A elegibilidade de Lula rompeu a inércia da morte no país. Uma espécie de nuvem de alienação, com seus miasmas de ignorância literalmente virulenta, parecia turvar as consciências. Estávamos, desgraçadamente, nos acostumando a noticiar sucessivos recordes de corpos, enquanto o Fanfarrão Minésio que ocupa o Palácio do Planalto se dedicava a seus discursos homicidas, com convite ao suicídio desassistido. Uma parte da classe política se dedicava às exclamações do horror, impotente para ir além. A outra está a serviço do Planalto, como ocorre sempre, em qualquer governo. Lula fez o seu discurso como potencial candidato em 2022 e operou de imediato uma mudança em Brasília: meteu uma máscara na cara de Bolsonaro e de seus ministros, já habituados ao ritual diário de genuflexão ao vírus. É importante que tenhamos isso claro —e vai entrar para a história: o presidente que aí está é o primeiro político que elegeu a doença e a morte como aliadas, escreve Reinaldo Azevedo na Folha de S. Paul, em sua coluna publicada na sexta, 12/3. Continua a seguir.
Reconheça-se o prodígio: Bolsonaro conseguiu emprestar uma roupagem populista ao negacionismo, exercendo-o em nome dos supostos interesses da maioria. Afinal, medidas restritivas para tentar impedir uma tragédia de proporções bíblicas implicam perdas. Faz terrorismo econômico e empurra as pessoas para o túmulo, o sistema de saúde para o colapso, e o Brasil para o abismo.
Muita coisa haverá ainda de ser escrita para demonstrar como chegamos aqui. Sim, é verdade: não estivesse a corrupção entranhada no país; não fossem rotineiros os caminhos paralelos para fazer negócios com entes do Estado; não estivesse o aparelho estatal infiltrado por interesses corporativos e de classe; não fossem as marcas, algumas quase atávicas, do nosso atraso, e não teria havido uma Operação Lava Jato.
Montar, no entanto, sob o pretexto de combater a corrupção, um estado paralelo para tomar o poder de assalto —corroendo de maneira consciente e determinada as bases do sistema de representação política e do devido processo legal— é tarefa que caracteriza mais uma organização criminosa do que uma Liga da Justiça, como foram caracterizados os bravos integrantes da Lava Jato, sob o óbvio e ilegal comando de um então juiz.
O Brasil dispõe de uma Constituição, de um Código de Processo Penal, de uma Lei Orgânica da Magistratura. Ou bem se combatem os malfeitos segundo essas balizas, ou ficamos sujeitos a vocações messiânicas —e a palavra aqui, infelizmente, assume mais de um sentido por força dos desatinos em que mergulhamos.
Não é sem alguma amargura que escrevo que o reconhecimento da suspeição de Sergio Moro e a constatação de que não era ele o juiz natural das ações penais que contra Lula corriam na 13ª Vara Federal de Curitiba são questões que não atinem apenas ao direito. Também dizem respeito ao caráter. Ou bem assentimentos com a "ilegalidade em nome da lei" ou bem reconhecemos o que está escancarado nos autos.
Volto ao começo. É evidente que a (re)emergência de Lula no cenário eleitoral desestruturou o antigo status. Bolsonaro se dedicava a manter unidos os seus extremistas com renovadas agressões à vida, à ciência e à lógica. A pletora de candidatos de centro e centro-direita estava aí, à espera de algum autor. À esquerda e centro-esquerda, havia uma certeza: Ciro Gomes e o ungido por Lula no PT não caminhariam juntos.
O quadro mudou. Bolsonaro não tem saída a não ser moderar o seu discurso. A conversa de que Lula é seu antípoda ideal é tão verdadeira como a eficácia da cloroquina no tratamento da Covid-19. A postulação de Ciro Gomes terá de voltar os olhos, e isto já vinha acontecendo, para o centro e para a centro-direita. O interesse nessa conversa é mútuo.
São efeitos virtuosos, e eles não me surpreendem. O desastre em curso —e isso inclui os quase 300 mil mortos— é consequência do assalto à política realizado pelo Papol, o Partido da Polícia, ente de razão criado por setores do MPF, do Judiciário, da PF e, infelizmente, da imprensa.
Que triunfe a lei. Se isso implicar a elegibilidade de Lula, deixem a escolha para o eleitor. Ninguém será obrigado a votar nele.
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