Pular para o conteúdo principal

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo

Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergueu-se um tsunami contra ele. A carreira foi por água abaixo. Saiu de um filme, de uma série e perdeu a agência que o representava. Tudo o que aparentemente ele disse ou fez é terrível. Mas não foi denunciado judicialmente. Muito menos, julgado. E daí? Na internet, cancela-se. E se mais tarde for comprovado que ele não é autor dos textos, que não é realmente culpado? Depois de perder tudo, questiona Walcyr Carrasco em artigo publicado na edição da Veja desta semana. Continua a seguir.


Woody Allen, até então um cineasta considerado genial, está sendo cancelado, embora as suas acusações de abuso não tenham sido provadas na Justiça. O próprio Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, é suspeito de pedofilia. Sempre acreditei que a obra transcende o autor. Mas o cancelamento é a destruição de carreiras, legados e também de vidas. Vi no YouTube uma belíssima entrevista de Cunha Jr. para o Metrópolis. Conversou com Guilherme Terreri Pereira, professor, ator, youtuber e muito conhecido na internet como a drag Rita von Hunty. Genial, de opiniões intelectualmente sólidas. Guilherme falou em uma nova inquisição. Onde, como no passado, as pessoas não têm direito à defesa. Não é só questão de sofrer com a opinião alheia. Karol Conká perdeu seguidores, shows… arrependida, tenta refazer a imagem. Conseguirá?

Já tive contato com esse ódio através de uma personagem. Durante a novela Alma Gêmea, exigiam por todos os meios que castigasse a vilã Cristina (Flávia Alessandra). Parentes me pressionavam! No último capítulo o próprio diabo saiu do espelho e levou Cristina. Muitos amigos reclamaram, dizendo que tinha sido “pouco”. Imagino toda essa pressão contra alguém. É assustador. O cancelamento é uma nova expressão do moralismo, na qual o mundo é dividido entre bom e mau, entre certo e errado. Não importa se a causa parece progressista, liberal. Cancelar é contribuir com uma visão autoritária da sociedade. Assim como religiosos enviam pecadores para o inferno, vão os cancelados para as profundezas da internet.

Eu acredito na transformação. A vida é um aprendizado. Ninguém é tão perfeito que não possa ser cancelado. E se for você?



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe