O analfabetismo e o alienamento político no Brasil nos últimos anos foram substituídos ou rivalizados por um tipo de comportamento orgulhoso que opera por meio de comandos simples, toscos, sem vergonha do próprio desconhecimento. A ignorância não se resume à falta de saber. É insensibilidade, truculência, brutalidade, desumanidade. Está no poder, nas ruas e nas redes sociais, onde conseguiu transformar o verbo compartilhar em informação falsa e ameaça à vida. Em 1999, nos tempos de deputado do baixo clero, Jair Bolsonaro, em sua fixação pela morte e pelo autoritarismo, defendeu um novo golpe militar e uma guerra civil para matar “uns 30 mil”, “começando com [o então presidente] FHC”. Durante a atual pandemia, em que o adjetivo de genocida vai grudando na imagem do ocupante do Planalto, os óbitos pelo coronavírus passaram dos 300 mil, depois de um ano de descaso, escreve Cristian Klein em artigo publicado no Valor na sexta, 26/3. Continua a seguir.
Devido às subnotificações, o massacre pode ser bem maior e já alcançaria 400 mil mortos, segundo dados do Observatório Covid-19, publicados ontem pelo Valor. Nem na África inteira, continente com quase 60 países e indicadores socioeconômicos lamentáveis, a pandemia fez tantos estragos. Lá, morreram 111 mil pessoas - um terço do que aqui - para uma população de 1,36 bilhão de habitantes, seis vezes a brasileira. Ainda que também haja um alto grau de subnotificação do outro lado do oceano, a comparação não leva ao engano.
Terceiro mundo, se for. Alarme no exterior. O Brasil, que já se esforçava em ser um pária da comunidade internacional, tornou-se epicentro da pandemia, um criadouro de variantes e cepas do vírus letal. Falta liderança e boa cultura política. Até perder força, a ponto de exaurir as energias do país, a corrente de opinião que sustenta o presidente obrigará o brasileiro a se arrepender e a reaprender.
No Congresso, reflexo interessado da sociedade, a cartilha do pragmatismo tardio ensina que é hora de Lira virar a chave do governismo. Bolsonaro está na mira do presidente da Câmara que, talvez mais rápido do que o imaginado, insinua apeá-lo do poder. O aviso de que “tudo tem limite” e de que está apertando o “sinal amarelo” mostra que o líder do Centrão começa a reunir as condições que ainda careciam ao antecessor Rodrigo Maia.
Numa entrevista em fins de janeiro, às vésperas de ser eleito ao comando da Câmara sob o patrocínio de Bolsonaro, Lira analisava a possibilidade com realismo lapidar: “O impeachment é processo político. Nenhum presidente pauta um impeachment; um impeachment pauta um presidente. Se tivermos inflação de 200%, protestos nas ruas, caos social, isso vem naturalmente”.
Para sorte de Bolsonaro não há no radar manifestações de rua. Seus críticos não estão dispostos a abusar da mesma insanidade de seus apoiadores, contumazes aglomeradores em meio à pandemia. Será uma novidade se um processo de impedimento for adiante sem as ruas. Mas quem disse que a ascensão do ex-capitão também não se deu de maneira anômala? Quase tudo que diz respeito a Bolsonaro é fora da curva, anormal.
Crível ou não, a ameaça de Lira causou mais medo do que as peitadas de Maia. Essas eram respondidas prontamente com a campanha de ataques massivos disparados pelo gabinete do ódio bolsonarista. A reação agora beirou o silêncio. Nunca o temor do impeachment foi tão presente no Planalto. Se faltam protestos de anônimos a pé, a raiva e a indignação vêm das janelas com panelaços, das pesquisas com queda de popularidade, das propagandas negativas com qualidade de publicidade profissional que têm se multiplicado, conforme o consenso anti-Bolsonaro vai se formando.
O jogo mudou. Se não há ruas, há o fantasma da entrada em cena de Lula, o maior adversário político, e dos maiores agentes econômicos, na carta aberta assinada por próceres do PIB nacional, exigindo correções de rumo. O desembarque das elites formadas por economistas, empresários e banqueiros é que acendeu o sinal amarelo. Lira só apertará o botão atômico quando (quase) todo mundo estiver de acordo.
O apoio da oposição de esquerda, especialmente o PT, ao impeachment, contudo, não é evidente. Eleitoralmente, deixar Bolsonaro sangrar até o ano que vem pode ser mais producente do que ver o tabuleiro bagunçado novamente, com o surgimento ao centro e à direita de uma alternativa mais competitiva que o bolsonarismo.
A quem tem a esperança dessa terceira via falta o nome. A volta de Lula desanimou a concorrência, sobretudo pela sua anunciada e astuta intenção de buscar ex-aliados entre os partidos do Centrão. O apresentador Luciano Huck, por exemplo, estaria hoje mais inclinado a se tornar o novo rei das tardes e noites do domingo da TV Globo, no lugar de Faustão, do que se aventurar a uma empreitada política de moer reputações. Dois políticos do Rio que estiveram recentemente com Huck, segundo apurou a coluna, saíram com o sentimento de que ele não será candidato. Como estabelece a lei, ou máxima, de Vanderlei Luxemburgo: “O medo de perder tira a vontade de ganhar”.
Bolsonaro tem vontade até demais de vencer, passando por cima de amigos, inimigos e, se pudesse, da Constituição. Mas vai experimentando, cada vez mais, o medo. Foi assim quando se abraçou ao Centrão, depois da prisão do amigo Fabrício Queiroz, operador do esquema de “rachadinhas” do filho Flávio Bolsonaro, segundo denúncia do MP fluminense. Foi assim quando se viu forçado a tirar Pazuello do Ministério da Saúde, a usar máscaras e a criar um comitê de combate à covid - um ano depois do início da pandemia.
A essas pressões se juntam agora a cobrança pela exoneração do chanceler Ernesto Araújo, a pedido de Lira, e do assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, ambos da ala mais ideológica e radical do bolsonarismo. A saída de Martins é exigência do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que considerou inaceitável o gesto racista e obsceno feito às suas costas pelo assessor, enquanto falava numa sessão da Casa.
Antes de qualquer impeachment, o Congresso reserva a Bolsonaro o papel que ele sempre dizia temer como presidente: o de pulha.
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