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Vencedor do Festival de Berlim satiriza a era da covid

Na esteira do sérvio Dušan Makavejev (1932-2019), de “W.R. - Os Mistérios do Organismo” (1971), Jude examina o mal-estar sexual e político da Romênia em plena pandemia a partir do vazamento on-line da filmagem doméstica de uma professora fazendo sexo com seu marido. Nenhum concorrente da Berlinale formalmente ousou mais, interrompendo a comédia social com um dicionário politicamente incorreto, ou melhor capturou o “zeitgeist” da era da covid-19. Saíram bem premiados os dois documentários entre os 15 concorrentes na disputa principal. O Prêmio Especial do Júri foi atribuído à cineasta alemã Maria Speth por seu “Herr Bachmann und Seine Klasse” (O Senhor Bachmann e Sua Classe), que remete ao belo “Ser e Ter” (2002), do francês Nicolas Philibert, ao acompanhar o empenho de integração humanista de um grupo de alunos de 12 origens nacionais distintas numa cidadela germânica, escreve Amir Labaki no Valor, em resenha publicada dia 12/3 no jornal. Continua a seguir.


Já o Urso de Prata de contribuição artística foi para o montador Yibran Asuad, do híbrido “Una Película de Policías” (Um Filme de Policiais), no qual o diretor mexicano Alonso Ruizpalacios insere dois atores no tecido cotidiano dos aparatos de segurança de seu país.

Fora da disputa principal, ao menos meia dúzia de documentários me chamaram a atenção nesta Berlinale 2021. Já no próximo dia 27 será possível conferir no canal por assinatura HBO o mais pop do lote, “Tina”, de Dan Lindsay e T.J. Martin.

Em vez da tradicional estrutura cronológica, o filme se estrutura para destacar a saga de reinvenção da cantora como megaestrela pop fora da sombra da parceria inicial com o então marido Ike Turner (1931-2007), um pioneiro do rock n’roll com quem formou um duo de imenso sucesso popular do início dos anos 1960 a meados dos 1970.

Seu show no Maracanã, no Rio de Janeiro de 1988, para um público recorde de 180 mil pessoas, é destacado como marco maior do sonho de Tina de lotar arenas pelo planeta “como os Rolling Stones”. Tinha então menos de meia década seu extraordinário reerguimento, cristalizado em 1984 pelo Grammy para a gravação de “What’s Love Got to Do With It”, do álbum “Private Dancer”. Sua estudada saída de cena no século XXI a estabelece em seu retiro suíço ao lado do marido, Erwin Bach, um dos coprodutores de “Tina”.

Baseado no livro homônimo póstumo do jornalista alemão Roger Willemsen (1955-2016), “Who We Were” (Quem Éramos Nós), de Marc Bauder, reúne seis reflexões de especialistas de áreas distintas sobre o mal-estar no mundo contemporâneo tendo na intersecção sobretudo a crise ambiental. Antes que um ensaio fílmico, trata-se de um fórum de ideias, ilustradas por vezes majestosamente, por exemplo ao acompanhar a oceanógrafa Sylvia Earle e o astronauta Alexander Gerst.

Em torno das mesmas questões, mas sob a forma de um estudo de caso, “Taming the Garden” (Domesticando o Jardim), da cineasta georgiana Salomé Jashi, foi exibido pelo Fórum após sua estreia em janeiro no Sundance. Com a pegada observacional do Cinema Direto, Salomé acompanha o transporte de árvores gigantescas nativas para o jardim privado de um não identificado ex-primeiro ministro de seu país. Pense numa versão contemporânea e documental da arrogância e obsessão da surreal empreitada ficcionalizada por Werner Herzog em “Fitzcarraldo” (1982) e terá uma boa ideia.

A defesa da cultura e da terra dos ianomâmi na região amazônica ganha uma poderosa versão cinematográfica em “A Última Floresta”, o único documentário brasileiro a participar do Panorama Documento. Dirigido por Luiz Bolognesi (“Ex-Pajé”), o filme foi desenvolvido em parceira com o xamã Davi Kopenawa Yanomami, consolidando numa sólida narrativa que mistura cenas documentais e encenadas da luta pela sobrevivência indígena e pela defesa de seus costumes e seu território contra o garimpo ilegal. Mais urgente, impossível.

Por fim, também marcadamente políticos são “The First 54 Years - An Abbreviated Manual for Military Occupation” (Os Primeiros 54 Anos - Um Manual Sucinto para Ocupação Militar), de Avi Mograbi, e “Nous” (Nós), da francesa Alice Diop. A partir de cenas de arquivo e de depoimentos do projeto “Quebrando o Silêncio”, que reúne testemunhos de soldados israelenses, Mograbi radiografa a cruel lógica militar de mais de meio século de ocupação de territórios palestinos.

Já Alice constrói com elegância um mosaico do cotidiano multicultural na periferia de Paris, com ressonâncias de clássicos como “A Regra do Jogo” (1939), de Jean Renoir, e “Os Miseráveis” (2019), de Ladj Ly. Não à toa, “Nous” saiu vencedor na mostra Encontros, a segunda principal competição da Berlinale. Neste festival emergencial, o cinema do real fez bonito.

Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.

Site do festival: www.etudoverdade.com.br





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