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“A vacinação iniciou uma guerra geopolítica”, diz Boaventura de Sousa Santos

O coronavírus é a expressão das dificuldades e contradições de nosso tempo, e é com a pandemia que inauguramos, tardiamente, o século XXI. Essa visão, que permeia o pensamento do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, está esmiuçada no livro “O Futuro Começa Agora: Da Utopia à Pandemia” (Boitempo, 400 págs., R$ 77). Produzido no ano passado, antes da chegada da vacina, o livro foi escrito, nas palavras do autor, “entre o medo e a esperança”. Em entrevista ao Valor, Boaventura diz que o início da vacinação confirma sua abordagem de que a pandemia veio dar uma nova transparência e agravar as desigualdades no mundo. “O vírus é caótico, mas não democrático - basta ver como as taxas de letalidade variam não só de país para país, como também dentro de cada país consoante o rendimento e a condição social das pessoas.” Na sua opinião, a vacinação iniciou uma guerra geopolítica com várias dimensões que têm a ver, por um lado, com a medicina ocidental, dominada pelas grandes empresas multinacionais farmacêuticas, ou “big pharma”, que controlam a produção das vacinas e vendem, preferencialmente, para os países ricos da Europa e da América do Norte, escreve Maria da Paz Trefaut para o Valor, em texto publicado dia 26/3. Continua abaixo.


“Esta geopolítica assenta na ideia da superioridade científica em relação às vacinas produzidas em outros contextos: a chinesa, a russa, a cubana. Não está provado que as vacinas produzidas pela ‘big pharma’ sejam mais eficazes do que as outras. Pelo contrário. Estamos criando um apartheid mundial.”

A grande oportunidade da pandemia seria trazer mudanças políticas, sociais e comportamentais. Mas, por enquanto, tudo é uma incógnita. Ao pensar no amanhã, Boaventura apresenta três cenários para o período pós-pandêmico.

O primeiro é o negacionismo - “O modelo que tem dominado o governo brasileiro”. O segundo é o que ele chama de “gattopardo”(baseado no título italiano do romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, “O Leopardo”), ou fazer alterações para que nada mude no essencial.

O terceiro cenário seria uma resposta à oportunidade que o vírus nos dá de pensarmos numa alternativa ao modelo de desenvolvimento, não só econômico, mas também das formas de sociabilidade dominantes.

“Se é verdade que através do vírus a natureza nos está a dar algumas mensagens de que este modelo não pode continuar, seria a oportunidade para começarmos a pensar numa transição para outros modelos de produção e de consumo.” Ele destaca a necessidade de as economias começarem a diversificar sua matriz energética, usando mais fontes renováveis.

Ele diz que os centros comerciais vão ser zonas de risco e devem ser substituídos por pequeno comércio de proximidade ou por centros comerciais redimensionados para estarem mais próximos das comunidades. “A relação cidade/campo tem de ser mudada.”

Ele também prega a mudança nos hábitos de consumo. “Um computador, um celular, um relógio de pulso, que podem durar 10, 20 ou 30 anos, estão agora programados para durar muito pouco para que possamos continuar dependentes de novos consumos, com sobrecarga enorme para os recursos naturais, que serão cada vez mais escassos.”

O sociólogo qualifica como “surpreendente e estranho” o fato de Jair Bolsonaro continuar com 30% de aprovação. “Há uma base ideológica e conservadora muito forte que se mantém firme na defesa do presidente.” Ele também menciona as ações das redes sociais e o fato de a população brasileira ter dificuldade em vincular a má gestão da pandemia ao desempenho do presidente. “Seja por fatalismo ou pelas condições de vida, prevalece a ideia de considerar acidental o que se passa no Brasil, e não o resultado de uma política que ou é negligente ou é mesmo intencional no sentido de desproteger a saúde da população.”

No caso de Portugal, que reelegeu em janeiro o conservador Marcelo Rebelo de Sousa, o sociólogo diz que a vitória foi o reconhecimento do equilíbrio com que o presidente geriu o primeiro mandato. Além disso, diz que “os portugueses quiseram a continuidade de uma certa coesão política entre o governo e a presidência para que o país se concentre mais na luta contra a pandemia do que na luta política interna”.

Mas Portugal também deu muitos votos ao Chega, partido simpatizante do bolsonarismo. Ele insere isso no crescimento global da extrema-direita, “muito apoiado pelos setores do capital financeiro”, e como consequência de uma atitude antissistema feita de vários componentes. Entre eles, estão os setores minoritários que nunca concordaram nem com a descolonização (a saída dos portugueses das colônias na África e no Timor-Leste) nem com o 25 de Abril de 1974 (a Revolução dos Cravos).

No Brasil, em Portugal e no mundo, Boaventura diz que para o crescimento da extrema-direita contribuíram também as incertezas, o agravamento das desigualdades sociais, o fato de setores da população se sentirem abandonados pelas políticas públicas e terem medo de cair na pobreza absoluta ao ver a sua situação social cada vez mais precária.



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