A volta de Lula para a ribalta da política fez as peças do tabuleiro de 2022 se mexerem. O primeiro a sentir essa mudança foi o presidente Bolsonaro, que colocou até máscara e teve de trocar o ministro da Saúde, mais pelo discurso de São Bernardo do que pelas mais de 270 mil mortes causadas pela covid-19. Já a oposição de Centro ficou muito abalada pela decisão do STF e reagiu na linha do antipetismo. É natural que a maioria dos contrários ao PT reagisse negativamente, inclusive Ciro Gomes, que terá de conquistar boa parte da centro-esquerda. Passado o choque inicial, deveria vir o diagnóstico eleitoral. Neste ponto, uma coisa é clara: o principal adversário do Centro é Bolsonaro. Entender quem é seu oponente central e descobrir como enfrentá-lo são os dois passos estratégicos para quem quer entrar na disputa política. O posicionamento de Bolsonaro e do lulismo no jogo político está bem claro. Ainda há dúvidas sobre como Ciro Gomes vai se reposicionar. Mas a maior incógnita está no Centro oposicionista (em contraposição ao Centrão), que congrega vários partidos e candidatos com pretensões presidenciais, tem importantes governos estaduais e capitais em suas mãos, além de ter um suporte de importantes grupos sociais. É um cabedal político muito forte, mas que por ora está fragmentado e não consegue produzir um projeto eleitoral nítido, escreve Fernando Luiz Abrucio em texto publicado no Valor, dia 19/3. Continua abaixo.
O discurso contra a polarização gerada pelo bolsonarismo versus o lulismo serve para criar uma identidade, mas é claramente insuficiente para se vencer a eleição. Três razões embasam esse argumento. A primeira é que o jogo político da redemocratização tem se organizado de forma polarizada, no sentido estrito da ciência política: duas forças têm predominado na eleição presidencial, com pouco espaço para uma terceira via.
Na primeira eleição direta da redemocratização, houve uma grande dispersão no primeiro turno, particularmente porque os partidos estavam ainda se organizando e se posicionando frente à sociedade. Foi só depois do impeachment do presidente Collor que se estruturou o eixo polarizado do sistema político brasileiro. Assim, de 1994 a 2014, a disputa presidencial brasileira foi orientada pela competição entre PSDB e PT. Ou, nos termos do excelente livro de César Zucco e David Samuels (“Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil”), criou-se uma dicotomia entre petismo e antipetismo que estruturou as preferências dos eleitores por pelo menos 20 anos. Em todas as eleições presidenciais da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores esteve no segundo turno, perdendo em quatro ocasiões (1989, 1994, 1998 e 2018) e ganhando nas outras quatro vezes (2002, 2006, 2010 e 2014).
A força petista, bastante vinculada à liderança do ex-presidente Lula, é algo que tem levado os demais grupos políticos a lutar para ser o outro lado desse jogo. Seguindo essa lógica, o Centro disputa com Bolsonaro para ver quem será o adversário do petismo. Esse raciocínio foi esquecido por muitos analistas políticos e, especialmente, por lideranças centristas de oposição. Talvez estivessem pensando que tal fator não apareceria mais em 2022, pois o antipetismo cresceria de tal forma que a escolha seria de um nome não-petista para competir com Bolsonaro.
E aqui entra a segunda razão pela qual o Centro tem de ir além da narrativa da polarização entre PT e Bolsonaro: o principal eixo da eleição de 2022 será o antibolsonarismo, do mesmo modo que a disputa presidencial de 2018 teve no antipetismo sua peça-chave. A crise atual é imensa, mas claro que o governo pode se recuperar às vésperas do pleito. Só que o cenário político aparenta ter mais pedras e espinhos no caminho bolsonarista do que esperança de uma reeleição tranquila.
A lista de fatos problemáticos para o governo é extensa. A crise da pandemia terá seus piores momentos nos próximos três meses, quando a cobertura vacinal será muito baixa e não haverá ainda vacinas para um bom contingente da população. As mortes se multiplicarão e serão cada vez mais dramáticas, como foram em Manaus. Num cenário como esse, além da revolta de boa parte da população com o fracasso da política de saúde, não há a menor chance de a economia andar no primeiro semestre. O auxilio emergencial agora será bem menor e a popularidade obtida no ano passado não se repetirá.
Nos próximos meses, incluindo o início do segundo semestre, Bolsonaro perderá muita popularidade. Não se sabe ainda qual é o seu piso, mas se chegar mais próximo dos 20%, o Centrão cobrará caro para evitar o impeachment ou a transformação do presidente num “lame duck” (pato manco), sem autoridade até com quem lhe serve o café. Esse preço causará mais danos sobre a imagem presidencial, bem como uma possível piora na parte fiscal. Tudo isso num contexto em que os juros poderão subir para se evitar a inflação, em que o dólar não vai cair porque o descrédito do Brasil só acabará com uma mudança radical desse governo (algo difícil de acontecer) ou quando assumir o próximo.
O aumento da cobertura vacinal e o impulso econômico vindo de fora poderiam ser dois empurrões para a recuperação econômica brasileira e, com isso, o presidente poderia subir novamente nos indicadores de popularidade. É uma hipótese possível, mas que ainda terá que competir com vários escândalos envolvendo a família Bolsonaro e que vão assombrar o Planalto até o fim do mandato. Soma-se a isso o fracasso em outras áreas de políticas públicas, como educação, meio ambiente e garantia de direitos humanos nas questões de gênero e raça, para não falar do sepultamento de qualquer política anticorrupção.
Todos esses fatos tendem a levar um grande contingente de eleitores a não votar em Bolsonaro, mesmo que ocorra alguma bonança econômica, até porque esta será suave e sem as proporções de um Plano Real ou do desempenho do segundo governo Lula. Neste sentido, uma eventual reeleição de Bolsonaro tenderia a ser mais parecida com a de Dilma, isto é, de alguém que ganha com uma diferença ínfima e que teria uma altíssima rejeição, inclusive de grupos com forte capacidade de mobilização. Uma vitória assim é a antessala para a ingovernabilidade, como já vimos por duas vezes desde a redemocratização.
O cenário mais provável para 2022, portanto, é de um peso enorme para o discurso antibolsonarista. Isso não impede Bolsonaro de chegar ao segundo turno, do mesmo modo que o PT foi para a disputa final em 2018 quando foi o auge do antipetismo. Mas, nesta situação, Bolsonaro e suas ideias se transformam no espantalho a ser batido. Quem percebeu isso? Lula, muito mais do que o PT, e num só discurso se colocou como mais antibolsonarista do que o Centro em dois anos de mandato. Ao fazer esse movimento, o ex-presidente tornou-se o líder mais apto a conquistar o eleitorado mais de centro-esquerda e os eleitores das classes D e E. Se o centrismo de oposição não radicalizar seu viés contrário ao presidente da República, inclusive encampando o impeachment ou atuando para criar CPIs, perderá o trem da história.
Uma ressalva poderia ser feita pela oposição de Centro: contava-se com uma candidatura petista que não fosse Lula. Na verdade, não há ainda nem a certeza de que o ex-presidente poderá ser candidato, visto que o STF é a instituição menos previsível da democracia brasileira. O que poderia ser um alento para os antipetistas é, antes de mais nada, miopia, uma vez que, sendo candidato ou não, Lula terá muito mais influência do que na eleição de 2018, seja porque o antipetismo será menor e a história da “prisão injusta” vai conquistar mais gente agora, seja porque Bolsonaro estará em declínio.
Esta é a terceira razão que deveria levar o Centro a criar uma estratégia mais consistente do que o mero discurso da polarização: sendo ou não candidato, a influência de Lula tende a ser capaz de garantir mais de 30% dos votos do primeiro turno, se não mais - afinal, Fernando Haddad, nome nacionalmente pouco conhecido, com Lula preso e no auge do antipetismo, teve 29,28% na votação inicial. Em outras palavras: é muito difícil que um representante do lulismo não esteja no segundo turno. O outro oponente sairá da luta entre Bolsonaro e seus outros adversários.
Encurralar Bolsonaro e lhe fazer uma dura oposição, que torne claro o seu antibolsonarismo para a população, é o melhor caminho para o Centro ganhar um lugar no segundo turno da eleição presidencial. Para tanto, é preciso começar agora esta tarefa, e não deixar para o ano que vem, marcando por um longo tempo uma posição, de modo a torná-la eleitoralmente consistente. Poderia começar por defender uma visão favorável ao impeachment ou a uma responsabilização pública mais forte do presidente. Quem estiver nitidamente com a maioria do povo nos próximos meses, que serão os piores da pandemia, poderá ser recompensado em termos de apoio político.
Mas essa atuação centrista deve ser precedida por uma proposta alternativa de políticas públicas e, sobretudo, da união em torno de uma posição antibolsonarista, criando uma identidade mais relevante do que a narrativa da polarização. Muitos do Centro já falam num candidato único, que seria a solução política mais efetiva, porém, esse esforço só fará sentido para se chegar ao segundo turno se conseguirem destronar Bolsonaro da posição de adversário preferencial do PT.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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