria, 28, a matéria “Parem de afirmar que crianças pequenas não morrem de Covid”, escreve a colunista Tati Bernardi em mais uma crônica imperdível, publicada sexta, 19/3, na Folha de S. Paulo. Vale muito a leitura, continua a seguir.
Azulejos ou painéis artísticos? Escrevo um email para a arquiteta, começando com “prefiro serigrafia sobre decalques”. Pela internet, compro uma caixinha decorada com desenhos de beija-flores e aviso que é pra gente guardar os controles remotos. Lembro que quando eu era pequena os chamava de “muda-muda”.
Aquela matéria “Muitas são as sequelas neurológicas de quem sobrevive”. O irmão de uma grande amiga, depois da Covid, não fala mais coisa com coisa. Meu marido só sente o gosto da comida se antes cheirá-la profundamente. Outro dia o peguei cafungando um inhame e chamei essa fase de “advanced 3”.
Meu pai vai ao supermercado, à farmácia, diz que se ficar trancado “aí é que morre mesmo”. Minha mãe quer ver a neta, mas está com medo de sair. Depressão também mata, meu psiquiatra insiste. Meu pai precisa ir ao hospital fazer os exames do coração, e minha mãe os do estômago. Agendo pra eles e um dia antes os convenço a desmarcar. Não podem ir, seria perigoso. Perigoso é não fazer exames na idade deles. Eu não quero opinar, decidir. Eu sou a filha e fico achando que não deveríamos inverter os papéis.
Às vezes estou trabalhando e penso: “E se eles pegam esse negócio e morrem?”. Preciso parar tudo e deitar. Começo a tremer tanto e ter tanta ânsia de vômito que me tranco no banheiro enrolada numa toalha de banho e fico apertando a toalha e com medo de que abram a porta. Não sei o que estou fazendo nem o que está acontecendo com o mundo.
Compro sabonete de alecrim numa loja online, espirro essência de laranja doce no travesseiro, uso lavanda no difusor de ambiente. Vocês sabiam que a maca peruana devolve a libido de outrora? Até agora nada. Comprei um negócio de silicone que faz omeletes perfeitos no micro-ondas. Separei minhas roupas mais queridas porque me ensinaram no Instagram a fazer um “armário-cápsula”.
Hospital privado pedindo leito para hospital público. Hospital público que já estava em colapso antes de a gente usar essa palavra 30 vezes por dia. Quase 3.000 mortes por dia, e eu sempre acho que “se bobear é mais”. Voltei a ficar deitada no chão do banheiro com as pernas pra cima, esperando a pressão voltar.
Aprendi a chamar de crise de angústia, e não de problema psiquiátrico, assim não volto a me viciar em remédios. Eventualmente vomito com a luz do banheiro apagada, nem é enjoo, é só uma tristeza líquida, como se minha goela precisasse chorar junto com os olhos.
Cremes, muitos. Pra ruga, olheira, pálpebra caída, papada, manchas de sol, dar um viço, acalmar o rosto depois de tanto ácido. Pra lembrar que temos rosto, que esse rosto um dia ainda voltará a cumprimentar com dois beijinhos, a dar as caras, a disfarçar uma alegria insuportável que poderia ser vista como grosseria.
O marido da manicure, 54, a analista de uma amiga, 68, o primeiro jovem a morrer na fila, 22, a imagem daquele bebê chegando no hospital com oxigênio e a mãe dizendo: “Tira só um pouco porque ele quer a chupeta”.
Com um bom lápis preto, não é tão difícil fazer o delineado da Cleópatra.
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