Christian Dunker - conhecido psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP e presença na mídia - organiza de forma criativa essa abrangente história da depressão, ao organizá-la como uma biografia com episódios intitulados de forma sugestiva, que atiçam a curiosidade do leitor. Inicia a biografia com os nobres “antecedentes familiares” da depressão: a melancolia e a tristeza (acídia), descritos por Aristóteles e por monges medievais, bem como por escritores como Richard Burton (“A Anatomia da Melancolia”, de 1621). O “nascimento” da depressão se dá em 1785, quando William Cullen retira a melancolia de suas origens ilustres e a inscreve no domínio da medicina, transformando-a numa das “doenças dos nervos”. O aparecimento da “depressão” coincide com a instalação do romantismo nas artes, o que dá oportunidade a Dunker de estabelecer aproximações entre o transtorno e vários artistas, como Turner, Edvard Munch, Edward Hopper, Lewis Carroll, Samuel Beckett e Van Gogh, escreve Sérgio Telles em ótima resenha sobre o livro de Dunker. Continua a seguir.
Sua “infância infeliz” se caracteriza pelo período em que
não tinha uma existência própria e era apenas um coadjuvante dos grandes
quadros de sofrimento mental. Dentro do referencial freudiano de “Inibição,
Sintoma e Angústia”, ela continuou sendo a “irmã do meio”, entre os “sintomas
verdadeiros e a caçula malcriada chamada Angústia”. Apesar de ter recebido
grande prestígio na obra de Melanie Klein, apenas a partir dos anos 1950 passou
a receber atenção e cuidados específicos.
É quando ocorre o “rapto da depressão pela nova
psiquiatria”. Os aportes crescentes e complexos da psicanálise ao acervo da
depressão foram deslocados por outras narrativas criadas pelas mudanças nas
relações sociais concernentes ao trabalho e à organização econômica (guerras,
crises financeiras etc.).
Concomitantemente, surgiram os novos antidepressivos, dando
relevo máximo à depressão no interior da clínica psiquiátrica, quando ela passa
a ser considerada a expressão mais frequente de transtorno psíquico individual
e social. Entretanto, as promessas das neurociências e as explicações sobre os
neurotransmissores progressivamente perderam força, gerando grande frustração.
Assiste-se assim à “ascensão e queda da rainha depressiva”.
O conflito interno - central para a psicanálise - perde a importância e é
transferida para os conflitos com a realidade externa. Supostamente a depressão
viria de fora, de problemas neuroendócrinos cerebrais ou de pressões econômicas
ou socioculturais, isentando o sujeito de qualquer participação pessoal em sua
condição depressiva.
As terapias cognitivas comportamentais ensinam técnicas para
controlar o pensamento. Se, no século XIX, a moralidade pública e econômica
exigia contenção, restrição e poupança, o neoliberalismo ordena consumir, gozar
e gastar, determinação que o deprimido não acata, deixando-o isolado
socialmente.
Aos poucos, a depressão perde sua posição de “rainha” e fica
relativamente normalizada, representando a forma mais frequente e socialmente
tolerada do sofrimento psíquico, da mesma forma como a neurose antes ocupava
esse mesmo lugar. É interessante notar que a potência dos antidepressivos
parece decrescer à medida que as patentes caducam e os preços caem, o que
evidenciaria a mão da indústria farmacêutica.
Apoiando-se na diferença estabelecida por Walter Benjamin
entre vivência (“Erlebnis”) e experiência (“Erfahrung”), Dunker adota um estilo
mais ensaístico em “Depressão em Tempos de Felicidade Compulsória”, discorrendo
de forma crítica e divertida sobre algumas das formas muito familiares de
depressões compartilhadas no dia a dia, a começar por aquela desencadeada pela
quarentena imposta pela covid.
Aborda então a “depressão do fim de ano” (parente da “mania
da sexta-feira”, da “angústia do domingo” e da “melancolia da segunda”) e a
“depressão política”.
O leitor se beneficiará com a vasta gama de informações
sobre aspectos históricos, médicos, psiquiátricos, psicanalíticos e
socioculturais da depressão. Dunker também mostra as dificuldades no
estabelecimento do diagnóstico das doenças mentais, que mal se adaptam ao
conceito de doença física em medicina, dado que lhes faltam marcadores
biológicos e a aferição dos sintomas depende dos relatos dos pacientes, da
observação subjetiva de suas funções psíquicas ou de seus comportamentos
objetivos.
As tentativas de deixar mais objetivas as descrições
diagnósticas em psiquiatria tiveram relativo sucesso, o que não impediu que a
última versão (a quinta) do “DSM - Manual de Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais”, feito pela Associação Americana de Psiquiatria e usado
globalmente, tenha recebido unânimes críticas e censuras pela criação excessiva
de novos transtornos, dando um caráter patológico a circunstâncias normais
próprias da vida.
Uma Biografia da Depressão
Christian Dunker Paidós 240 págs., R$ 46,90
Sérgio Telles é psicanalista e escritor, autor de vários
livros, entre eles “Posto de Observação” (Editora Blucher, 2017)
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