Ela sabe que não está bem quando a testa começa a pegar fogo. Vontade de meter um L vermelho bem grande na fronte e gritar “Lula livre” na janela. Berra tanto que depois acaba tendo que chupar uma cartela inteira de Benalet. Um cara do prédio ao lado clama em resposta: “Lula livre, porra!!!”, e ela se apaixona instantaneamente. Pode ser um senhor de 98 anos ou um garoto de 18, mas ela se sente viva. Vem, vacina, que eu quero abraçar todo mundo. Extasiada, pensa o seguinte: a mão fazendo a arminha deixa de apontar para a cabeça do brasileiro, o indicador passa a mirar o céu, a arma vira um L e transformamos o ultraje em esperança, escreve a colunista Tati Bernardi em texto que vale a leitura, publicado sexta, 11/3, na Folha de S. Paulo. Continua abaixo.
Em seus grupos de WhatsApp, os colegas ex-petistas, que assistem à Globonews caçando migalhas progressistas (migalhas que em tempos de fascismo viraram fartos e duradouros banquetes), começam suas ladainhas-clichês que jamais escapam da palavra “autocrítica” e da frase “Bolsonaro só existe porque o Lula o criou”. Ela fica enfurecida: “Ai, gente, vocês não ouviram o Retrato Narrado, o podcast da Carol Pires, não? Quem criou o Bolsonaro foram a falta de afeto, de sonho, de educação. Quem criou os milhares de brasileiros que o elegeram também foi essa trinca macabra. Quem cresce no ódio aprende que destruição é império”. Ela se escuta e sabe que é uma tonta, uma iludida, uma péssima poeta, um ectoplasma da própria juventude que já julgava morta, um eco perdido de diretório acadêmico. Mas que saudade de ser tudo isso. Acreditar é para os inexperientes, e ela está bem tranquila em abrir mão dessa sabedoria sorumbática que vem com a falta de expectativa.
O lulismo é uma doença, porque ela coloca até sombra colorida nos olhos. Ela flerta com o salvador, se arrepia com homens que têm sangue nos olhos e não suporta mais a voz do genocida com sangue nas mãos.
Desejo de assistir a ele de pé, ereta, espalmando o coração, de cantar o hino, de se empolgar com Copa do Mundo, de comer picanha, de achar que a bandeira é de todos e não um reles símbolo de gente tosca e fascista nas redes sociais.
Vai começar a coisa doida remexendo no peito. É burrice, é ingenuidade, é ignorância. O lulismo é uma doença séria, mas é também uma saudade enorme de pobre na faculdade, de empregada doméstica com carteira assinada, de ministro artista, de chanceler intelectual, do Obama dizendo “esse é o cara”, de cinema, teatro, literatura, música. Do futuro, do país decolando em capa de revista e não sendo a escória, a vergonha, a piada, a pena e o pânico internacional.
Tentam dissuadi-la: “Vai ser pior, vai ter golpe, vai ter guerra, vai morrer gente”. Pior? Golpe? Guerra? Morrer gente? Ela pensa: “Francamente, o que as pessoas acham que estão vivendo exatamente agora?”.
O lulismo é uma doença que ataca a memória. Mas e o… e o… e o que mesmo? Coitada. Fica arrepiada quando ele fala da vacina, quando ele fala do respeito às mulheres, quando ele fala em democracia, quando ele fala de caminhar pelas ruas sem ser morto, quando ele fala contra o preconceito. Palavras óbvias e de decência depois de infinitos dias sendo soterrada pela infâmia descabida, pelo descaso inimaginável e pela psicopatia no poder. Ela é burra de dar dó, mas faz tempo não dançava escovando os dentes.
Antes de dormir, ela pede: “Deus, se você existe, se você é brasileiro, dá mais uma chance pra ele, pra mim, pra todo mundo...”. Parece bilhete de criança, mas, vai ver, só assim tem força suficiente pra tirar a gente dessa.
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