Em uma tarde fria de Paris, um pai busca o filho na escola e leva o garoto para ver uma aventura de super-herói no cinema. Na sala escura, já no meio do filme, a entrada de um tipo suspeito, que esconde o rosto com o capuz do moletom e arrasta uma mala de mão, chama a atenção do pai. Pouco depois, o mesmo sujeito, sentado na fileira de trás e um tanto impaciente, pula da poltrona, pega uma metralhadora e começa a atirar nas pessoas, causando pânico geral. Por mais que a matança só ocorra na imaginação do pai, cada vez mais paranoico com a onda de terrorismo em Paris, a cena é uma referência à tragédia que marcou a memória recente dos franceses. Extraído do segundo episódio da série “The Attaché”, o incidente no cinema é um dos momentos mais perturbadores do drama televisivo, uma das novas atrações da plataforma de streaming Starzplay desde o dia 14. Trata-se de uma das primeiras obras de ficção que relembra os atentados terroristas ocorridos em 13 de novembro de 2015 em Paris, incluindo o fuzilamento de 90 pessoas dentro da casa de shows Bataclan durante o show da banda californiana Eagles of Death Metal. O balanço final daquela noite de sexta-feira, pontuada por explosões e tiroteios simultâneos de responsabilidade do Estado Islâmico, foram 130 civis mortos e mais de 400 feridos, resenha Elaine Guerini no Valor. Publicado dia 19/3, continua a seguir.
“A ideia da cena do cinema não é reviver o horror, mas confrontar o medo que herdamos”, afirma o criador da série, o israelense Eli Ben-David, de 44 anos. O diretor, roteirista e ator tinha acabado de se mudar para a França com a família quando o país sofreu o seu pior ataque desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). “Lembro que, logo depois da noite sangrenta em Paris, havia sempre uma tensão nos lugares fechados, com a qual nós tínhamos de conviver em toda a cidade.”
Ben-David só ousou relembrar o massacre na França em sua série - uma produção israelense rodada em Paris e falada sobretudo em hebraico - por sentir familiaridade com o tema. O diretor cresceu em Tel Aviv, quando a cidade era mais afetada pela violência entre israelenses e palestinos. Nos últimos anos, Tel Aviv sofreu poucos ataques, deixando Jerusalém como o maior palco dos conflitos.
“Todo israelense da minha geração carrega um estresse pós-trauma com relação a isso. Houve um tempo em Tel Aviv, assim como em Israel como um todo, em que sempre presenciávamos um ataque quando íamos ao restaurante ou ao cinema. Meus 20 anos foram assim”, conta.
O timing para o lançamento de “The Attaché” é oportuno, sem ser oportunista, na visão de Ben-David, já que o atentado na França completou o seu quinto aniversário no fim do ano passado. Esse seria um prazo razoável para que o assunto deixasse de ser um tabu. O período foi o mesmo até os ataques de 11 de setembro chegarem ao cinema pela primeira vez, como obra de ficção. “Voo United 93” (2006), do cineasta inglês Paul Greengrass, recriou a trajetória do voo United Airlines 93, que decolou em Newark com destino a San Francisco, mas acabou em pedaços num campo na Pensilvânia, após ser sequestrado por terroristas.
Embora os cinco anos proporcionem certo distanciamento da tragédia francesa, fica sempre a pergunta se os eventos em Paris não seriam recentes demais para serem evocados no cinema ou na TV. Tanto pelos acontecimentos ainda estarem frescos na memória coletiva - o que poderia reabrir feridas em processo de cicatrização -, quanto pelo respeito devido às vítimas e às famílias das mesmas.
Até então os atentados na França tinham sido revisitados no formato de história em quadrinhos, com “Mon Bataclan”, lançada em 2016 pelo desenhista Fred Dewilde, um dos sobreviventes do tiroteio na casa de espetáculos. Houve ainda a minissérie documental “13 de Novembro - Terror em Paris”, que os irmãos franceses Jules e Gédéon Naudet dirigiram para a Netflix, em 2018.
“Na minha experiência, é benéfico avaliar nas histórias que contamos o impacto de capítulos dolorosos na nossa vida e nos nossos relacionamentos. Quando algo dessa natureza acontece ao nosso redor, é normal termos medo e sentirmos que perdemos o chão”, diz o diretor, ao Valor, por videochamada, de Paris. “É uma jornada interessante para percebermos o quanto nós fomos arruinados pelo evento, principalmente ao deixarmos a paranoia tomar conta. O bom é que aprendemos a ficar alertas o tempo todo.”
Para Ben-David, mais conhecido como criador da série israelense “Buba Shel Medina”, lançada em 2012, não daria para ignorar o sofrimento daquele 13 de novembro em “The Attaché’’, que é inspirada em sua vida. Ele não só é o diretor e o roteirista da série de dez episódios como também é o ator protagonista.
Avshalom, seu personagem, é um judeu israelense que deixa a carreira de músico em Tel Aviv quando a mulher, Annabelle (Héloïse Godet), que é metade francesa, consegue emprego como adida cultural na embaixada de Israel em Paris. Daí o título “The Attaché”, que em francês significa “adido ou adida”, neste caso.
Mas assim que Avshalom pisa na França, Paris vive a noite de horror, o que torna a vida de um imigrante ainda mais complicada no novo contexto político. Sem falar francês, Avshalom chega a ser confundido com um dos terroristas e vai parar na cadeia.
Passado o equívoco, o israelense volta para a mulher e para o filho, mas o relacionamento do casal começa a sofrer, à medida que ele passa a ser alvo da intolerância aos imigrantes, agravada pelos ataques. E o crescente clima de tensão na cidade também começa a afetar Avshalom emocionalmente.
“É uma história sobre identidade e sobre o sentimento de pertencer a algum lugar que é acentuada por um momento crítico, o dos atentados”, conta Ben-David. Seu alter ego retoma na série muito do que ele experimentou após o evento traumático em Paris. “Foi uma crise pessoal e conjugal. E de masculinidade e de paternidade também”, diz. “É preciso estar fora do seu elemento para conseguir encarar tudo isso de uma vez. O mesmo não aconteceria se eu não tivesse saído de Israel.”
Com chance de ganhar uma segunda temporada, que está em negociação com a Hot, empresa israelense de TV a cabo, a série é uma espécie de “diário íntimo” de Ben-David. Ele começou a fazer um “registro psicológico”, com as suas neuroses e seus medos, assim que a França foi atingida pelo terrorismo. Apesar do pano de fundo político da história, uma grande preocupação do diretor naquele momento era como os eventos impactariam o seu casamento, o que explica o foco da série cair mais no lado afetivo, conforme a narrativa avança.
“Afinal, seria muito irônico um casal desembarcar em Paris, a capital mundial do romance, para se separar”, diz, rindo. “Só que no nosso caso, no lugar da saudação de boas-vindas, fomos recebidos com os atentados.”
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