“Com a nossa velocidade de vacinação, não há perspectiva de crescimento”, diz José Júlio Senna, do Ibre
Para o economista José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre), o contraste entre as perspectivas positivas da economia americana e as negativas da brasileira podem piorar um cenário que já é nebuloso para o país. Com os capitais dirigindo-se para a maior economia do planeta e o real se desvalorizando, as perspectivas para a inflação e a taxa Selic são ruins. Entre as causas do descolamento estão não só o lento avanço da vacinação, como problemas de mais longo prazo, como o desequilíbrio fiscal e a produtividade estagnada. A recente elevação da taxa de juros pelo Copom expressa a percepção de que, com o ambiente econômico se deteriorando mais rapidamente do que era previsto, existe o risco de que o Banco Central perca o controle das expectativas de inflação, escreve Diego Viana em 26/3, no Valor, na abertura da entrevista com Senna, que continua a seguir.
Valor: A Selic subiu mais do que o mercado esperava e o BC adiantou que haverá mais altas. A inflação voltou para ficar?
José Júlio Senna: A velocidade de deterioração do ambiente econômico foi espantosa, muito mais rápida do que se esperava. Não é de surpreender que as expectativas tenham se ajustado mais lentamente. A partir de agosto e setembro, a inflação começou a surpreender para cima, e os analistas de mercado erravam redondamente, mês a mês. Primeiro falava-se em alta de 25 pontos da Selic, depois consolidou-se a expectativa de 50 pontos. Não deu tempo de estimarem 75 pontos.
Valor: Além da inflação brasileira, o cenário externo pesa para a volta das altas da Selic?
Senna: Sempre que há uma alteração importante no mercado de renda fixa nos EUA, ela se propaga para outros países. O aumento do juro real nos EUA certamente afeta os juros reais em outras economias, por causa da integração financeira do mundo. Quando os juros mudam no mercado financeiro central do planeta, os dos outros lugares também mudam.
Valor: Com os EUA voltando a crescer, a tendência é mais aumento dos juros no Brasil?
Senna: A alta de juros nos EUA passa a mensagem de que a economia americana está se fortalecendo. O Fed fez uma revisão expressiva do crescimento americano previsto para este ano, que passou de 4% para 6,5%, aproximadamente. A inflação também foi revista para cima. A variável-chave para os mercados de câmbio é o diferencial de crescimento. Muita gente se atém ao diferencial de taxas de juros, mas isso é incompleto. Tudo melhora quando um país tem perspectiva de crescimento mais forte, e isso se reflete nos juros. Já o Brasil tem sofrido mais com depreciações cambiais do que economias semelhantes, em grande parte por causa da mediocridade do crescimento.
Valor: Na expectativa para este ano?
Senna: Não apenas. Chamo atenção para três aspectos. No longo prazo, o desempenho da produtividade, que é medíocre há quatro décadas. Depois, temos o desajuste fiscal. Por fim, no curto prazo, a velocidade da vacinação. Virou quase um clichê dizer que, hoje, o melhor instrumento de política econômica é a vacina. E é mesmo. Mas, com a nossa velocidade de vacinação, não há perspectiva de crescimento. E o real fica muito prejudicado.
Valor: A alta do retorno sobre títulos longos reflete a sanção ao pacote de auxílio nos EUA?
Senna: O pacote e a vacinação melhoram a perspectiva de crescimento americano. Os juros dos títulos de 10 e 30 anos sobem porque há um sinal de que os capitais vão tomar o rumo dos EUA. Com isso, investidores passam a ver um país como o Brasil como mais arriscado. A alta dos juros lá fora mexe com a percepção de risco-país, e isso atrapalha o nosso nível de juros, a bolsa, o câmbio. A atratividade maior leva os fluxos de capitais a migrar para os EUA, em detrimento de mercados emergentes, Brasil em particular.
Valor: A disparada da inflação no Brasil é temporária ou há um fundamento de longo prazo?
Senna: Essa é a questão fundamental. Quando vemos um processo inflacionário ganhando força e o BC reagindo, a primeira coisa que perguntamos é: será que a demanda está forte? Mas não podemos falar de um grande impulso de demanda, em termos agregados, no Brasil. Houve um componente de demanda, que tem a ver com a pandemia, em que as famílias mudaram seu consumo, abdicando de certos serviços e recorrendo mais a determinados bens, sobretudo os que são consumidos em casa. Houve um claro efeito de substituição. Isso aconteceu no mundo inteiro. A capacidade de oferta não conseguiu reagir ao aumento de demanda. O auxílio emergencial também contribuiu um pouco, porque atingiu pessoas com nível de renda mais baixo, que têm sempre necessidades de consumo que estão retidas.
Valor: Esses são fenômenos que marcaram o ano passado. Não estão superados?
Senna: De fato, não temos mais um problema de demanda. A situação brasileira hoje pode ser entendida mais como fruto de choques. Por exemplo, choques agrícolas, porque certas mercadorias tiveram seus preços elevados internacionalmente, como soja, milho, minério de ferro, cobre. E com a integração da economia mundial, muita matéria-prima e muitos bens intermediários vêm da Ásia. A pandemia interrompeu a produção em muitos lugares, atrasando carregamentos e criando escassez.
Valor: Esse também é um fenômeno do primeiro semestre do ano passado.
Senna: Mas os circuitos ainda não se restabeleceram plenamente. Outro ponto é que na primeira fase aguda da pandemia, em março e abril do ano passado, a demanda desabou no mundo e o preço de muitas coisas foi para o chão. Com a soma de todos esses fatores, produziu-se a alta de preços atual, que é grande em comparação com uma base muito deprimida. Na medição de preços ao produtor, nos últimos 12 meses as matérias-primas subiram 75%. Os bens intermediários, 30%. E estamos com uma inflação ao consumidor de 3%. Choques são fenômenos transitórios, mas isso não tem acontecido. Os choques não estão se dissipando na velocidade esperada.
Valor: Qual é o papel do câmbio?
Senna: O índice de commodities do Brasil, calculado pelo BC, subiu 10% em janeiro e 7% em fevereiro, em reais. Boa parte disso se explica pela depreciação cambial, que tem a ver com o risco-país, que, por sua vez, tem a ver com o crescimento medíocre de longo prazo, o desequilíbrio fiscal, que é uma ameaça inibidora de investimentos, e a vacinação, já que sem ela a economia não vai deslanchar. Investidores, de modo geral, não gostam de aplicar recursos em lugares que não crescem.
Valor: A alta mundial das commodities não deveria estar valorizando o real?
Senna: Tradicionalmente, quando os preços em dólar de commodities sobem, as moedas de países produtores se fortalecem. Mas, no Brasil, agora, isso não está acontecendo. As commodities estão subindo e a moeda continua se depreciando. Isso tem a ver com a percepção do risco, o crescimento medíocre e agora, mais recentemente, pela percepção de um traço populista na política econômica. E agora a PEC emergencial estabeleceu gatilhos, mas quando eles forem disparados, o objetivo será compensar o aumento de gastos extraordinários durante a calamidade. Não é ajuste líquido. Não há nada que demonstre um apetite para fazer ajuste fiscal de verdade. Isso tudo mexe com o câmbio, a ponto de inverter aquela relação entre commodities e câmbio.
Valor: A subida da Selic pode expressar também uma tentativa de combater a inflação por meio da apreciação do câmbio?
Senna: Nenhuma chance. Isso está na cabeça de muita gente, talvez porque já foi amplamente usado no passado. Mas, no caso atual, não tem isso. O Banco Central expressou surpresa com a duração dos choques, que realmente não estão passando. Vejo especulações de que o BC reagiu ao câmbio, mas o que aconteceu foi que as circunstâncias o levaram a perceber que, do jeito que as coisas estão andando, as perspectivas para a inflação não estão nada boas. O grande risco é perder o controle das expectativas de inflação. Na minha cabeça, a alta dos juros foi exclusivamente por isso.
Valor: Nos EUA, o presidente do Fed, Jerome Powell, disse que não se incomodará quando a inflação chegar a 2,4% neste ano.
Senna: Sim, porque é um efeito estatístico e ele busca deixar isso claro para o público. Ele tem o compromisso de não mexer nos juros enquanto a inflação não passar de 2%. Mas é passar de verdade, de maneira sustentada. No Brasil, a partir de maio o IPCA em 12 meses vai superar 7,5%. Vai durar entre três e cinco meses, porque reflete a saída de meses, no ano passado, em que a inflação foi muito baixa. É um efeito estatístico, que não deveria nos incomodar em condições normais. Só que as condições não estão normais!
Valor: A alta dos retornos também pode refletir a perspectiva de inflação nos EUA?
Senna: Lawrence Summers chegou a dizer que poderia haver um processo inflacionário como há muitos anos não víamos. Ele se referia aos anos 1960 e 1970. Aquele foi o auge do keynesianismo nos EUA, com John Kennedy, corte de impostos importantes, aumento de gastos da Guerra do Vietnã, o programa chamado “Great Society”, uma espécie de guerra à pobreza do presidente Lyndon Johnson. As taxas de crescimento eram fortíssimas, mas a inflação começou a subir. Chegou a 13% no final da década de 70. Ela não apareceu do nada, teve uma década e meia de eventos. Agora, a expectativa de inflação nos EUA tem a ver com o pacote de resgate. Mas ele termina. Depois vai ter outro, de recuperação, com investimento de infraestrutura. Mas é menos prejudicial para o aumento da demanda, porque é financiado por impostos. Daí a ter inflação persistentemente mais alta é um exagero. No período que citei, houve uma sequência de eventos.
Valor: Um ponto que parece estar sendo afetado é a concentração de renda.
Senna: Sim, o aumento da concentração de renda é inibidor do consumo. Fica mais renda na mão das pessoas mais ricas, que consomem menos. Por isso, também tem mais poupança. A pandemia tem produzido efeitos bastante concentradores de renda, mas não sabemos se são definitivos. Pelo menos por um tempo, a pandemia deixa marcas que acentuam tendências anteriores. E sua principal característica, do ponto de vista econômico, é o aumento da desconfiança e da incerteza. É um fator paralisante, que inibe consumo, investimento, contratação de mão de obra. Quando a situação se normalizar, volta para um estado que foi definido por mudanças de cunho estrutural. Existe uma chance boa de que o mundo pós-pandemia seja parecido com o que era antes da pandemia, pelo menos nos países desenvolvidos.
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