Tenho 77 anos, idade suficiente para ser realista e não repetir os equívocos da juventude. Eu esperava que as coisas seriam difíceis no Brasil durante a pandemia em razão dos obstáculos que boa parte da população brasileira enfrenta diariamente. Mas não imaginava que seriam tão difíceis. Sabia que quem vive do pequeno comércio sofreria, que aqueles que têm condições de moradia mais precárias teriam dificuldade em isolar os seus. Mas nunca imaginei que fôssemos viver um enfrentamento selvagem, com festas, aglomerações e a disseminação do vírus por pessoas que parecem não se preocupar com a vida de seus próprios familiares. A palavra correta para descrever o comportamento de muitos brasileiros é a selvageria. E temo estar ofendendo os selvagens ao fazer uso dela. O caos a que estamos assistindo nos hospitais é um efeito direto da violência que domina parte do povo brasileiro, escreve Drauzio Varella em artigo para a revista Época desta semana. Vale a leitura, continua a seguir.
Basta olharmos os dados. Crianças morrem sem parar em tiroteios. Na Europa, nos Estados Unidos, episódios assim teriam impacto nacional e suscitariam uma grande discussão. Aqui, estamos anestesiados. Quando alguém é assaltado na rua, dá graças a Deus por não ter levado um tiro. A violência contra a mulher é absurda e tem aumentado. Quando vemos bares lotados enquanto mais de 2 mil pessoas morrem por dia vítimas do coronavírus, não é violência? Em meio a uma pandemia, aquele que se expõe porque sabe que poderá ter melhores condições de tratamento acaba expondo outras pessoas que não têm a mesma sorte. Coloca em perigo também seus pais e avós. Como esperar, então, que uma pessoa capaz de colocar a própria família em risco tenha consciência do mal que causa à sociedade?
Uma parte da população brasileira negligencia a morte. Nada parece comover essa gente. Nem os números crescentes de vítimas, nem as famílias desesperadas nas portas dos hospitais, em cenas mostradas diariamente pela TV. E se as 260 mil vidas perdidas não sensibilizaram esse grupo, nada sensibiliza. Estamos assistindo agora às consequências de tudo que foi feito de errado: o desmonte do Ministério da Saúde, em que técnicos foram substituídos por militares; o negacionismo do governo e do presidente da República; a ruína do programa nacional de vacinação em decorrência da falta de vacinas; e as aglomerações. Sabíamos que seria complicado isolar a população brasileira quando boa parte dela vive em condições precárias. Mas não precisávamos contar com o negacionismo, com o desestímulo ao uso de máscaras e o incitamento, por parte do presidente, para que as pessoas ignorassem os perigos do vírus.
O Brasil é o quinto país em contingente populacional e o segundo em mortes por Covid-19. Não precisava ser assim. O Brasil tem um dos programas de vacinação mais eficazes do mundo, capaz de vacinar 1 milhão de pessoas por dia. É uma referência em imunização. Mas, hoje, vacina 180 mil, no máximo. Tínhamos uma população que respeitava o calendário de imunização e que vacinava suas crianças. Hoje, temos a autoridade maior do Estado que contesta a eficácia da vacina. Diante de um futuro tão incerto, agravado pelas novas variantes mais contagiosas do vírus e pela vacinação lenta, nos encontramos reféns de uma cambada de irresponsáveis. Se houvesse mais responsabilidade, haveria menos contágio e uma menor probabilidade de tomar medidas mais drásticas de isolamento — como o que está acontecendo nos estados em que o caos se instalou no sistema de saúde. Tudo poderia ter sido diferente.
Era janeiro de 2020 quando comecei a ler sobre o que estava acontecendo na China, na cobertura da imprensa internacional. Sabia-se pouco, havia muita especulação e a verdade é que a China é um país que nem sempre tem circulação livre de notícias. Sabíamos que praticamente não havia mortes abaixo dos 70 anos de idade e que as mortes acima dos 80 eram de cerca de 12%. Não parecia nada muito pior do que as epidemias de gripe. Eu vi uma palestra do doutor Anthony Fauci, pela internet, em que ele dizia: “Olha, não há razão para essa preocupação toda. Nós vamos ter uma doença, um coronavírus mais agressivo, mas a mortalidade não parece ser maior que a da gripe”. Foi quando eu caí na besteira de gravar um vídeo falando isso. Eu disse: “Não há necessidade desse medo todo. Esses coronavírus causam resfriados. E não é por causa disso, aparentemente, que teremos um problema maior”. O ministro do Meio Ambiente pegou esse vídeo do começo de janeiro e replicou em março, quando tudo havia mudado.
Percebi que estávamos diante de um problema grave quando a doença chegou à Itália. Era a segunda semana de fevereiro, e a primeira mensagem que recebi foi um relato de uma colega italiana falando sobre os efeitos da epidemia por lá. Ela usava um tom dramático, que, confesso, me causou má impressão. Mas o quadro pulmonar que ela descrevia tinha tudo a ver com os coronavírus. Foi então que eu me dei conta: “Se esse coronavírus provoca um quadro pulmonar com essas características, pode ser muito mais grave do que eu estava imaginando. Do que muitos estavam imaginando”.
Naquele momento, não pensei que pudéssemos ter desdobramentos políticos dessa doença. E nunca imaginei que isso pudesse acontecer comigo, porque eu nunca me meti em política. Sempre falei de saúde, e só. Nunca declarei meu voto, embora eu tenha sido muito assediado por políticos em várias eleições. Eles nos procuram para buscar apoio em campanha, para fazer parte do governo, enfim. E eu sempre respondi que não. Mas o ministro, que eu sempre esqueço o nome (e acho até bom esquecer mesmo), postou meu vídeo em alguma rede social. E, embora tenhamos conseguido tirá-lo do ar, a confusão já estava feita. Quando vi que a pandemia havia se tornado uma questão política, tive consciência plena de que não daria certo, e que nós viveríamos uma grande tragédia no Brasil.
Na primeira vez que vi o presidente da República criticando o isolamento social em razão do impacto que isso poderia ter na economia, eu pensei: “Ele está errado, mas pode ser que ele tenha até uma boa intenção. Está errado porque o que mantém a economia paralisada não é o isolamento, é o vírus”. Mas abandonei qualquer ideia de boa intenção quando o vi saindo sem máscara, abraçando as pessoas. Para mim, foi o momento mais revoltante de toda a pandemia. Pensei: “Esse homem vai trabalhar para disseminar o vírus”. E o tempo mostrou que essa impressão era verdadeira. Ele é o grande responsável. Não é o único, lógico. São corresponsáveis governadores, prefeitos, autoridades e as pessoas que se aglomeram nas ruas sem máscara. Quem não se lembra do Osmar Terra dizendo que não passaríamos de 2 mil mortos? Ou dos ministros generais fazendo cálculos irreais mostrando que morria menos gente no Brasil do que na Alemanha, proporcionalmente, sem levar em conta que a epidemia havia chegado antes à Europa? Mas o maior responsável é ele, pelo cargo que ocupa como presidente e pelo alcance de seus atos, como quando coloca em xeque a eficácia do uso de máscaras no momento de maior agravamento da doença no Brasil.
Fiquei surpreso com a politização de parte da classe médica durante a epidemia. Primeiro, por terem embarcado nesse suposto “tratamento precoce” sem nenhuma evidência científica. Essa situação expõe o grande problema que temos hoje nas universidades: elas formam profissionais que não têm noção do que é o pensamento científico. E isso acontece não só na medicina, embora na medicina seja mais chocante. Isso é muito grave, porque é o pensamento científico que nos permite entender os dados e analisá-los. Sem essa bagagem, você lê o estudo sobre o uso da cloroquina feito na França e encontra sentido naquilo. Quem tem o mínimo de formação científica percebe que ele não poderia ser levado a sério. No entanto, criou-se um movimento mundial de médicos despreparados defendendo o uso desse medicamento, dando uma falsa impressão de que havia dúvida no meio científico sobre esse assunto, quando, na verdade, não havia dúvida nenhuma.
O mundo gastou um dinheirão financiando estudos para avaliar a eficácia da cloroquina. Quem não quereria que uma droga barata, conhecida, com perfil de toxicidade bem definido fosse eficaz contra o coronavírus? Todos queriam. Mas os resultados foram decepcionantes. No Brasil, foi um pouco pior. Não só gastamos dinheiro em estudos, como também empregamos recursos públicos na fabricação do medicamento. Esse discurso de “tratamento precoce” conquistou uma parte da população e deu uma falsa sensação de segurança. Isso foi uma tragédia, infelizmente, com coautores médicos, que usam a pandemia para defender suas posições políticas.
Tenho 54 anos de medicina. Conheço muita gente. Passei a vida no meio de médicos. E não conheço nenhum — por quem eu tenha respeito profissional, que eu considere um bom médico, uma pessoa estudiosa e competente — que tenha sido a favor desses tratamentos inventados, com ivermectina, cloroquina e etc. O que aconteceu, na verdade, é que a pandemia escancarou o movimento político que existe dentro da classe médica que apoiou o presidente da República em tudo. E o Conselho Federal de Medicina teve uma posição indesculpável nesse aspecto, que é vista como absurda pelos médicos estudiosos.
No auge de uma pandemia, a função de um conselho de medicina é definir qual é a linha de conduta. Um remédio que não tem ação não pode ser usado para uma doença. Se eu tenho uma doente com câncer de mama e dou a ela um medicamento para artrite reumatoide, eu posso ser punido legalmente pelo conselho, porque estou prejudicando essa pessoa. Mas o que acontece com esses médicos que aparecem na internet defendendo esses tratamentos milagrosos? Nada. O conselho diz que é o direito do médico. E isso é um comportamento antiético. Basta ver o que aconteceu nos Estados Unidos. O então presidente Donald Trump, de início, defendeu a cloroquina. Depois, viu que os comprimidos encalharam e doou para o Brasil. Os médicos americanos não prescreveram porque podem ser processados pelos conselhos ou pela Justiça comum por utilizar um medicamento sem ação demonstrada. Fizemos, no Brasil, um papel ridículo diante da comunidade científica.
Eu tive sorte. Não perdi nenhum familiar e nem eu nem minha mulher pegamos a doença. Meu enteado, a esposa e a filhinha pegaram, mas com sintomas leves. No entanto, perdi amigos queridos. Eu tenho um grupo de ex-carcereiros da Casa de Detenção, no passado conhecida como Carandiru, e, antes da pandemia, nos encontrávamos periodicamente, a cada duas, três semanas, para tomar chope, conversar e falar de cadeia. Esses temas de cadeia eu não converso em casa, nem eles. A família não tem a obrigação de ouvir essas histórias. Então, quando a gente se reúne, só se fala de cadeia o tempo inteiro. Cada um conta um caso. Quando esses homens começam a falar das coisas que viram, você diz: “Não é possível, o cara viveu cinco vidas, porque numa só não dá tempo de viver tantas histórias”. Essa gente foi muito atingida pela pandemia. Eu perdi, pelo menos, três amigos íntimos desse grupo. Um dos quais faleceu em fevereiro: seu Valdemar Gonçalves, que foi meu braço direito desde que eu cheguei à Detenção. Nós tínhamos uma parceria. Ele organizava o atendimento médico, separava os prontuários e organizava os presos ou presas para levar. Era uma pessoa muito próxima. É muito duro isso.
As perdas se avolumam, as mortes deverão aumentar seu ritmo, e eu não creio que ficaremos livres da doença. Mesmo com a vacina, ela vai continuar por aí. Mesmo que o Ministério da Saúde demonstre uma capacidade que ele não tem. Mesmo que estivéssemos em condições ideais, com vacina e uma gestão capaz, o vírus não desapareceria. Ele vai ficar endêmico, como são endêmicas as gripes, os resfriados. Talvez precisemos, no futuro, modificar a composição das vacinas, como se faz com as gripes, porque as mutações são inevitáveis. E vai continuar, também, porque parte da população é irresponsável e manterá a epidemia num certo nível, provavelmente menor do que o atual. Mas manterá. Nós vamos ter de aprender a conviver com o coronavírus.
Eu tinha uma vida muito agitada. Palestras pelo país, gravação de TV. Eu me lembro de uma semana, no mês de novembro, antes de começar a pandemia, em que peguei avião todos os dias. Em alguns deles, duas vezes, uma para ir e outra para voltar. Por isso, quando começou o isolamento, eu já havia tomado uma decisão, que venho alimentando há vários anos, de parar com a clínica particular, que tenho há quase 50 anos. Queria me dedicar a outros trabalhos, mais educativos, em que eu achava que poderia contribuir mais do que atendendo em consultório pacientes que poderiam ser muito bem atendidos por outros colegas. Meu problema foi ficar sem a cadeia. Eu tinha essa rotina de passar um dia por semana na cadeia há 32 anos, e isso eu não pude continuar fazendo. Desse período, os últimos 15 anos foram na Penitenciária Feminina, em São Paulo, que me inspirou a escrever Prisioneiras. Isso tem me pegado mais forte, porque é um trabalho que eu tenho prazer em fazer. Dentro da cadeia, eu sou um médico mesmo, de verdade. No consultório, se eu não estou, a pessoa marca consulta com outro médico. Na cadeia, não. Meu trabalho faz diferença. Eu também começaria um trabalho em um hospital público, o Pérola Byington, que tem um serviço de oncologia muito bom. Queria dar aula para os residentes, ensinar um pouco do que eu aprendi, participar das discussões e aprender com os mais jovens.
Dito isso, preciso confessar que ficar em casa mais recluso não tem me causado problema. Primeiro, porque tenho uma quantidade enorme de solicitações. Faço palestras, lives, entrevistas que tenho o prazer de dar para rádios do interior de vários estados, para televisões, falando sobre saúde. Eu acho que essa é minha obrigação no decorrer de uma pandemia. Além disso, eu escrevo. E quem escreve não fica sozinho. Tenho minhas colunas e estou escrevendo um livro, que é uma reflexão sobre o que aconteceu nos últimos 50 anos em minha vida como médico, na medicina e com o país. Não é autobiográfico. É como se fossem três trilhas que caminham juntas. Minha atividade profissional, em particular; a medicina, que quando eu me formei não tinha nada a ver com a medicina atual; e o país, que se modificou também.
Eu sempre escrevi meus livros com base nas vivências que tive. Então é muito frustrante escrever desta vez sem estar no front de combate à pandemia. Mas não tive escolha. Primeiro, porque eu não podia trabalhar em hospital nenhum, já que não me aceitariam em função da idade. Eu também adoraria estar na cadeia vendo o que está acontecendo por lá, mas é a mesma proibição. Com a vacina, eu espero tomar a segunda dose, dar um tempinho, meter uma máscara bem forte — uma N95 — e voltar ao trabalho na prisão.
Quando a pandemia começou, pensei: “Mesmo ficando em casa o tempo todo, não posso parar de fazer exercício de jeito nenhum”. E comecei a me exercitar no prédio onde moro, subindo escadas. O prédio tem 16 andares. Eu subo, depois desço pelo elevador, e subo outra vez. E corro de manhã cedinho na rua, por volta das 5h30, quando ainda não há movimento. Faço isso de maneira alternada: corro duas vezes por semana e subo escada três vezes. A corrida costuma levar uma hora e meia. Em resumo: mantive minha rotina de exercícios na pandemia e ainda emagreci 3 quilos, porque passei a comer em casa, de forma mais saudável. Também consegui ver mais filmes e séries. Tenho um amigo que entende muito de cinema. É o Isay Weinfeld, que é arquiteto, e faz algumas indicações a que eu assisto com minha mulher nessas plataformas Criterion e Mubi. São filmes complicados, mas eu me esforço para ver, para não passar humilhação depois. Antes, eu não tinha tempo para nada. Até conseguia ir ao cinema em um fim de semana, mas ver uma série na televisão era impossível. Fora isso, também tenho muita coisa para ler, muitos livros que recebo dos próprios livreiros. Fico até desesperado. Aí começo a ler dois ao mesmo tempo. Três, às vezes.
Há alguns livros que estão parados na estante, e que eu sempre esperei um período de maior tranquilidade para lê-los. Um é Anna Karenina, do Tolstói, e o outro é Os irmãos Karamázov, do Dostoiévski. Mas veio a pandemia, e eu ainda não tive coragem de começar. Tenho um pouco de preguiça porque sei que eles vão tomar meu tempo todo por meses. Aí não vou poder ler mais nada. Sem contar a medicina, que eu continuo acompanhando, lendo, estudando. A medicina é uma profissão muito egoísta.
A história da humanidade é cheia de exemplos de germes com potencial para causar uma epidemia. Mas uma coisa é falar e outra coisa é viver a realidade. É muito diferente ver as pessoas adoecendo de perto, sobretudo amigos. Perder pessoas queridas, ver a devastação que vai acontecendo no país, pensar que temos 260 mil mortos num contingente de 210 milhões de habitantes… Ou seja, em cada 1.000 pessoas, mais de uma morreu. Cada vez a doença se dissemina e pega mais gente que achava que havia escapado. Essa realidade é muito triste, sobretudo porque essas pessoas morreram por uma doença evitável. Se não tivessem pego o vírus, não teriam morrido. Não são 260 mil pessoas que tiveram ataque cardíaco, câncer no cérebro, doenças de causas, muitas vezes, até inevitáveis. São pessoas que pegaram o vírus. Se não tivessem pego, estariam aqui.
Diante desse quadro, eu às vezes me canso do Brasil. Mas aí penso que sou brasileiro e que tenho um compromisso com o país. Eu estudei no Brasil, em uma universidade pública. Gosto da música, das pessoas. Eu não seria feliz em outro lugar. Já tive a oportunidade de fazer medicina nos Estados Unidos, mas nunca me interessei. Eu era adulto, estudante universitário, quando veio a ditadura, que durou 20 anos e foi terrível. Sumiam pessoas, matavam gente. E você tinha do outro lado radicais que assaltavam bancos e faziam guerrilha urbana. A mão do Estado veio com toda a força em cima dessa oposição. Quanta gente foi torturada! Quanta gente inocente, por razões variadas, foi presa! Gente que carregou traumas pela vida inteira. E nós sobrevivemos a isso. Por isso penso que o presente é melhor. Pelo menos os jornais estão funcionando até aqui, assim como a Justiça. Existe uma esperança de que a gente consiga sair desse quadro autoritário para um sistema mais decente. Isso vai melhorar. Vai permanecer assim por um tempo, mas não para sempre.
Uma vez, eu estava com o Exército no Pico da Neblina, que é um território ianomâmi. Estávamos gravando um documentário. Quando voltávamos da fronteira com a Venezuela para o Brasil, paramos numa comunidade ianomâmi e descemos para conversar com eles. Eu fiquei filmando num centro comunitário na aldeia, coberto de palha, bem típico. Quando acabamos de gravar, fui conversar com as mulheres. Como viviam isoladas, falavam português muito mal. De repente, uma delas me disse: “A gente conhece o senhor”. Eu falei: “De onde vocês me conhecem?”. Ela falou: “Da televisão”. Aí ela apontou para uma antena parabólica doada pela Igreja. Eu falei: “Vocês entendem o que eu falo?”, Ela disse: “Um pouco”. Eu fiquei tão impressionado com aquilo! Eu falo na frente de uma câmera e essas mulheres, essas senhoras, ouvem e entendem um pouco? Que privilégio é atingir este Brasil imenso. Quem foi o médico que teve esse privilégio?
Outro exemplo desse alcance é meu site, que criei em 1999 para guardar as entrevistas que dava e os artigos que escrevia. Hoje ele virou um canal no YouTube, no Instagram, no Facebook etc. Essas redes sociais chamam para as matérias que estão no site. O site tem de 10 milhões a 12 milhões de acessos por mês. O Facebook tem 2 milhões de seguidores. Esses números são um absurdo, muito grandes. Somando todas as redes, calculamos que cerca de 20 milhões de pessoas sejam impactadas. Olha a capacidade de informação que conseguimos transmitir! E aí existem aqueles que nos atacam com robôs. Mas eu não me preocupo com isso. Eles que ataquem. Temos vídeos com mais de 1 milhão de acessos. Isso é mais importante do que qualquer ataque. Quando você sabe aquilo que quer, não pode ficar impressionado com a opinião de meia dúzia de pessoas, porque, senão, não faz nada na vida.
Nesse grupo de carcereiros, a maioria é bolsonarista. Mas não discutimos de jeito nenhum. São pessoas das quais eu gosto. Não vou brigar com eles por causa de política. Daqui a pouco os políticos se entendem e perdemos amigos inutilmente. Nossa tendência é sempre nos relacionarmos com pessoas que pensam como nós, que têm o mesmo nível socioeconômico. Essa convivência com os iguais nos traz segurança, um sentimento de proteção. Mas isso também tem um lado ruim: torna nosso mundo estreito. As pessoas passam a pensar do mesmo jeito, usar o mesmo tipo de roupa, ter um carro parecido. Mas quando convivemos com ladrão que está preso, mas que fugiu de casa aos 6 anos de idade porque era espancado pelo padrasto, entramos no universo de uma pessoa que saiu para viver na rua com a sabedoria dos 6 anos. Diante disso, adquire-se uma visão da complexidade que é a existência humana. E, uma vez que você tem essa visão, é muito difícil abdicar dela. A vida fica mais pobre.
Por isso sinto falta do movimento que minha vida costumava ter. Andar pelo Brasil trabalhando, gravando, entrando na casa das pessoas, nas periferias das cidades. Ver as condições em que elas vivem, ouvir o que pensam. E sinto falta do atendimento nas cadeias. Dá para viver sem essas coisas. Se eu não puder mais fazer, dá para viver. Mas a vida fica pior. Sinto falta da cadeia, de conviver com esse grupo de carcereiros, sentar com eles em um bar, tomar cerveja, dar risada, ouvir as histórias que eles contam…
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