Pular para o conteúdo principal

O paradoxo do centro

Lula versus Bolsonaro. As sondagens indicam um segundo turno moldado pela mesma polarização política de 2018. Mas isso, como sabe qualquer especialista em pesquisas, é o som do passado —e eleições são sobre o futuro. Tanto o ex como o atual presidente comandam minorias consolidadas, potencialmente capazes de impulsioná-los ao turno derradeiro, mas não de garantir-lhes o triunfo diante de uma terceira opção. A paisagem é mais ampla que o cenário numérico: objetivamente, o chamado "centro" tem uma oportunidade singular de bater um e outro em 2022. Em tese, a missão exige apenas uma campanha eficaz de esclarecimento político. Não se trata de apontar, no plano ideológico, as simetrias verdadeiras e falsas (pois existem as duas) entre as candidaturas polares. Eleições só são sobre ideologia para a minoria que se imagina politizada. Trata-se de identificar e descrever dois fracassos históricos inapeláveis, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna na Folha de S. Paulo, publicada sábado, 20/3. Continua abaixo.


O fim do longo ciclo global de expansão das economias emergentes iluminou os contornos completos do lulismo. Lula/Dilma produziram uma devastadora recessão econômica junto com o assalto corrupto às empresas estatais.

A plataforma lulista, um varguismo atualizado, é essencialmente conservadora: perpetuar as engrenagens de um Estado perverso que premia o estrato superior do funcionalismo e os empresários dependentes de contratos públicos suspeitos ou gordos subsídios estatais. Seu resultado é condenar-nos à ineficiência econômica, gerar sucessivas crises fiscais e impedir a qualificação dos serviços públicos universais.

O governo Bolsonaro revelou-se, desde o início, uma regressão autoritária e, no campo econômico, um estelionato eleitoral. Paulo Guedes, o superministro que prometeu as chaves do paraíso, não entregou privatizações, concessões, abertura comercial ou reformas estruturais. No lugar disso, caminhamos a passos largos para uma combinação tóxica de inflação e estagnação.

Mas a perversão bolsonarista evidenciou-se inteiramente durante a pandemia. O negacionismo chucro, a sabotagem perene das medidas de contenção sanitária, a irresponsabilidade na aquisição de vacinas, a inação diante da tragédia em Manaus formam uma coleção de crimes contra a saúde pública. Bolsonaro é um vírus letal.

O centro político tem tudo nas mãos: a experiência recente, gravada na memória coletiva, de dois fracassos consecutivos. Mas não tem narrativa, discurso, programa ou rosto. E isso porque, desde o segundo turno de 2018, rendeu-se ao bolsonarismo. Os principais partidos centristas —o PSDB, o MDB e o DEM— associaram-se, em graus variados, ao governo da extrema direita. A adesão, aberta ou oculta, pesa como chumbo. Não há sabão capaz de limpar as mãos que tocaram uma poça tão pútrida.

A explicação sugerida pela esquerda para o gesto vergonhoso está errada. A coalizão bolsonarista não representa a elite econômica nacional, melhor servida nos governos FHC e Lula. Pelo contrário, é uma liga frágil que reúne fanáticos extremistas, militares ressentidos da reserva, facções da polícia e milícias criminosas, máfias regionais de desmatadores, bispos de negócios e uma franja periférica do empresariado. Bolsonaro capitaneia a nau de um governo lúmpen.

As raízes da estranha adesão podem ser procuradas no antipetismo visceral difundido durante a louca aventura econômica dilmista ou, talvez, numa camada bem mais profunda da nossa história, que remete à truncada, precária absorção dos valores democráticos. Qualquer que seja a explicação, o advento do bolsonarismo provou uma tese angustiante: no Brasil, o centro político desconhece a fronteira de princípios que deveria separá-lo da direita reacionária.

2022 não está escrito nas estrelas. Mas a eleição que tinha tudo para encerrar duas experiências falimentares parece caminhar rumo à reencenação da farsa vulgar de 2018.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...