Octogenário afetado pela demência já não reconhece as pessoas ao seu redor ou mesmo o apartamento onde mora. Seus dias são cada vez mais confusos, como se ele estivesse preso a uma realidade estranha. Até o relógio, que o idoso nunca sabe onde deixou, parece querer enganá-lo. Quando pensa ter sido chamado na cozinha para tomar o café da manhã porque ainda está de pijama, já é hora do jantar. E ele nem se lembra do que aconteceu naquele dia. Acompanhar o estrago da demência, da perspectiva de quem se sente o tempo todo desorientado, é o que torna “Meu Pai” uma obra humana e desconcertante. Indicado a seis prêmios Oscar, incluindo o de melhor filme e o de melhor ator, com Anthony Hopkins, o drama é inspirado no que o francês Florian Zeller testemunhou em família. Nos anos 1990, sua avó perdeu progressivamente as capacidades cognitivas, principalmente a memória, resenha Elaine Guerini no Valor, em 26/3. Continua abaixo.
“A ideia é colocar o espectador nesse labirinto, no qual ele terá de lidar com as contradições das situações apresentadas e não entenderá exatamente o que está acontecendo”, diz Florian Zeller, diretor e roteirista do filme previsto para estrear no Brasil em 8 de abril, dependendo da reabertura dos cinemas. “Temos uma espécie de quebra-cabeça. Você pode brincar com as peças, mas nunca vai conseguir completá-lo. Fica sempre faltando uma peça, o que é de propósito.”
Para que a plateia se sinta perdida, assim como o protagonista (Anthony, como o ator), a câmera mostra só o que ele vê, na maior parte do tempo. É como se o público estivesse na cabeça do personagem, quando ele passa a não reconhecer lugares ou pessoas. Como a filha, Anne, que é interpretada por Olivia Colman. Pelo menos até o idoso passar a ver outra mulher na sua frente (interpretada por Olivia Williams), que jura ser sua filha.
“Inicialmente, o filme é bastante realista, a ponto de ninguém questionar o que está vendo na tela”, diz Zeller, durante evento on-line realizado no último Festival de Toronto (Tiff), que teve cobertura do Valor. “Pouco depois, a mesma situação é apresentada de outra maneira, em discordância com o que foi visto antes, o que deixa a plateia mais ativa. Ela não simplesmente acompanha uma história que é contada, sendo parte da narrativa.”
No começo da trama, Anthony, um engenheiro aposentado que prefere morar sozinho, ainda tem dias bons, quando reconhece o seu espaço, os seus móveis e a sua filha. Ao visitar o pai, Anne, preocupada com a perda contínua de suas funções cerebrais, insiste ter chegado o momento de contratar uma cuidadora, algo que ele não aceita.
Conforme a ação avança, o idoso passa a enfrentar dias ruins. Para começar, ele não entende o que um homem desconhecido está fazendo no seu apartamento. O sujeito, que se comporta como se fosse o seu genro, Paul (vivido por Mark Gattis), diz ser o dono da casa e afirma estar esperando Anne voltar das compras, para o casal preparar o jantar.
O problema é que Anthony só se recorda de a filha ter dito no último encontro que estava divorciada do marido e que trocaria Londres por Paris, por ter se apaixonado por um francês. Daí a necessidade de uma cuidadora, por Anne estar de malas prontas para deixar o país. Aos olhos do idoso, a nova situação simplesmente não se encaixa, o que permite a Hopkins expressar toda a frustração, a raiva e, mais tarde, o desespero de quem não sabe mais em quem acreditar. Ele desconfia da própria mente.
“Foi fácil para mim interpretá-lo porque o meu cérebro está velho também. Velho o suficiente para entender”, afirma Anthony Hopkins, que também participou do evento do Tiff. “Tenho a mesma idade do personagem. Não que eu esteja com medo. Ainda estou forte e me sinto em forma”, completa o ator britânico, de 83 anos.
“Mas eu sinto a mesma melancolia. O que me pegou foi a luz no nosso pequeno set de filmagem, no norte de Londres. Aquelas tardes horríveis de sol forte em uma rua suburbana, onde você ouve um carro passando ou as crianças falando”, recorda Hopkins, candidato ao Oscar pela sexta vez pelo retrato do idoso confuso. Pelo desempenho como o assassino serial canibal de “O Silêncio dos Inocentes”, ele conquistou a primeira estatueta de melhor ator da Academia, em 1992.
Olivia Colman, vencedora de um Oscar de melhor atriz pelo papel da rainha Ana do Reino Unido em “A Favorita” (2018), foi indicada novamente por “Meu Pai”. Desta vez, a inglesa concorre ao prêmio de melhor coadjuvante pela empatia imediata que desperta no público na pele da filha com um dilema: colocar ou não o pai senil em uma casa de repouso. Por mais amorosa e dedicada que Anne seja, Anthony sempre dá um jeito de insultá-la, não reconhecendo o seu esforço para ajudá-lo, no sentido de deixá-lo mais seguro e confortável.
“Eu só precisei observar Tony (Anthony Hopkins). Sentir o que ele enfrentava no set facilitou muito para mim. Foi de cortar o coração vê-lo nesse papel”, afirma Olivia, lembrando que a dupla precisava se descontrair nos intervalos de filmagem. “Tony faz imitações hilárias e conta muitas histórias. Eu teria feito esse trabalho de graça, mas meu agente diz que não devo falar isso”, brinca ela.
A força e a engenhosidade do roteiro sobre demência ajudaram Zeller a conseguir dois atores de peso em seu primeiro longa-metragem. Por ser dramaturgo, ele inicialmente tratou o assunto na peça “Le Père”, que venceu o prêmio Molière em 2014 e foi traduzida do francês para o inglês, ganhando os palcos de Londres e de Nova York como “The Father”, em 2016.
“É uma história pessoal que eu percebi, no palco, ser muito universal. Depois de cada performance, pessoas da plateia vinham nos contar as suas experiências’’, afirma Zeller, indicado neste ano ao Oscar de melhor roteiro adaptado, pelo trabalho feito em parceria com o inglês Christopher Hampton. Na premiação marcada para 25 de abril, “Meu Pai” também concorre nas categorias de montagem e de design de produção.
Como não adiantaria só filmar a peça, Zeller reescreveu o material com Hampton, o vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado por “Ligações Perigosas” (1988), para torná-lo mais cinematográfico. A ideia de brincar com a plateia, deixando-a desorientada, já veio do teatro. “O que fizemos no filme foi transformar o cenário em um personagem da história, com o apartamento de Anthony sofrendo várias metamorfoses”, diz o diretor, referindo-se à mudança de móveis, de objetos de decoração (como quadros) e de cores.
Mas toda alteração é sutil - só o suficiente para criar uma leve estranheza dentro de um ambiente que ainda é familiar. Intrigado com o que acontece ao redor, o protagonista inevitavelmente passa a questionar se algo mudou na sua casa de fato ou se ele só está imaginando coisas. “Tudo foi feito para que o espectador experimentasse pelo menos um pedaço da demência”, diz Zeller.
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.